NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a hora!
Valete, Fratres.
Fernando Pessoa, in Mensagem - (III - Os tempos), Edições Ática,Lisboa, Junho de 1959
A voz de Amélia Muge enche de sonoridade o poema Nevoeiro de Fernando Pessoa.
Entre o deserto e o deserto
numa viagem sem destino
procuras a água e o vinho
nenhuma pista nenhum signo
vivo de pouco ou de nada
sem nunca ter um lugar
sempre a insónia mais branca
e a sede de um novo ar
escurece já o olvido
e é noite quando amanhece
nenhum barco traz aquela
por quem a escrita se tece
talvez esteja perdido
como um náufrago na areia
talvez me reste a canção
e o vento que desenleia
Entre o deserto e o deserto
Entre o deserto e o deserto
António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001
Amélia Muge, em Entre o deserto e o deserto, canção do Álbum "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006.
Daqui deste deserto em que persisto
Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra
escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras
Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto
Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto
As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito
Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único do abismo branco
Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total
Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – págs. 160-162
Um dia e outro dia
A surpresa perdura
Raiada cada vez mais
De negro
Raiada cada vez mais
De negro
As águas prosseguem
indiferentes dir-se-ia
A uma e outra margem
Que não se encontrarão
Nunca
É tudo cada vez menos
Compreensível
Os olhos permanecem
Inteiramente abertos
Ao assombro
Segundo tudo indica
O rio não tem princípio
Nem fim
Nem depende do ser
Londres, 20 de Setembro 98
Alberto Lacerda, in "Horizonte”,
QUERIA DE TI UM PAÍS DE BONDADE E DE BRUMA
queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma
I
Quando aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam
.........................
VII
Queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma
........................
XIX
XIX
A noite como um prego a noite louca
A noite com árvores na boca
.......................
XX
Arrumaram-se à luz de um candeeiro
a recolher esmolas.
Mas quem passa, passa. Nem sempre há dinheiro.
É assim mesmo!... — Bolas!
a recolher esmolas.
Mas quem passa, passa. Nem sempre há dinheiro.
É assim mesmo!... — Bolas!
Não fazem pena. Não fazem coisa alguma.
Estão ali.
Ela, tem a boca cheia de espuma
e ele, cego, sorri.
Mário Cesariny de Vasconcelos, in Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, Manual de Prestidigitação, (Antologia Poética),Ed. Assírio&Alvim, Lisboa
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