Frederico Füllgraff é jornalista, escritor, cineasta, tradutor. Já viveu na ilha grega de Creta, em Hamburgo, Paris e Lisboa.
Antes, em 1969, trocou Curitiba ( Brasil) por Berlim, por pressão da família, que queria
afastá-lo dos movimentos de resistência à ditadura. Actualmente, vive e trabalha no Chile.
É com grande prazer que publicamos esta Crónica, memória de um tempo vivido em Portugal, escrita para este Blog e dedicada a todos os portugueses. Ao Frederico o nosso bem haja.
Cine Peniche - Fotogramas de um Portugal de
pernas para o ar
Por Frederico
Füllgraff
"Há muitos anos venho empurrando com a barriga
– e desde 2015, com a consciência pesada, devido a uma promessa só agora
cumprida – uma tentativa de narrar, como vivi o 25 de Abril em Portugal. Isto
porque minhas recordações são fragmentárias, talvez até algo confusas, com
certeza, subjetivas.
Honestamente falando, meu maior medo de
recordar aqueles tempos, era sucumbir ao saudosismo e sentimentalismo.
Não sou besta, conheço-me! Basta-me ver no
Youtube os cinquenta “Ganhões de Castro Verde” cantando, braços entrelaçados,
“Grândola, Vila Morena”, na cadência do seu terrenal passo alentejano (que
Bernardo Bertollucci virtualmente roubou para aquela cena emblemática da marcha
camponesa em “Novecento”), e não tem jeito: choro copiosamente! De saudades,
luto e felicidade. Nesta ordem.
Mas pensando melhor: dane-se o medo!
Então vou começando minha estória já pela
metade, ao estilo da antitrama, desprezando qualquer ordem cronológica.
Era final de tarde de um domingo ensolarado
do verão de 1975, e foi uma das mais gratas surpresas da minha vida. Na
verdade, um fugaz vislumbre do que viria a ser meu mergulho de cabeça no mundo
das letras e imagens, que naqueles momentos meramente engatinhava.
Escrevia-se o “Verão Quente” de 1975, a
esquerda do MFA ensaiando o roteiro – guião, dizem os lusitanos,
imitando seus vizinhos hispânicos - de uma república socialista de democracia
directa, e a OTAN, abismada, começando a tecer a sua conspiração, que culminaria no famigerado
“25 de Novembro”. Será maldade afirmar, que aquele foi o grande dia de Mário
Soares, seu PS e o “Ocidente”?
Mas isto é História póstuma, pois naqueles
dias, boa parte da Europa e nós, cineastas principiantes, estávamos convencidos
de protagonizar a História viva, mais que sonhando: delirando com a
possibilidade da “Revolução”, em cuja homenagem - e para pasmo de padres
apostólico-romanos, púdicas mães de família e jejuados dirigentes comunistas -
as libertárias ragazze da Lotta Continua italiana, acampadas entre
praias e fincas expropriadas, arrancavam suas vestes, baloiçando suas curvas e
seios nus para gáudio de camponeses e pescadores da Lusitânia.
Estávamos em Peniche, na costa atlântica,
estreando o documentário “Queremos que esta terra seja nossa” - título de uma
canção-tema de ingénuo panfletarismo, coerente com as nossas certezas de
párvulos ávidos de aventura e justiça.
Pela manhã e no início da tarde, o então
sindicato dos pescadores de Peniche enviara às ruas da tórrida vila à beira-mar
um carro com altifalantes, mobilizando os moradores para a projecção do filme,
logo mais à noitinha – uma “estreia mundial!”, alertava o megafone elétrico. E
era a pura verdade!
Quarenta e tantos anos depois, leio uma
notícia triste e velha, de 2011, pescada por acaso na internet: o divertido Cinemar,
com seus 900 lugares, dos quais nem unzinho ficou desocupado naquela noite de
1975, não existe mais:
sofreu um incêndio e foi demolido!
A mais de treze mil quilómetros de distância, às margens
do Pacífico, sinto uma pontada no coração. Peniche perdeu a sua única sala de
cinema, o que me soa como maldosa metáfora do que segue.
É que aquela imensa tela à nossa frente, que
um dia foi alva como o leite das virgens, com o passar do tempo, impregna e
energiza-se com tantas epopeias, tragédias, sonhos e estórias de amor, quantos
foram os filmes nela projectados. Se não recebe mais o facho de luz saltitante,
todas aquelas estórias vão murchando e descaindo do pano feito folhas mortas.
Alguma leitora e algum leitor devem lembrar-se
do fervedouro na plateia da sala, toda vez que Alfredo, o projeccionista,
preparava a exibição de um novo filme em “Cinema Paradiso”, de Giuseppe
Tornatore.
Pois essa foi a algazarra antes e durante a projeção no
“Cinemar” de Peniche! Quando começaram a aparecer na tela os primeiros rostos
de pescadores e suas famílias, filmados no verão de 1974, a sala encheu-se de
burburinho, virou Babel: “Eia pá, olha aí o Manoel da Furninha!” - assobios e
gargalhadas tonitruanntes. E assim sucessivamente, até o final da exibição.
