O
Ruço
Por
António Lobo Antunes
"A saudade é, para mim,
um sentimento estranho.
Sempre ouvi dizer que
diminui com o tempo, que nos vamos habituando, que nos vamos esquecendo mas, no
meu caso, aumenta, surge quando menos espero, instala-se ao meu lado, dói. É
estranha a dor da saudade porque, para mim, é física. Sinto-a na cabeça, nos músculos,
no corpo todo. Por exemplo saudades da tia Madalena a chamar-me
- Filho
da tia Bia a chamar-me
- Antoninho Cravo Roxo
da Gija enquanto me
coçava as costas à noite, antes de deitar-me
- menino, menino
e eu tão pequeno quando
a saudade dela chega e, quando os seus dedos me tocam, tão contente. Saudades
da casa grande de Benfica, saudades do lago. Até saudades do Marciano a regar
os canteiros. Saudades dos rebanhos a passarem à tarde num tinir de badalos.
Saudades da chuva de abril, tão leve. Saudades do avô, de casaco de linho
branco, a sorrir. Não consigo lembrar-me da voz dele, por mais que tente não
consigo lembrar-me da voz dele, lembro-me que dizia
- O meu morgado, o meu
morgado
porque o Brasil
continuava nele. Isto em Belém do Pará, lá em cima. Porque não voltámos nunca,
porque ficámos aqui? Saudades de canções
Mamãe
diz ao Papai
que eu quero ir para a guerra
do Paraguai
diz ao Papai
que eu quero ir para a guerra
do Paraguai
Não vás meu
filho
que podes morrer
tão pequenino
que irá acontecer?
que podes morrer
tão pequenino
que irá acontecer?
de poemas que
escandalizavam a minha avó
Um brasileiro
mui rico
querendo espantar o mundo
mandou fazer um penico
com uma paisagem no fundo.
querendo espantar o mundo
mandou fazer um penico
com uma paisagem no fundo.
Diz-lhe um
amigo que louco
para que queres isso tu?
É para alegrar um pouco
o triste olho do cu.
para que queres isso tu?
É para alegrar um pouco
o triste olho do cu.
E a minha avó a abanar
a cabeça, consternada.
A minha bisavó que não
conheci, morreu nova, chamava-se Leopoldina como tantas raparigas da sua
geração: era o nome da Imperatriz. O meu pai tinha em cima de uma mesa a
fotografia dela. A avó Leopoldina
(saudades)
e o bisavô João, de
cabelos brancos e corrente de relógio no colete. Saudades dos doces do Brasil
da minha tia avó Isabel, cocada, rebuçados de ovos e o tempo, nessa época,
compridíssimo. Tia Biluca, tia Mimi, tia Marocas, avó Chuta, senhoras de peitos
imensos, com buço. O trisavó Bruno Álvares Lobo cuja família saiu de Portugal
para a Holanda e da Holanda para o Brasil, séculos antes, por serem judeus.
Isto explicou-me, no dia da entrega do Prémio Jerusalém, em Israel, um velhote
especialista em genealogia, que estivera nos campos de concentração nazis e se
foi informar da história da família. A minha pequena costela judia era um
orgulho para ele. O meu avô, aliás
(tantas saudades de si,
avô)
possuía uma cara
chapada de judeu, igualzinha à da sua mãe, que morreu de pneumonia. Lembro-me
do meu pai, muitas vezes
- Vou morrer de pneumonia
como a minha avó
e assim foi. Tio
Joaquim, médico, que vinha às vezes de barco e falava com sotaque carioca,
carregado de doces e de livros, magro, ao contrário do meu avô que pesava mais
de cem quilos. Mostrava-me o anel ao lado da aliança
- É o anel do morgado,
é para ti
e a minha avó
entregou-mo no dia em que ele morreu.
Essa vinha de alemães:
tantos sangues no meu. Cartas em alemão do tio Rudolf mandadas aos pais da
Guerra da Crimeia. Herdei isso tudo, cartas, documentos, papelada vária,
fotografias de sujeitos de bigodes loiros e olhos azuis. Quando estive num
hospital em Londres o director para mim
- Você não parece
português mas também não parece inglês
e logo a seguir, com
uma expressão zangada
- Parece um alemão
numa espécie de ódio
que me confundiu. Na escola os meus colegas chamavam-me Ruço. Há séculos que
não me chamam Ruço. Saudades disso, também. Não só os colegas, pessoas
crescidas que não conhecia
- Sacana do miúdo é
ruço
e não pareciam
especialmente alegres por isso. Esta crónica é escrita por um ruço. Os ruços e
os ruivos, a quem chamavam Estás A Arder, eram olhados com uma curiosidade
desgostosa. Até disso sinto saudades, olha, que me observem com uma curiosidade
desgostosa.
- São manhosos, os
russos
dizia-me o senhor da
carvoaria
- São manhosos
se calhar com medo que
eu lhe pinasse uns briquetes, embora o meu pai fosse doutor.
- Não é verdade que o
teu pai é doutor ó ruço?
e uma olhadela curiosa,
entre a desconfiança e o respeito.
Quando fui treinar para
o Futebol Benfica um dos rapazes anunciou ao grupo
- O pai do ruço é
doutor
e levei menos encostos
por isso. O treinador, da idade do meu pai, que jogara contra ele
- O pai do ruço foi aos
campeonatos da Europa e tudo porque o pai do ruço fez parte do Time Maravilha,
no Benfica, e lá estava
ele, com os colegas, numa parede, emoldurados. Isto já no Benfica, que era
outra loiça.
O meu pai todo
penteadinho, com a águia na camisola.
Havia uma caixa de lata
cheia de medalhas, que os meus irmãos e eu às vezes púnhamos ao peito. Medalhas
de campeão nacional e tudo. Às vezes ia jantar com os antigos colegas e davam
imensas palmadas uns aos outros.
Os colegas também me
chamavam ruço. Depois, com o tempo, o ruço desapareceu. Continua apenas, meio
apagado, no meu rol de saudades.”
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na revista Visão, em 21.12.2016
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