Memórias do escritor Eugénio Lisboa
17-12-2014 SÁBADO
Por Eduardo Pitta
"Há quem se interrogue com o título - Acta Est Fabula -, expressão latina que significa "A peça está representada". Deveras adequado às memórias de Eugénio Lisboa, que aos 82 anos decidiu pôr as suas em letra de forma, publicando em 2012 o primeiro dos projectados cinco volumes. O quarto saiu agora: "Acta Est Fabula. Memórias IV. Peregrinação", cobrindo os anos de 1976 a 1995, e as andanças do autor após a saída de África. A diáspora começa em Joanesburgo e termina em Londres, com intervalos em Paris e Estocolmo.
Com obra publicada desde 1957, Eugénio Lisboa não fez o percurso do literato convencional. Engenharia electrotécnica não é de uso ser a porta de entrada no milieu, e uma carreira de gestor na área dos petróleos ainda menos. Nem uma coisa nem outra impediram Lisboa (nascido em 1930) de participar de forma activa na vida cultural de Lourenço Marques. Em 1974 começa a dar aulas de literatura nas universidades de Maputo e Pretória, como depois faria em Estocolmo. Pelo meio houve Paris, cidade onde durante um ano exerce o cargo de director mundial da Compagnie Française de Pétroles. Em 1978 radica-se em Londres, como conselheiro cultural da Embaixada de Portugal. Ali viveu dezassete anos, "ricos e frutuosos". Em 1995, após o regresso a Portugal, seria presidente da Comissão Nacional da Unesco e catedrático visitante da Universidade de Aveiro. Mas o pós-Londres fica para o próximo volume.
Este intercala a narrativa memorialística com fragmentos de um "Diário" inédito dos anos de Londres, e também, sob forma diarística, o relato franco de uma viagem a Maputo em 1989, das melhores páginas que a obra contém. Mas é sobretudo nas passagens do "Diário" londrino que o autor alivia o fígado. Num país "onde abundam os especialistas em processos de intenção", Lisboa tem o mérito de dizer em voz alta o que a maioria cochicha, quer se trate de candidatos ao Panteão ou de personalidades com lugar cativo nos media, como aqueles que, sem pudor, "atordoam a nossa praça literária com o ruído wagneriano do amor por si próprios" (neste caso, Al Berto). Em clave provocatória, Lisboa sujeita Saramago, Vergílio Ferreira, Lobo Antunes, etc., a um escrutínio isento de vénia. Um dos capítulos, "Brincando (a sério) aos editores", ilustra a extrema dificuldade em impor a literatura portuguesa no mundo anglo-saxónico.
A terminar, ficando muito por dizer, gostaria de sublinhar a nitidez das reflexões pós-coloniais e, num registo pungente, confissões de natureza íntima."
Crítica de Eduardo Pitta na Revista Sábado
Acta Est Fabula. Memórias IV. Peregrinação, Eugénio Lisboa
Preço: €23,95
Nota 100%
Os editores deste blog decidiram documentar o artigo de Eduardo Pitta com um excerto do livro em análise, "Acta Est Fabula.Memórias IV. Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres." Trata-se de um dos fragmentos do "Diário" inédito que enriquece esta obra memorialística de Eugénio Lisboa.
Diário dos Últimos Tempos
"26.12.94 –
Natal. O último em Londres. Hoje, no Daily
Mail, notícia da morte do John Osborne. Detestável como pessoa e, como
dramaturgo, duvidoso que venha a ser considerado dos grandes. Mas deixou uma
marca na história, como autor de Look
Back in Anger. Nos últimos anos produziu uma autobiografia ultrajante, em dois
volumes. Julgo que não se resignou ao seu declínio, depois dos primeiros
êxitos. (…)
(…) Tchekhov
(carta a A. S. Suvorin, Dezembro de 1889): “Sinto um desejo apaixonado de me
esconder algures, durante cinco anos ou coisa, para me devotar a obra meticulosa
e séria. Preciso de estudar e de aprender o meu ABC literário porque, como
escritor, sou um completo ignoramus.” O mesmo sinto eu acerca de mim próprio.
Cinco anos – era tudo quanto pedia aos deuses. Mas cinco anos meus – sem ninguém a pedir-me coisas, a
telefonar-me, a pedir-me bibliografia, a mandar-me livros, a pedir-me
conferências. Cinco anos meus, só meus, para os encher à minha maneira. É tudo
quanto peço. Pedi-lo aos 64 anos – não é pedir muito.
No último JL o Tabucchi puxa os colarinhos ao Saramago.
E, “ma foi”, com razão. Diz-lhe, à bruta, o que eu lhe disse com jeitinho. Mas
não sei qual de nós o terá ferido mais. Depois destas duas portas abertas, não
vai faltar quem lhe diga duas verdades.
27.12.94 –
Desde o dia 21, estão connosco a Geninha, a Sara e o Frank. Isto é, a minha
produtividade baixou a zero, em termos de leitura, música e escrita. Mas ganhei
a Sara: a encarnação da graça, da vivacidade e da beleza. Conduz-nos a todos,
com o máximo de elegância e facilidade, ao mundo dela. Tudo, mas tudo se
converte em jogo – segundo regras que ela própria inventa.
