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Cândida Ventura ,em 30 de Junho de 2011, aos 93 anos |
Cândida Ventura faleceu, hoje, de madrugada, no Hospital de Portimão. Tinha 97 anos.
Mulher de grande personalidade soube dar significado à palavra Liberdade. Lutou nas fileiras do PCP, quando a utopia de um mundo melhor se definia sob a bandeira vermelha e Portugal estava capturado pelas redes da Ditadura. Deixou uma vida para viver uma outra na clandestinidade. Foi a primeira mulher a ascender à direcção do Partido Comunista. Foi denunciada, presa e torturada. Resistiu à indignidade, à injúria e à força vil dos algozes que a acorrentaram .
Partiu para o exílio e durante longos anos desenvolveu grande actividade, na antiga Checoslováquia.
Cândida Ventura regressou a Portugal, após a revolução de Abril. Conheci-a e tive o prazer de partilhar momentos de intensa e rica rememoração de um longo passado que narrou em livro. Registei alguns desses momentos.
Cândida Ventura era uma mulher viva, culta e inteligente. Gostava da vida . Celebrava-a todos os dias.
Era um prazer escutá-la, ao longo dos anos em que participou na Tertúlia que realizávamos mensalmente. Estar entre amigos e discernir sobre o mundo era-lhe de singular importância.
Partiu , hoje, uma amiga. Uma amiga que leva uma história maior que partilhou comigo. Fico muito mais pobre. A saudade é já a lembrança de a não ter aqui.
Adeus amiga. Até sempre Cândida Ventura.
Cândida
Margarida Ventura nasceu a 30 de Junho de 1918, em Lourenço Marques,
Moçambique. Era ainda criança, quando os pais regressaram a Portugal e se
instalaram nas Caldas de Monchique (Algarve), onde a mãe passou a exercer a sua
profissão, Professora do Ensino Primário, e o pai a laborar como funcionário da Administração
das Termas das Caldas. A infância foi
passada neste local que lhe propiciou um
crescimento saudável e frutuoso.
A
influência do pai , homem culto e defensor de
grandes causas, seria marcante no seu percurso. A serenidade interior que sempre difundiu, foi para
Cândida Ventura a trave mestra do seu desenvolvimento, pelo que o considera o
exemplo maior da sua vida.
Em
1929, com 11 anos de idade, é internada no Instituto do Professorado Primário,
em Lisboa , a fim de frequentar o Liceu
Maria Amália Vaz de Carvalho.
Em
1936, entrou para a Faculdade de Letras de
Lisboa e, no ano seguinte, aderiu ao Partido Comunista Português. Nessa
época, um forte interesse pelas questões sociais e políticas já fazia parte do seu quotidiano. Eclodira a
Guerra Civil de Espanha e todas as
informações que se obtinham eram partilhadas e analisadas diariamente, no
claustro da Faculdade, com os colegas mais próximos onde se destacavam Magalhães Godinho, Magalhães Vilhena, Pilar
Ribeiro, Alberto Araújo, Frederico Alves, Hugo Baptista Ribeiro, Maria Luísa
Lami e Piteira Santos com quem casaria mais tarde.
Magalhães
Vilhena e Magalhães Godinho foram os colegas que mais privaram com Cândida Ventura
devido ao papel importante que cada um desempenhou. Magalhães Vilhena foi o colega
mentor político que lhe permitiu o acesso à doutrina marxista, fornecendo-lhe as
obras de referência. Magalhães Godinho foi o colega amigo que com ela descobriu
e abraçou as primeiras causas políticas.
Tendo
efectuado a transferência para Coimbra , terminou, em 1943, a licenciatura em
Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra, após ter desenvolvido uma
acção relevante quer a nível estudantil, quer a nível sócio-partidário.
Dinamizou as manifestações e greves estudantis.
