Anthony
Kenny - Universidade de Oxford
"Assim como a primeira Crítica estabeleceu criticamente os
princípios sintéticos a priori da razão teórica, a Fundamentação da
Metafísica dos Costumes (1785) estabelece criticamente os princípios
sintéticos a priori da razão prática. Trata-se de uma breve e eloquente
apresentação do sistema moral de Kant.
Na moral, o ponto de partida de Kant é o de que o único bem irrestrito é
uma vontade boa. Talento, carácter, autodomínio e fortuna podem ser usados para
alcançar maus fins; até mesmo a felicidade pode corromper. O que constitui o
bem de uma vontade boa não é o que esta alcança; a vontade boa é um bem em si e
por si.
Ainda que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento
avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de
fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos
seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade […] ela ficaria
brilhando por si como uma jóia, como coisa que em si tem o seu pleno valor.
Não foi para procurar a felicidade que os seres humanos foram dotados de
vontade; para isso, o instinto teria sido muito mais eficiente. A razão foi-nos
dada para originar uma vontade boa não enquanto meio para outro fim qualquer,
mas boa em si. A vontade boa é o mais elevado bem e a condição de possibilidade
de todos os outros bens, incluindo a felicidade.
Que faz, pois, uma vontade ser boa em si? Para responder a esta questão,
temos de investigar o conceito de dever. Agir por dever é exibir uma
vontade boa face à adversidade. Mas temos de distinguir entre agir de acordo
com o dever e agir por dever. Um merceeiro destituído de interesse pessoal ou
um filantropo que se deleite com o contentamento alheio podem agir de acordo
com o dever. Mas acções deste tipo, por melhores e por mais agradáveis que
sejam não têm, de acordo com Kant, valor moral. O nosso carácter só mostra ter
valor quando alguém pratica o bem não por inclinação mas por dever — quando,
por exemplo, um homem que perdeu o gosto pela vida e anseia pela morte continua
a dar o seu melhor para preservar a sua própria vida, de acordo com a lei
moral.
A doutrina de Kant é, a este respeito, completamente oposta à de
Aristóteles, que defendia não serem as pessoas realmente virtuosas desde que o
exercício da virtude fosse contra a sua natureza; a pessoa verdadeiramente
virtuosa gosta decididamente de praticar actos virtuosos. Para Kant, por outro
lado, é a dificuldade de praticar o bem que é a verdadeira marca da virtude.
Kant dá-se conta de ter estabelecido padrões intimidadores de conduta moral — e
está perfeitamente disposto a considerar a possibilidade de nunca ter havido,
de facto, uma acção levada a cabo unicamente com base na moral e em função do
sentido do dever.
O que é, pois, agir por dever? Agir por dever é agir em função da
reverência pela lei moral; e a maneira de testar se estamos a agir assim é
procurar a máxima, ou princípio, com base na qual agimos, isto é, o imperativo
ao qual as nossas acções se conformam. Há dois tipos de imperativos: os
hipotéticos e os categóricos. O imperativo hipotético afirma o seguinte: se
quisermos atingir determinado fim, age desta ou daquela maneira. O imperativo
categórico diz o seguinte: independentemente do fim que desejamos atingir, age
desta ou daquela maneira. Há muitos imperativos hipotéticos porque há muitos
fins diferentes que os seres humanos podem propor-se alcançar. Há um só
imperativo categórico, que é o seguinte: "Age apenas de acordo com uma
máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que se torne uma lei universal".
Kant ilustra este princípio com vários exemplos, dos quais podemos
mencionar dois. O primeiro é este: tendo ficado sem fundos, posso cair na
tentação de pedir dinheiro emprestado, apesar de saber que não serei capaz de o
devolver. Estou a agir segundo a máxima "Sempre que pensar que tenho pouco
dinheiro, peço dinheiro emprestado e prometo pagá-lo, apesar de saber que nunca
o devolverei". Não posso querer que toda a gente aja segundo esta máxima,
pois, nesse caso, toda a instituição da promessa sucumbiria. Assim, pedir
dinheiro emprestado nestas circunstâncias violaria o imperativo categórico.
Um segundo exemplo é este: uma pessoa que esteja bem na vida e a quem
alguém em dificuldades peça ajuda pode cair na tentação de responder "Que
me interessa isso? Que todos sejam tão felizes quanto os céus quiserem ou
quanto o conseguirem; não o prejudicarei, mas também não o ajudo". Esta
pessoa não pode querer que esta máxima seja universalizada porque pode surgir
uma situação na qual ela própria precise do amor e da simpatia de outras.
Estes casos ilustram duas maneiras diferentes a que o imperativo
categórico se aplica. No primeiro caso, a máxima não pode ser universalizada
porque a sua universalização implicaria uma contradição (se ninguém cumprir as
suas promessas, as próprias promessas deixam de existir). No segundo caso, a
máxima pode ser universalizada sem contradição, mas ninguém poderia
racionalmente querer a situação que resultaria da sua universalização.
Kant afirma que os dois casos correspondem a dois tipos diferentes de deveres:
deveres estritos e deveres meritórios.
Nem todos os exemplos de Kant são convincentes. Ele defende, por exemplo,
que o imperativo categórico exclui o suicídio. Mas, por mais que o suicídio seja
um mal, nada há de autocontraditório na perspectiva do suicídio universal; e
uma pessoa suficientemente desesperada pode considerá-lo um fim a desejar
piedosamente.
Kant oferece uma formulação complementar do imperativo categórico.
"Age de tal modo que trates sempre a humanidade, quer seja na tua pessoa
quer na dos outros, nunca unicamente como meios, mas sempre ao mesmo tempo como
um fim." Kant pretende, apesar de não ter convencido muitos dos seus
leitores, que este imperativo é equivalente ao anterior e que permite retirar
as mesmas conclusões práticas. Na verdade, é mais eficaz do que o anterior para
expulsar o suicídio. Tirar a nossa própria vida, insiste Kant, é usar a nossa
própria pessoa como um meio de acabar com o nosso desconforto e angústia.
Como ser humano, afirma Kant, não sou apenas um fim em mim mesmo, sou um
membro do reino dos fins — uma associação de seres racionais sob leis comuns a
todos. A minha vontade, como se disse, é racional na medida em que as suas
máximas puderem transformar-se em leis universais. A conversa desta afirmação
diz que a lei universal é a lei feita por vontades racionais como a minha. Um
ser racional "só está sujeito a leis feitas por si mesmo e que, no
entanto, sejam universais". No reino dos fins, todos somos igualmente
legisladores e súbditos. Isto faz lembrar a vontade geral de Rousseau.
Kant conclui a exposição do seu sistema moral com um panegírico à
dignidade da virtude. No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Se
algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra coisa. O que tem
dignidade é único e não pode ser trocado; está além do preço. Há dois tipos de
preços, afirma Kant: o preço venal, que está relacionado com a satisfação da
necessidade; e o preço de sentimento, relacionado com a satisfação do gosto. A
moralidade está para lá e acima de ambos os tipos de preço.
A "moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as
únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho têm um
preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm um
preço de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bem querer
fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor intrínseco." As
palavras de Kant ecoaram ao longo do século XIX e ainda emocionam muitas
pessoas hoje em dia."
Anthony
Kenny,in História
Concisa da Filosofia Ocidental, de Anthony Kenny. Trad. Desidério
Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral
(Temas e Debates, 1999).
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