terça-feira, 16 de junho de 2015

Do nascimento da poesia e da música

Nascimento da Música

"Uma das mais recuadas imagens dos meus dias  é uma mulher a cantar. Com a sua voz antiquíssima e branca, aquela mulher, à distância  de mais de cinquenta anos , continua a embalar-me o coração. As palavras  eram de um romance popular , sumarentas, cheias de sol, falavam de amor e de morte, de paz e de guerra, de coisas que não sabia exactamente o que fossem, mas  que permaneciam em mim como pequenos nós de sombra ou breves manchas  luminosas. O tecido da vida deveria  ter a transparência daquelas palavras, já que o pulsar do universo não podia deixar de ser idêntico àquele ritmo amplo e seguro, em perpétua expansão.
A esta imagem, transbordante de ser, não tardaria a juntar-se outra, espessa e secreta: a música do harmónio. Numa aldeia  da Beira Baixa, provavelmente em Julho ou Agosto, quando a força da canícula entra  até pelas frestas  mais estreitas  da noite e nos impede de dormir, uma melodia sobe no clarão da lua , e inesperadamente acaricia o corpo pequeno, intranquilo e solitário, que era então o meu.
Acabo de falar do nascimento da poesia e da música, como se ambas  jorrassem da mesma fonte; acabo de falar da arte do desejo , embora só alguns anos mais tarde  viesse a pedir àquelas  águas  o que  outros pedem ao amor: que me matasse a sede de alegria."
Eugénio de Andrade, in " Rosto Precário", Editora Limiar, 1ª Edição, Setembro 1979, Porto


Isabel Silvestre, em " A gente não lê", uma voz que tem divulgado a música popular portuguesa. Os sons e a tradição , poesia e música, numa simbiose harmoniosa nesta grande voz de Portugal.

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