PEQUENAS
NOTAS
PORES DO SOL
"Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o
pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e
imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os
trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte num ar de ameaça, e outros
doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a
montanha enegrecida e compacta.
Tardes violetas, ou este ar tão carregado de salitre
que toma a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e
os alicerces dos velhos fortes abandonados ...
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo,
e uma luz sinistra.
Ventania. Estratos monstruosos correm do forte.
Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer...
Há na areia uns charcos onde se reflecte o universo
– o céu, a luz, o poente. Não bolem e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E
como o poente é oiro fundido sobre o mar inteiramente verde, que a noite vai
empolgar não tarda, os charcos, entre a areia húmida e escura, teimam em
guardar a luz concentrada e esquecida.
Em todo o dia, o mar não se viu nitidamente. Névoa
esbranquiçada, grandes rolos de poeira e sol misturados, água de que se exala
um hálito verde envolvido nas ondas.
Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto
entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta
frescura extraordinária.
Agora este, teatral, com largas gambiarradas,
franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro
que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz
no mar efémero, um nada de luz no céu efémero e a montanha roxa ao fundo
prestes a desvanecer-se...
Agora é prata, daqui a pouco é oiro, e quando o Sol
desaparecer de todo, ainda o horizonte fica por muito tempo iluminado. Oiro
desvanecido e pó de água que ascende do mar. Um pouco de névoa e dois jactos projectados
no céu – verde e oiro, oiro e verde.
Esta tarde, o Sol põe-se sobre uma barra e aparece
deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por
fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande
nuvem espessa com interstícios de fogo e explode, iluminando o espaço e a água
cor de chumbo.
Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde.
Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil
escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O Sol desce pouco a pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que
liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa a meus
pés, na espuma ensanguentada, e chega ao Sol. Ó meu amor, não acredites na vida
mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora
direitos ao céu!”
Raul Brandão, in “ Os Pescadores”,1923, Livraria
Bertrand
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