É,
com alguma pena, que me despeço da
redacção
destas minhas recordações.
Enquanto escrevia , mergulhava no passado e esquecia ou anestesiava algumas
grandes aflições do presente.
Eugénio Lisboa (2016)
Em Outubro último, saiu o segundo volume de " Acta Est Fabula , Memórias -II - Lisboa (1947 - 1955)", de Eugénio Lisboa. Com este volume, o escritor concluiu a longa narrativa de Memórias a que se propôs. Cinco volumes publicados anualmente, durante cinco anos. Um projecto que foi cumprido e organizado de acordo com as memórias mais marcantes do autor.
Nascido na capital de Moçambique , cidade banhada pelo Oceano Índico , em Maio de 1930, a formosa Lourenço Marques desempenhou o papel principal, na vida de Eugénio Lisboa.
No esclarecimento apenso à Edição do terceiro volume de “Acta Est Fabula” , publicado em Outubro de 2013, Eugénio Lisboa justificava a opção editorial : A razão de saltar do primeiro para o terceiro volume ( sem redigir o segundo) é simples: tenho 83 anos e nada me garante que terei vida para redigir os ambiciosamente sonhados 5 volumes. Gostaria em todo o caso, de poder deixar escritos os tomos que dizem respeito à minha vida em África. Foi lá que comecei, mesmo que não vá ser lá que acabo. Esses dois livros , eu devo-os à cidade de Lourenço Marques e ao espaço africano e ao mar africano e à luz africana. Faço questão de pagar essa dívida. O resto será feito se os deuses deixarem.
Eugénio Lisboa, na casa de S. Pedro do Estoril |
Durante cinco curtos anos, Eugénio Lisboa alimentou-nos. Um alimento feito de vivências, de descobertas , de conhecimento e de muito assombro. A real dimensão do espanto encheu cada volume que compõe as Memórias. Um admirável retrato de uma criança anónima, oriunda dos bairros humildes de Lourenço Marques, que, pelo espanto, se fez o erudito intelectual e o grande escritor referenciado e aclamado da actualidade.
Alegrias e vicissitudes, estudo e aprendizagem, sonho e viagens, partidas e chegadas, amor e desamor , perdas e encontros, trabalho e devaneio, assombro e realidade, tudo e muito mais perpassa pela vida de Eugénio Lisboa evocada nesta grandiosa saga. “Uma coisa é semear ideias, outra é colhê-las”, dizia Wittgenstein.
Cabo da Boa Esperança, África do Sul |
Estava em terra de ninguém: Lourenço Marques ficara para trás – cada vez mais para trás – e Lisboa era ainda só uma vaga promessa ( ou inquietante ameaça…). Entretanto, estirado no deck, lia “O Garden-Party” , o Hemingway e revia alguma matemática . Mas, sobretudo, passava horas esquecidas a ver a quilha do barco cortar o oceano. Em viagens assim, o tempo “dura” mais. O ruído surdo e contínuo que fazia o oceano “ cortado” pelo ferro do navio, tornava-se estranho, obsessivo e mágico. A promessa começava ali. Dizia de mim para comigo que o meu sossego, o meu interregno, iriam acabar com a chegada a Lisboa. Ia comigo, como disse, a minha mãe,iam os livros e os “ papéis”, mas havia tanta coisa que não ia! Ainda assim, no espaço amplo mas confinado do “ Nova Lisboa”, ao fim de alguns dias, aquilo já não era apenas uma viagem que “dura”. Era - começara a ser – muito mais : era algo em que me instalara, como se aquele fosse o meu mundo de sempre e para sempre. Eu era a viagem e a viagem era eu. A viagem começara por me separar brutalmente do meu mundo laurentino, mas, agora , só porque durava, absorvia-me intensamente. Aquele mundo de todos os dias e de todas as horas, eis que se construía como outro “ meu mundo”, que me “ salvava”, de modo estranho, da dor de ter perdido o outro. E do ainda vago receio de ir conhecer um terceiro. As viagens longas são assim: desarrumam profundamente e voltam a arrumar prodigiosamente, anunciando, contudo, um final desarrumo a haver. Ir com frequência à cabine do navio procurar um livro ou um caderno de problemas começava a ser capaz de substituir o gesto de ir à estante do meu quarto , em Lourenço Marques, escolher outro livro. A rotina do barco curava-me da falta da rotina da casa. Numa viagem longa, a bordo de um barco, viajar é estar ou começar, de novo, a estar. Fui assim, ao longo dos dias, sarando as feridas que me causara a saída de Lourenço Marques. Não completamente: a saudade daquele meu tempo de descobertas e tumultos e afectos não estava morta, apenas adormecida. Já era alguma coisa.
Lisboa, Praça do Rossio |
A chegada a Lisboa e a descoberta que entre sonho e realidade havia um mundo diferente e dolorosamente real. Lisboa era a ruína do sonho. O meu sonho estatelara. O contraste entre a realidade e o sonho fazia doer de modo insuportável.
O choque avivava a saudade e o desejo de regresso ao familiar chão laurentino:(…) sentia crescer , em mim, um desejo enorme de regressar à minha Lourenço Marques , onde tanto aprendera e tanto fora descobrindo no decorrer das minhas leituras.
E irrompia o temor perante uma metrópole desconhecida e de grande dimensão que exigia uma longa aprendizagem: Ao mesmo tempo, a dimensão física da cidade assustava-me um pouco: quanto tempo iria eu levar para reconhecer todos os lugares, as vias de comunicação, os meios de transporte, os sítios apetecíveis?
