Johannes Vermeer ( 1632- 1675), O geógrafo |
" Foi no século XIX que surgiu pela primeira vez a ideia de uma espécie de Estados Unidos da Europa. Victor Hugo, entre outros, teve essa ideia. Quando se lê com atenção Victor Hugo, o que eram os Estados Unidos da Europa no seu pensamento? Era uma Europa constituída por várias Franças, ou a França como a Europa, o modelo francês espalhado no continente europeu. O que já era verdade para uma parte da elite. Basta ler o romance de Tolstoi para ver que a elite russa desses grandes criadores falava francês. Quando pensava em universalidade, Victor Hugo pensava na universalidade do modelo francês. Infelizmente duas guerras mundiais destroçaram completamente essa utopia de Victor Hugo. Não só a destroçaram completamente como fizeram uma coisa impensável para a minha geração: a França, que era para nós um modelo da universalidade implícita da democracia, do universalismo, etc. regrediu de algum modo, entrou nas suas fronteiras, já não tem aquela capacidade de irradiação e de impulso capaz de estar no comando verdadeiro desta nova construção europeia, infelizmente. E então, no que diz respeito à língua, a França conhece uma espécie de obscuridade, que para a minha geração parece um verdadeiro mistério, por um lado, e de algum modo um desastre: que o francês seja hoje uma língua subalterna e em última análise menos importante que a língua do nosso pequeno Portugal, que é hoje uma língua que tem uma radiação universal superior à famosa , maravilhosa língua de Voltaire e de Montaigne.
Na verdade, a Europa é difícil de fazer sobretudo por uma razão simples : é que a Europa não precisa de ser feita. No fundo há Europa a mais. Cada país europeu, cada nação europeia é uma maneira de ser Europa. Só a nossa ideia de uma espécie de uniformismo, de modelo genérico, de uma língua comum... É claro que se houvesse uma língua comum há muito tempo que a Europa estaria feita, e essa é a diferença entre o modelo dos Estados Unidos e o modelo europeu. O que permite aos Estados Unidos ser o que são é realmente o facto de falarem a mesma língua e de terem uma consciência de um passado relativamente recente em relação ao nosso, que lhes dá uma cultura, que lhes dá uma identidade.
Ora a Europa não tem uma identidade nesse sentido. A identidade europeia é uma identidade simbólica. A identidade europeia é a identidade das diversas culturas, que se reconhecem nos referentes donde a Europa partiu. A nossa referência matricial é a velha Grécia, naturalmente. A essência da Europa é o pensamento grego, eo pensamento grego quer dizer a Tragédia, a Comédia , o pensamento grego quer dizer a Álgebra, a Matemática. A origem, o núcleo ideal do que nós chamamos Europa está no passado, e de algum modo as revoluções europeias são sempre uma maneira de voltar à origem ou de reescrever a origem.
Um dos filósofos mais importantes do século passado, Heidegger , não fez outra coisa senão pensar que o pensamento mais actual não era o pensamento pós-kantiano, hegeliano, etc., quer dizer, o filho da modernidade europeia, mas sim o mais arcaico pensamento - que já era a ideia de Nietzche -, o pensamento pré-socrático. A Europa é pré-socrática, é socrática. Depois os romanos apoderaram-se dessa cultura , dessa literatura, e traduzem em romano, e nós dizemos sempre cultura greco-romana, mas cultura greco-romana são duas coisas. Roma é outra coisa que não cultura, e Roma é que é a matriz. Na ordem política, Roma é que foi realmente a primeira Europa. É o modelo em relação à Europa, se se pensa na ordem política, e não há outro modelo para nós.
Portanto a Europa é muito difícil de fazer pelo cultural. Por outro lado, é um continente que não se pode realmente comparar a nenhum outro pela sua diversidade cultural. Eu não falo em riqueza cultural. Todas as culturas têm um estatuto que deve ser valorizado e do qual nós não somos juízes.Não é a cultura europeia que é a medida de todas as culturas. de resto, eu penso que o que a cultura europeia tem de mais extraordinário é que foi uma cultura que nunca se pôde estabelecer como modelo ideal para medir as outras, embora o pareça. Não hé nenhuma cultura, no mundo que nós conhecemos, que tenha produzido um livro como as Lettres persanes de Montesquieu - a ideia de que os outros também são culturas que valem bem as nossas. E não só em relação às chamadas culturas históricas estudadas nas universidades, que fazem parte da história cultural do mundo. A Europa foi muito mais longe do que isso, ao ponto de pensar que aquilo que durante séculos separava o que é bárbaro do que é não bárbaro, o que é culto do que é inculto, não era uma ideia sustentada."
Eduardo Lourenço, in Pequena meditação europeia, Ed. Verbo, 2012, pp 21-25
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