28.12.94 –
Ontem, o dia em Cambridge, em casa da Manucha, com a Geninha e a Sara. E as
gatinhas da Manucha, a Welby e a Albertina. O Michael [meu genro] acaba de
perder o pai (cancro e coração, tudo junto). Almoço, conversa, troca de
presentes (desta vez deixei o feminismo na naftalina e dei-lhe [à Manucha]
discos e livros sobre gatos). A Sara entreteve-se com as gatinhas e por fim
adormeceu. À noite vi o Dick Tracy e
gravei o Othelo, com o Welles (e do
Welles).
Hoje [de
regresso a Londres] vou ao teatro com a Geninha e a Antonieta (a Sara partiu
com o pai para os lados de Birmingham). De resto, vim à Embaixada enviar uns
faxes, dar alguma informação que me pediram pelo telefone e fazer uma dúzia de
cartões de Natal.
29.12.94.
Ontem, teatro com a Geninha e a A. : The
Clandestine Marriage, com Nigel Hawthorne (of “Yes Prime Minister” fame).
Uma boa farsa com algumas interpretações notáveis.
No Evening Standard, editorial de Paul
Johnson, um dos mais horríveis personagens da feira jornalística e intelectual
britânica. Estes bichos que foram de esquerda e querem agora ganhar credenciais
de direitíssima – não há quem os agarre. Uma das consequências da sua mutação
foi passar a sofrer de anglofilia desvairadamente aguda. A
língua inglesa é “simply the best” in the world. A arte inglesa – tudo o que há de melhor no mundo. A
política inglesa, a monarquia inglesa – quem tem igual? John Major [o primeiro
ministro], é claro, é um cretino porque ainda não conseguiu o óbvio – fazer da
língua inglesa a “língua oficial” da União Europeia. Para quê tradutores?
Aprendam todos a “melhor” língua que há no mundo. Paul Johnson dixit.
13.01.95 – No
dia 9, a Geninha e a Sara partiram, de regresso a Barcelona. A casa ficou
consideravelmente mais vazia – embora francamente se não note, com as caixas
que se vão acumulando (cheias, sobretudo, de livros, de cassettes de CDs e de vídeos).
Na Embaixada,
encetei também a “limpeza” – o que não pouco me deprime.
Como, no dia
9 [de Fevereiro], abandonamos a casa em que vivemos desde 1981 (quase 14
anos…), tivemos que procurar um apartamento para nele nos aboletarmos, antes do
regresso a Lisboa. Encontrámos um magnífico, em Beckenham, mesmo ao lado do
Kelsey Park. Ficarei 10 minutos mais longe do centro de Londres do que estou
agora. Mas ficaremos optimamente instalados e com uma vizinha escocesa (e
velhota) que é uma delícia. Foi amor à primeira vista. Entretanto, vou
trabalhando, lendo e escrevendo. E vou ficando, sobretudo, cada vez mais
baralhado. Quando nos aproximamos do fim de qualquer coisa, o ideal seria
sentirmo-nos leves e livres. E eu sinto-me soterrado em papéis, livros e
objectos.
Marquei dois
bilhetes de avião para Lisboa, para o dia 10
de Fevereiro. E isto, para levar connosco o Jim. Que angústia, tudo
isto!
Manipulo um Universal Dictionary. E faço contas.
Racine tem direito a 4 linhas. Shakespeare, 18. Será que Shakespeare é 4.5
vezes maior do que Racine? Por mim, dou o autor de Hamlet na íntegra só pela Phèdre
de Racine. Mas convenho que são gostos. Gil Vicente não é mencionado. Cervantes
merece 4.5 linhas. Goethe, 9.5. Platão, 7 linhas. Einstein, 7.5 e Newton, 22.
Arquimedes, 13.5. Digam lá agora se os ingleses não gostam de proteger os
rapazes da casa! Querem mais provas? Jane Austen tem direito a 5.5 linhas, mais
uma do que Cervantes e mais 1.5 do que Racine. Será que a autora de Pride and Prejudice é mais importante do
que o autor de Andromaque? Ou ainda:
Paul Valéry tem 2.5 linhas e Claudel nem sequer é mencionado, ao passo que
Eliot tem 9.5 (mais cinco do que Racine…) e Philip Larkin, 4 (quase o dobro de
Valéry…). Fernando Pessoa é solidamente omitido. Viva a objectividade crítica.
Viva o conhecimento da cultura dos pequenos países. Viva, sobretudo, o
“fair-play”, não é? Ah, já me ia esquecendo, Agatha Ghristie tem 3 linhas,
quase tanto como Racine e mais do que Valéry, para não mencionar Claudel, o
qual, como se sabe, não existe.