Lisboa, Alameda Afonso Henriques |
Não se respirava, naquelas universidades do Estado Novo, o mais pequeno encorajamento ao livre exercício da inteligência e da liberdade de pensamento. Pelo contrário, tudo encorajava os alunos ao “respeitinho” e à reverência para com as ”autoridades” e ao recuo perante a “política”. Não ser da JUC, era já um apreciável acto de rebeldia.
Surpreendeu-me também, dolorosamente , o facto de os meus colegas , com quem fui estabelecendo laços de maior proximidade, não mostrarem a mais pequena curiosidade pelo facto de eu vir de Moçambique . África ou Minho ou Alentejo – era, para eles, tudo o mesmo. O único que mostrou um vislumbre dessa curiosidade, fê-lo para me perguntar – a sério, não a brincar – quantos escravos é que eu possuía! Julgo que nunca o consegui convencer de que não havia escravos nem escravatura em Moçambique e que, de qualquer modo, eu não os possuía…”
Não fica por aqui , o relato emocional do jovem laurentino. A transformação vai ocorrendo , - de jovem recém-chegado a adulto adaptado à realidade lisboeta. Lisboa começava a agradar-me… afinal não era tudo mau, estreito e pelintra. Havia avenidas espaçosas, lugares sedutores, convites irrecusáveis!
Paris |
Fideliza-se ao cinema, descobre a Música, o teatro e mais tarde Paris, que tão bem conhecia através da leitura, enquanto leitor compulsivo. Paris era mesmo uma tentação. Conhecia-a dos livros , do cinema, dos pintores. Era quase incrível eu estar para lá ir: mesmo com pouco dinheiro e sem fazer ideia do custo de vida.
E já em Paris, acrescenta: De qualquer maneira , coisa inconcebível, encontrava-me em Paris! Em Lourenço Marques mergulhado em Balzac ou nos “Thibault” , de Martin du Gard, ( que abominava Balzac…), eu rebolava-me naquela Paris de papel, sonhando com a outra de pedra e de grandes avenidas verdadeiras, que me aguardava, num dia improvável. Improvável? Pois aqui estava eu, baratinando as improbabilidades do universo!
Convento de Mafra |
Convocado para o serviço militar faz a “Instrução militar” em Mafra, na Escola Prática de Infantaria. Aquilo era enorme, feio, frio, húmido, horroroso. Chegava-se lá e ficava-se logo a não gostar. Eu cheguei e fiquei logo a detestar.
Rebelde e avesso à disciplina cega que comandava a vida militar, termina a instrução com excelentes resultados a tudo , excepto a comportamento , pelo que fica no fim da lista. Foi este o único e modestíssimo castigo que tive. Nunca fui realmente castigado, nem repreendido nem sequer chamado a explicar-me. Fiquei apenas candidato a não ser colocado em Lisboa como aspirante miliciano, o que muito me prejudicaria por causa do 6º ano do curso, que andava a fazer.
E apesar de ter indicado Lisboa como primeira preferência, o pedido foi recusado, vindo a ser colocado em Portalegre. Era um castigo pesado , mas havia só uma luzinha ao fundo do túnel: naquela cidade do Alto Alentejo, vivia um escritor que, desde a minha adolescência, em Lourenço Marques, eu lia, estudava e admirava: José Régio, em cuja obra de ficcionista em me iniciara, só depois começando a ler o dramaturgo, o poeta, o ensaísta, o crítico literário…Era alguém com peso próprio, grande autonomia de pensar, grande coragem cívica, grande ousadia na prospecção dos abismos interiores do ser humano, grande arte de escrever – nada servo de modas e modismos. Um caso muito singular na nossa cultura ao menos isso, ia haver , para mim , em Portalegre. O resto seria o que fosse.
E houve realmente José Régio. Um encontro no “ Café Central “ a convite do médico analista Feliciano Falcão , grande amigo do poeta, logo nos primeiros dias da estadia em Portalegre.
E se o aspirante miliciano perdeu a colocação na cidade de Lisboa,o jovem Eugénio Lisboa , colocado na cidade de Portalegre, pode inaugurar o percurso
certo para o ilustre
escritor que viria a ser. José Régio soube-o no primeiro instante. As noites de muita tertúlia que se seguiram naquele café e na casa do poeta, vieram confirmar o que acabara de descobrir. Não hesitou em escolhê-lo para organizar a Antologia que lhe fora encomendada e dedicada a ele próprio, José Régio. Publicada em 1957, foi a primeira obra literária de Eugénio Lisboa.
Lembro-me de, durante todo esse período em que vivi os meus últimos dias de Lisboa, a cidade estar sempre sob um sol deslumbrante – não me ocorre à memória um único dia enevoado.Foi uma verdadeira festa de luz , a sublinhar a euforia em que eu ia vivendo a conclusão do curso e a escrita da minha primeira tentativa literária.
Eugénio Lisboa e José Craveirinha |
Mais tarde, em Lourenço Marques, Eugénio Lisboa firmou-se com uma escrita literária continuada que se estendeu por diversos domínios até aos dias de hoje. Escrita que nos deslumbra pela clareza , pelo fulgor, pela bela erudição
sóbria e pela densidade enformada de prodigiosa consistência.
Terão sido os deuses a propiciar ou não, o que sabemos e constatamos, sem qualquer ajuda , é que Eugénio Lisboa fez da sua vida um magnum opus que nos emociona e nos faz convocar , com redobrada impaciência, a publicação de todo e qualquer próximo livro.
Interessa-me... muito! Foi o grau de interesse por que optei ali. Sdmpre gostei de o ler, embora não tenha lido muito dele. Gosto do seu estilo e do conteúdo dos seis escritos/livros.
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