Cinema é isso: não apenas a acção na tela,
mas seu imediato processamento na plateia.
Na verdade, o filme começava na Alemanha,
onde vivia o seu protagonista, o emigrante português Antoninho, de sobrenome
que os anos apagaram, porque não lembro mais.
Eu o conhecera na Associação Portuguesa de
Hamburgo, onde costumava matar as saudades de ouvir e falar o Português, apesar
dessas tantas dissonâncias no mesmo vernáculo, pois uma frase lusitana tão
prosaica como “um puto estava na bicha para comprar rebuçados”, no Brasil pode
custar ao narrador uma queixa policial por
atentado ao pudor ou um dente quebrado.
Mas voltando ao Antoninho.
Era um metalúrgico especializado em soldas de
oleodutos, criado
na Amadora. Homem circunspecto, comunista com ares de
desconfiado, quando tinha bebido uma bagaceira, saía-se com essa: “Por
obrigação, sou do partido, mas se fore para brigare, prefiro a LUARE!” - e
ria-se.
A LUAR era acrónimo de uma tal “Liga de
Unidade e Acção Revolucionária”, criada por exilados portugueses na França, que
se se celebrizara com algumas acções armadas contra a ditadura Salazar.
Fazia anos que Antoninho não pisara o chão de
seu pais, onde anti-fascistas como ele não eram tratados propriamente com
pão-de-ló. Por isso, a ideia subjacente ao filme, era deixar os seus olhos
narrarem seu primeiro regresso à terra natal, três meses após o 25 de Abril. É
o que dizia o plano de produção, mas seu olhar não se manteve perseverante
sequer até a metade da acção, porque, uma vez em Portugal, as agendas do
casting e as vontades do astro não mais coincidiram - e a narrativa desandou ao sabor do acaso.
De manifestações em Lisboa, encabeçadas pelos
velhos tanques do RALIS – o lendário regimento de artilharia de Lisboa – por
cortadores de cortiça e cooperativas no Alentejo, do Baleizão de Catarina Eufémia
aos pescadores de Peniche, o filme, rodado em película Super-8 e ampliado para
16mm, foi uma alegre colcha de retalhos, colectados no olho do furação
lusitano.
Crónica da comédia anunciada, a sua apoteose,
no entanto, foi a antecipação do enredo de um hilariante filme brasileiro de
1977: “Ladrões de Cinema”: durante o carnaval, no Rio de Janeiro, uma equipe de
cineastas norte-americanos tem o seu material de filmagem roubado por um bloco
fantasiado de índios, que os estrangeiros documentavam. Os ladrões, favelados
do morro do Pavãozinho, resolvem então montar um filme tendo por tema a
Inconfidência Mineira.
Explico. “Queremos que esta terra seja nossa”
era uma produção da Academia Alemã de Cinema e Televisão (DFFB), em Berlim, e
valia nota ou crédito no curriculo. Tinha como co-diretores dois alunos. Um
deles era eu, e meu sócio no projecto, um aluno alemão.
Durante as flmagens já tinhamos tido nossos
“arranca-rabos”, pois o alemão simpatizava teimosamente com o PCP e a sua
narrativa do 25 de Abril, enquanto meu olhar deslizava com afecto pelos
movimentos sociais autónomos.
Fruto de um acordo, no verão de 1975 retornei
a Portugal com o filme editado, para uma tournée de estreias, ou mais
precisamente, de “devolução” às dezenas de personagens do filme, de suas
próprias imagens. Era uma prestação de contas, sempre trabalhei assim.
E, então, ocorreu o inusitado.
Por intermédio de uma cidadã alemã, para mim
ilustre desconhecida, em Lisboa recebi um bilhete do meu sócio, informando-me
que mudara de planos e resolvera, ele também, passear em Portugal, pedindo-me
emprestada por um dia a cópia do filme. Que prontamente enviei, sem nunca mais
recebê-la de volta.
Mordido de ciúmes - ou saberão os deuses por
que espécie de mosca - o “ladrão de cinema” retornara a Berlim, a cópia do
filme debaixo do braço – episódio no qual logo intuí a continuação com um novo
filme, algo assim como “A terra enfim é nossa, mas roubaram a escritura”.
Expropriado de meu filme – perguntei-me: por que é o gajo
não corta o carretel ao meio, metade para cada um? - durante semanas deambulei sozinho
por fábricas, campos e quartéis, pedindo desculpas
por ter que descumprir a projeção prometida.
Durante as minhas incursões em terreno
revolucionário, fui “adoptado” pelo Quartel do Regimento de Engenharia da
Pontinha, cuja guarda batia continência quando eu cruzava o arco de entrada da
guarnição em meu Fiat 127, verde-oliva, sem jamais pedir-me qualquer documento
de identificação - tratamento carinhoso da tropa e de seu comandante, que certo dia compensei com
um carregamento de melões, doces e fragrantes, colhidos e pagos a uma
cooperativa do Alentejo – apertos de mão, risos e abraços que são indeléveis e
não têm preço.