Integrou diversas organizações académicas tais como a Federação Académica de
Solidariedade, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e a Associação
Portuguesa para a Paz. Orientou o trabalho do Socorro Vermelho Internacional e participou na
reorganização do Partido Comunista.
Promoveu várias conferências,
cursos de Alfabetização, de Primeiros Socorros e introduziu, nas Sociedades
Recreativas, os “ Clubes de Matemática”.
Detentora
de uma excepcional argúcia e de uma sensibilidade jornalística notável,
integrou a redacção do jornal “ O Diabo”, publicação progressista, difusora dos
ideais socialistas, onde escreviam além de Manuel Campos Lima , Director e
posteriormente seu cunhado, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da
Fonseca e muitos outros intelectuais da Resistência Portuguesa. Alguns anos
mais tarde, durante a Ocupação Checa, voltaria a escrever para este jornal,
numa rubrica semanal intitulada “ Crónicas de Leste”.
No
dia em que concluiu a Licenciatura , foi convidada por aquele que seria um
perene e fraterno amigo, José Gregório,
membro do Comité Central do PCP, a participar, de imediato, na
organização das greves operárias
nacionais que tinham começado na zona industrial do Barreiro. A partir desse momento,
o movimento grevista coordenado por José Gregório, Cândida Ventura e outro
membro do PCP alastrou às Minas de S.
Pedro da Cova , a toda a região têxtil
do Norte incluindo a zona do calçado, São João da Madeira. Quando terminada
essa actividade, passou à clandestinidade como funcionária do Partido,
novamente por proposta de José Gregório.
Cândida
Ventura afirmava-se como uma mulher de vanguarda, uma mulher de forte
personalidade, uma verdadeira mulher para além do seu tempo.
Membro
do Comité Central do PCP desde 1949, ( a
primeira mulher que ascendeu à mais
elevada estrutura do Partido após a respectiva reorganização) , foi-lhe
atribuído o controle da organização
operária da Zona Norte seguido pelo
controle da Zona de Lisboa,
controle que foi sucessivamente alternando.
Tendo
em conta o universo das casas clandestinas, criou a publicação “Três Páginas”
destinada às mulheres aí residentes, a fim de
promover o respectivo acesso à informação. Foram publicados 68 números,
entre Janeiro de 1946 e Junho de 1956. Sucedeu-lhe a publicação, “ A Voz das
Camaradas das Casas do Partido”, que se
manteve em laboração até 1970.
Cândida
Ventura permaneceu ininterruptamente dezassete anos em efectiva actividade na
clandestinidade. Durante esse período, foi acusada duas vezes de ter
desenvolvido trabalho fraccional por ter proferido algumas opiniões divergentes daquelas que eram oficializadas pelo Partido. Na
primeira acusação , ocorrida no ano de 1954 ,foi expulsa do Comité Central e
remetida para a Organização da Margem
Sul do Tejo. Controlar a organização da CUF, da CP, da Indústria Corticeira na
Zona Industrial do Barreiro e arredores foi a missão que passou a executar,
enquanto e apenas na qualidade de funcionária do Partido.
Foi
reabilitada das acusações de trabalho fraccional, após a morte de Staline, tendo
sido reintegrada no Comité Central e, em jeito de recompensa, foi convidada a
visitar a URSS. Conhecer a URSS era,
então , o prémio maior para qualquer comunista e para Cândida Ventura surgia ainda acrescido pela possibilidade de esclarecer algumas dúvidas relativas à falta de transparência da actuação
doutrinária pela grande pátria marxista.
Logo
após ter regressado da URSS e de Praga, numa
reunião do Comité Central do PCP, é novamente acusada de trabalho fraccional . Não
lhe foi aplicada qualquer sanção porque teve o apoio e defesa de três membros
do Comité, presentes na reunião, em que se destacou a forte e solidária
intervenção de Guilherme da Costa Carvalho, tendo-se optado pela falta de
fundamentação na acusação.
