Um certo Abril*
Numa igreja
dos Altos Pirenéus está inscrita: "Todas as horas nos ferem; a última
mata-nos."
Por Baptista-Bastos
“O que foi não voltará a ser. Mas
temos de estar sempre preparados para a felicidade, acaso para a descobrir ou
inventar. As imagens ditosas desses dias antigos estão delidas. Fomos
envelhecendo quase sem dar por isso e aquele ali já não sou eu, nem ela é ela:
somos outros com a absurda ilusão de que somos os mesmos.
Passámos pelo tempo. O tempo não magoa: pune;
não damos por ele, mas ele dá por nós. Numa igreja dos Altos Pirenéus está
inscrita esta sentença, em forma de velado aviso: "Todas as horas nos ferem;
a última mata-nos." Vivemos
rodeados de perigos; porém, o prestígio da palavra revolução exultava-nos e
convidava-nos a ir em frente. As revoluções são produto de jovens: são os
beijos que nos eram proibidos, os beijos frescos e felizes que prendiam o
tempo, e parecia que os não queríamos largar. Vivemos de memórias inesquecíveis
e estas constroem a saudade, é o que é. E as memórias são inesquecíveis porque
as seleccionamos, e somos sempre novos antes que a realidade nos surpreenda com
a desconfiança e o sofrimento.
Claro que os velhos, com a consciência
de o ser, propendem para a melancolia, pois talvez entendam que já não são
precisos. Os velhos. Preenchem o que lhes sobra com a ideia de que alguma vez
foram felizes. Isso basta aos velhos. Não sabem quanto das suas lembranças
enfada os novos; não sabem ou não querem saber, o que vem a dar no mesmo.
Todavia, viveram, arrebatados, os
vertiginosos dias de Abril, porque eram muito novos, e a esperança era o sonho
cuja substância se tornara palpável. Não queriam "mandar aqui": os
desejos eram mais modestos: apenas desejavam que a felicidade se prolongasse.
Ainda não tinham sido castigados com a evidência de que até o amor morre. As
revoluções, não: transformam-se, mas a raiz inicial é sempre a mesma, singela e
única: o homem precisa de liberdade e de ser feliz.” Baptista-Bastos, em Crónica
publicada no Correio da Manhã de 27.04.2016
*Ao Francisco e ao Manuel, os tempos
novos
Sem comentários:
Enviar um comentário