Mas é preciso advertir: apesar de homónimo, o
elégico quartel nada tinha a ver com o risivel “Principado da Pontinha", uma extensão rochosa do Funchal, na ilha da Madeira, declarada “independente” em 2007, e
regida pelo comprador e auto-proclamado “D. Renato Barros I, Príncipe do Ilhéu
da Pontinha”.
D. Renato de Barros tem apenas 178 metros
quadrados para defender, não precisa de forças armadas. bastam-lhe as presas de
alguns Rottweilers.
É preciso admitir que os portugueses têm refinado senso
de humor, já o “Verão Quente” de 1975
não tinha graça nenhuma.
Embora pequemos, todos, com nossa memória curta, jamais
esquecerei a imagem do porta-aviões “Saratoga” fundeado no Tejo.
Meses antes, chegara a Lisboa, para assumir o
cargo de embaixador dos EUA em Portugal, o agente Frank Carlucci, acompanhado
de 80 ex-funcionários dos serviços de inteligência brasileirois. Sua missão: evitar
a radicalização do MFA, infiltrando e dividindo-o.
A sua carreira pregressa já o tornara personagem coadjuvante, digno de uma
narrativa policial do quilate de “O espião que saiu do frio”, de John Le Carré.
Nos anos 1950, servira em Johannesburgo e em
Leopoldville, que deixou em fuga como suspeito pelo assassinato de Patrice
Lumumba. No início dos anos 1960, estava na Tansânia, de onde é expulso devido
ao conluio com a tentativa fracassada de golpe contra o presidente Julius
Nyerere.
Em
1965, Carlucci chegava ao Brasil como adido militar dos EUA e a missão do
general Vernon Walters, de “supervisar a complicada situação política” após o
golpe militar de 31 de Março de 1964, com a implantação da ditadura.
O
comandante do quartel da Pontinha certamente não lembrava do portifolio do mal-afamado futuro director
da CIA, disfarçado de embaixador, mas temia o pior.
Talvez por isso, na manhã de outro domingo ensolarado,
que jamais se apagará em minha memória, em assembleia com os moradores da
freguesia e a Constituição Portuguesa na mão, o militar celebrava um acto
inédito na história da Europa do pós-guerra: entregava armas ao povo, para a
defesa de seu país.
“Extremista”, o comandante?
Respondo a insinuação com outra pregunta: E deveria
esperar que os canhões do Saratoga, apontados sobre Lisboa, disparassem seu
primeiro tiro?
Deveria, sim, pois era um bluff: o primeiro tiro saiu do
cano de uma arma dos insuspeitos Comandos da Amadora.” Frederico Fülgraff
Extraordinária, fantástica, esplendorosa narrativa dos tempos do 25 de Abril, por Frederico Füllgraff, repleta de fina ironia!
ResponderEliminarA memória de um tempo no coração de um excelente cronista. Tempo português cheio de estórias. Obrigada.
EliminarÉ um banquete ler Frederico. Sua linguagem é um caleidoscópio, refletindo as luzes da cultura para todos os lados. Sua estatura intelectual me faz lembrar Emmanuel Swedenborg, sem sua essência espiritualista, é claro. Como o sábio sueco ele se alimenta de um amontoado tão grande de cultura que uma frase atropela a outra, pedindo passagem para se expressar num desfile fascinante de imagens irônicas e originais e de personagens pinçados com seus excêntricos dossiês, para compor os enredos mais intrigantes e encantadores das suas histórias E tudo o que ele escreve é assim.
ResponderEliminarNão conheço a intimidade dos fatos colhidos entre as pétalas da Revolução dos Cravos, mas conheço a intimidade intelectual de Frederico e se ele receia sucumbir no saudosismo da sua Lisboa de 1975, eu também tenho saudades dos fins de tardes em que trocávamos figurinhas no Bar Stuart, em Curitiba, nos anos, ainda recentes, que precederam sua ida para o Chile. Parte do seu tesouro está comigo. São os livros que deixou sobre minha guarda antes de partir. Mas isso é muito pouco para o coração de um amigo.
Manoel de Andrade
Comovi-me ao ler o que escreveu sobre o Frederico, e perceber a Amizade que tem por ele... tudo o que o Frederico escreve é sem dúvida de um traço cheio de criatividade, imaginação, ironia por vezes, profundo, como o texto sobre Hiroshima e Nagasaki...o Caminho de Tula... que nos deleita e faz ter vontade de ler mais e mais...
ResponderEliminarMagnifico. Como consegue um livre-pensador, raiz e membros de várias culturas e países heterogéneos entre si, conjugar factos crus e memórias culturais num só cérebro, sem perder as chaves dos cálices culturais, sem necessitar de violar a coerência das hospedas terras, salvaguardando sempre a parte poética e a razão política dessas mesma geografias.
ResponderEliminarAgradeço ao Frederico ter-me enviado este texto. Aqui lhe deixo um abraço amigo e a certeza de companheirismo na senda do humanismo socialmente sustentável.
O respeito pelo homem e a honra de o servir.
Fernando Oliveira