Em
Agosto de 1960, quando se dirigia para um encontro, é presa pela PIDE e
sujeita a torturas extremas, brutais e violentas.
No seu livro “ A Resistência em Portugal “, José Dias Coelho afirma:” O seu porte na polícia e firmeza na prisão torna-a exemplo de dignidade
e patriotismo para todos os portugueses antifascistas.”
Julgada
e condenada a 5 anos de prisão, sairia em liberdade condicional em 1963 , por
se encontrar em perigo de vida, após ter sido internada no Hospital da Ordem
Terceira, em Lisboa.
No
“Dicionário de História do Estado Novo”, Vol.I , Fernando Rosas escreveu sobre
esta prática para com os presos
políticos: “(…) outros ainda foram postos
em liberdade em estado de saúde muito grave, temendo a polícia pelo seu
provável falecimento em cárcere, como Cândida Ventura (…).” Entretanto, no nº 300 do jornal “Avante” vem publicado um artigo sobre a acção desenvolvida por
Cândida Ventura em prol do Partido e dos portugueses , exortando “todos os portugueses corajosos e para todas
as mulheres generosas a fim de que
exijam a liberdade para Cândida Ventura”.
Em
1964, através da acção corajosa da
família e de um solidário movimento
popular, obteve autorização para receber
tratamento em Paris. Daí, partiu para
Moscovo onde ficou internada num hospital , vindo a convalescer em Sochi,
estância turística situada na orla do Mar Negro.
Em
1965, foi para Praga , Checoslováquia,
onde permaneceu até 1975 como representante do Partido Comunista Português
junto do Comité Central do Partido
Checoslovaco e do Partido Operário Polaco e, cumulativamente, fazendo parte do Conselho de Redacção da Revista Internacional ““Problemas da Paz e do
Socialismo”. Visitou, com frequência, a URSS e outros países de Leste, nomeadamente a Polónia, a Bulgária, a RDA, a
Roménia e a Hungria. Assistiu e participou no princípio e no fim
da liberalização checa, na “ Primavera
de Praga”, na luta contra a ocupação da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia e posterior “normalização”.
Em
1975 , regressou a Portugal. As descobertas que fizera ao longo de vários
anos tinham-na afastado definitivamente da
dogmática cartilha comunista, pelo que abandonou o Partido, em 1976. Todavia,
foi apenas em 1981, durante um Comício de solidariedade ao Povo Polaco que Cândida
Ventura decidiu anunciar publicamente a sua demissão do PCP, afirmando que abandonara o Partido ” por discordar dos seus processos
e orientação e pela sua experiência de vida nos países do «socialismo
real» .
Livre
de quaisquer amarras partidárias,
concorrera, em 1976, ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros onde a sua candidatura viria a ser sucessivamente
sonegada por um funcionário militante do
PCP e também se apresentara ao Concurso de Professores para o Ensino
Secundário. Nesse ano, foi colocada como Professora de História e de Introdução
à Política, no Liceu de Portimão. Mais tarde, e após várias candidaturas, obteve
colocação no Ministério dos Negócios Estrangeiros, no extinto Gabinete de
Estudos e Planeamento, vindo a ser
destacada ulteriormente para a Direcção Geral das Relações Culturais Externas, onde
permaneceu até atingir o limite de idade,
imposto para a aposentação.
Em
Portimão , além da docência, iniciou um processo de apoio aos emigrantes de
Leste, ministrando-lhes aulas de Português e de integração social.
Ao
longo da sua vida , Cândida Ventura lutou afincadamente pela justiça social e
pela liberdade . A militância ideológica permitiu-lhe a abertura a novos
horizontes e a um continuado exercício vigilante da condição humana que foi
sempre acompanhado por uma imensa curiosidade
pelo Saber, pelo Conhecimento, enquanto requisitos para uma realização e actuação
plena e eficaz. Assim, já na década de 80, inscreveu-se na Universidade de
Nanterre para realizar um Doutoramento
em Sociologia Política, orientado pela Professora Doutora Annie Kriegel,
especialista em Movimento Comunista Internacional.
