Carta de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz ( 1.03.1920)
Ofelinha
"Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de "razões" tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ofelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente, necessidade ( a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus que é preciso " entalar".
Por que não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal - nem a si , nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu. Eu próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me sem que eu , a não ser por amá-la, o tenha merecido , e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim...
Aí fica o " documento escrito" que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugénio Silva.
Fernando Pessoa
No dia de S. Valentim, dia dos namorados , os restos mortais de Ofélia Queiroz, a namorada de Fernando Pessoa , foram trasladados para junto da família do poeta, no âmbito de uma homenagem promovida pela Câmara Municipal de Lisboa.
Eis a reportagem publicada no Diário de Notícias, no dia 15.02.2016 assinada por Mariana Pereira.
Eis a reportagem publicada no Diário de Notícias, no dia 15.02.2016 assinada por Mariana Pereira.
"Sabia de cor todas as cartas que o poeta lhe
escreveu. Os restos mortais de Ofélia Queiroz foram trasladados para junto da
família dele.
Ainda que Ofélia Queiroz não tivesse feito mais
nada com a sua vida, seria, ainda assim, aquela que fez um dos maiores poetas
da língua portuguesa referir-se a si mesmo como "Nininho" - que
"é pequinininho!" - ou a ela como "Bébézinho". Foi aquela
que arrancou ao autor da Mensagem ou do Livro do Desassossego "Jinhos,
jinhos e mais jinhos". E por isso - e porque era Dia de São Valentim -, os
restos mortais dessa eterna namorada de Fernando Pessoa foram trasladados nesta
semana para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde ontem( 14 de Fevereiro de 2016) foram celebrados. É
ali também que jazem os familiares do poeta e onde o seu corpo esteve, antes de
ser transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1985.
Na intenção de a pôr a ela, que morreu em 1991 aos
91 anos, próxima de Pessoa - e perante a impossibilidade de a fazer entrar nos
Jerónimos -, aquele era o sítio. Os seus restos mortais foram trasladados nesta
semana - exumados no cemitério do Alto de São João em 2014 - para os Prazeres.
Às 14.00 de 14 de Fevereiro de 2016, quando o sacerdote José Tolentino Mendonça
celebrava a missa evocando "uma das mais belas histórias de
namorados", Ofélia e Fernando, "duas pessoas que parecem não ser
deste mundo", começava a homenagem, promovida pela Câmara Municipal de
Lisboa, à rapariga que, aos 19 anos respondeu a um anúncio de emprego no
jornal. Aquele que a levaria ao escritório onde conheceu Fernando Pessoa, de
quem se sonhou noiva e com quem trocou uma das correspondências mais lembradas
quando de cartas de amor se trata.
"Falava de Fernando como se ele tivesse ido
ali ao lado comprar um maço de tabaco"
Namoraram, acabaram, tornaram a namorar e a acabar.
Três anos depois da morte do poeta, Ofélia casou com Augusto Eduardo Soares.
"Penso que a Ofélia amava mesmo Fernando Pessoa. Ele queria amar. Tentou
duas vezes. Mas não conseguia entregar-se", diz Richard Zenith, editor e
tradutor do poeta português, debaixo de um guarda-chuva. Visitávamos a
sepultura do avô paterno de Pessoa e o jazigo dos seus avós maternos. Já a
actriz e deputada Inês de Medeiros lera um texto de Eduardo Lourenço; já Manuela
Parreira, autora de Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz lembrava
as memórias de quem dizia que Ofélia falava "de Fernando como se ele
tivesse ido ali ao lado comprar um maço de tabaco".
31 de Maio de 1920. De Fernando. "Venho só
quevê pâ dizê ó Bébézinho que gostei muito da catinha d"ella. Oh! E tambem
tive munta pena de não tá ó pé do Bébé pâ le dá jinhos." Foram cartas como
estas que os actores Inês de Medeiros e Pedro Górgia leram, ainda na Capela dos
Prazeres. Uma amostra de uma correspondência que conta, entre cartas, postais e
bilhetes, 348 documentos.
A sobrinha de Ofélia e o sobrinho de Fernando
estavam sentados lado a lado. Graça Queiroz e Luís Miguel Rosa Dias. A
sobrinha-neta da eterna namorada de Pessoa, e filha de Carlos Queiroz, de quem
o poeta foi muito amigo, conta que a "tia Ofélia", "quando já
tinha 90 anos, dizia de cor as cartas todas que recebeu dele, [que eram] 50 e
tal. Sabia de cor todos os poemas que ele lhe dedicou. Tinha uma cabeça
extraordinária..."
Quando lhe perguntamos pela possível estranheza de,
tendo sido casada, ser agora transladada para o sítio associado à família de
Pessoa, Graça Queiroz responde: "Faz imenso sentido que fique aqui, acho
que ela ia adorar. Viveu até morrer como se ainda houvesse uma possibilidade de
casarem". Ainda que, no fundo, "ela soube sempre, mesmo muito cedo,
que ele era feito para outras coisas. Conta que "ela estava sempre a falar
nele, estava sempre a contar a história. Sei-a de cor e salteado." E até
Soares, com quem casou, "um homem fantástico que a adorava",
"encarregava-se de a informar de tudo o que saia no jornal do Fernando
Pessoa". Mariana Pereira, DN
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