Em
carta dirigida ao reitor da Universidade, Annie Kriegel afirmou sobre a tese de Cândida Ventura: “(..) C’ est là une étude remarquable et
dont j’ attends beaucoup . Sa connaissance du terrain, sa large expérience
linguistique , le caractère exceptionnellement étendu de son savoir
en la matière font de Mme Cândida
Ventura un chercheur de qualité rare.(…) »
Cândida
Ventura não pode concluir o Doutoramento devido à morte inesperada de Annie
Kriegel, já que o seu objectivo não era a obtenção de um novo título académico.
O que a norteava e o que a estimulava era o Conhecimento e o privilégio de
poder trabalhar com aquela prodigiosa investigadora e professora, Annie
Kriegel,. Em 1986, obteve, contudo, um DEA, Diplôme d’ Etudes Approfondies , em
Sociologia Política pela Universidade de Nanterre.
Em 13
de Novembro de 2009, em Bratislava, na Eslováquia, Cândida Ventura, convidada
da cerimónia oficial comemorativa do 20º Aniversário da Independência, ( Conferência Governamental), foi homenageada
pelo governo eslovaco devido ao importante e corajoso trabalho que realizou ao
longo de vários anos na defesa e
promoção de um verdadeiro socialismo
onde a Liberdade pudesse ser efectivamente usufruída por todos os cidadãos. Nessa cerimónia, foi-lhe
atribuída uma medalha honrosa, comemorativa da Fundação Alexander Dubcek, com a
seguinte justificação: “A Fundação Alexander Dubcek atribui a medalha
comemorativa a Cândida Ventura: A medalha
é concedida pelo apoio efectivo ao movimento de regeneração de 1968, na
Checolosváquia, pelo apoio à política de reformas de Alexander Dubcek, e pelo
esforço de conservação do seu legado e das suas ideias humanistas e de
solidariedade na consciência dos cidadãos europeus e do seu Portugal natal. Com
gratidão e consideração. MU Dr.
Pavol Dubcek, Presidente da Associação (Fundação) Alexander Dubcek, Novembro
de 2009”.
O seu nome, juntamente com outros de figuras relevantes, vem impresso no livro “Alexander Dubcek, Político, Homem de Estado,
Humanista” onde estão igualmente impressas as seguintes dedicatórias:
1ª -
Dedicatória do Professor Laluha : “ À
estimada Sra. Cândida Ventura , com a maior consideração e os meus
agradecimentos de fidelidade às ideias da Primavera de Praga em 1968 e do
Sr. Alexander Dubcek. Prof,. Laluha
, Bratislava ,13/11/2009”
2ª
- Dedicatória do Dr. Pavol Dubcek (Pag. 11) “Com a consideração
profunda , dedica Pavol Dubcek:…O meu
agradecimento vai também para todos os membros da Internacional Socialista,
para os amigos Italianos, Espanhóis, Portugueses e mais admiradores de
Alexander Dubcek, pelo reconhecimento e apoio moral do exterior. Em particular
quero expressar o meu apreço e agradecimento pelo trabalho e empenho da Sra.
Cândida A. Ventura de Portugal, nomeadamente pela angariação dos meios financeiros
que ajudaram à publicação desta colectânea.”
Cândida Ventura vive actualmente em Portimão. Vai
completar 93 anos, em 30 de Junho, e continua a ser uma mulher culta, dinâmica e
impulsionadora de acções que promovam os direitos humanos. O seu percurso
vivencial traduz a história do século XX e XXI. Ouvi-la é presenciar o passado
histórico recente. Escutá-la é não
apagar a memória.
Portimão, 5.6.2011
Maria José Vieira de Sousa, in "O socialismo que eu vivi" de Cândida Ventura, Editora Bizâncio