Como a língua
inglesa é a mais universal das línguas, as “verdades” acima referidas têm a
máxima divulgação e há sempre quem acredite em tudo quanto aparece em letra de
forma, sobretudo, sob a forma respeitável de “dicionário”. Além do mais, o Universal Dictionary é bem apresentado e
bem distribuído pela Reader’s Digest.
Noutra
perspectiva: Marguerite Duras tem direito a 4.5 linhas (mais do que Racine),
mas Martin du Gard (infinitamente mais importante) nem sequer é mencionado.
Montherlant é também mais pequeno do que Duras (3.5 linhas) e Jouhandeau é um
“figment of the imagination). Colette é igualmente menos importante do que
Duras (3.5). Gide consegue safar-se com 5.5 (mais do que Huxley: 4.5). Sartre
apanha 8 linhas, para eterna vergonha de Gide e Valéry, mas Malraux contenta-se
com 4.5 (ainda assim, mais do que Racine). Vergílio Ferreira não aparece (como
é que lhe vou dar a notícia?) Felizmente, Saramago também não (o que sempre
adoça a pílula do Vergílio). Teria piada se aparecesse o Tabucchi (não vou
verificar, para deixar a maralha na dúvida – o Saramago vai-se roer). Eça de
Queirós… não vem. Para quê torturar-me?
O Rui Knopfli
está em casa desde anteontem. Parece um fantasma. Não come porque, segundo diz,
engolir impede-o de respirar. Tem os pulmões tapados pelo fumo. Bebe um copo de
whisky e fica aos zig-zags. Não come, não bebe e nem se fala no resto. Diz que
1995 é o ano da sua morte [morreria dois anos depois]. Não escreve, quase. Não
lê. Mete-se na cama cedo. É um nó de frustração e angústia. E, no entanto, a
vida deu-lhe tudo, sem esforço. Talento, dinheiro, reputação. E um apartamento
em Londres, com bom salário, como sempre sonhara. Dá Deus nozes…
17.1.95 –
Londres. Morreu o Torga. A notícia não foi inesperada: o Torga morria-me há já muitos anos. Mas é um
fim, apesar de tudo.
Começa a ser
intolerável o desaparecimento de referências,
à nossa volta. Ontem soube, por exemplo, que o Cardoso Pires teve um acidente
cerebral e está com impedimentos de fala. E, desde segunda feira, ando
preocupado com o Knopfli – pelo andar das coisas, não sei se durará até à minha
partida para Lisboa, em Maio. Falei ao Conselheiro e este telefonou ao primo do
Rui, em Washington. O procedimento do Knopfli é uma quase indisfarçada busca da
morte – mas por uma via pouco elegante e um tudo nada…egoísta.
Mais quem? O
David foi operado à próstata. Agora é o tempo de as árvores caírem e de ficarem
clareiras à nossa volta. Até cairmos nós. C’est pas joli. E o pior, no meu
caso, é que ainda não comecei. Isto
é, não escrevi um único dos livros que gostaria de escrever. Penso muito, no
que se refere à minha ida para Portugal, em termos de ir finalmente começar. Mas, com 65 anos, deveria
pensar em termos de ir acabar.
Contudo, não penso: sinto que é um começo. Cada um ilude-se como pode.
Mas o Torga:
não era um personagem amável. Não era simpático. E era um escritor limitado. Não tinha nem a inteligência,
nem a subtileza, nem a complexidade do Régio. Era, sim, um grande contista, com
páginas de antologia, e um prosador de uma beleza brutal e sensual, atraente e
forte. Deixa rasto na literatura – e um rasto inesquecível. Como dizia o Régio,
era um grande escritor de curto fôlego. Mas a sua Montanha tornou-se a nossa
(mítica) montanha.
26.1.95 –
Dias de atrapalhação e limpeza de papéis. No meio da confusão que é limpar a
casa e o escritório da Embaixada, antes de vir o transportador que há-de fazer
esvaziar tanto uma como o outro, ainda recebo convites para fazer palestras e
mesas redondas e escrever textos (hoje mesmo, carta da Verbo a pedir-me duas
entradas para um dicionário da literatura: uma sobre o Jogo da Cabra Cega, outra sobre Fausto José.) Neste mesmo momento,
tento escrever um prefácio curto para a antologia do Pessoa e outro para a
antologia do conto português (tudo para a Carcanet).
Quis furtar-me a “comentários de fundo”, mas o Kim Taylor insiste em que
extraia do meu texto “Pessoa, the Incurable Foreigner”, passagens relevantes
sobre a foreigness do poeta da Mensagem. E tenho que preparar palestras
ou conversas para Manchester, Sheffield, Nottingham e Londres. E só queria que
me deixassem em paz.
Há dias, no Evening Standard, uma revelação que me
não espantou: o Osborne era bissexual. Com uma nuance: tratava mal as mulheres
com quem se casou e foi sempre de um carinho pacífico para com o amante de uma
vida inteira. Era este o Osborne que dizia: “Whatever else, I have
been blessed with God’s two greatest gifts: to be born English and
heterossexual.” Vivam os angry young men! Angry? Com quem? Talvez com eles próprios…
(…)
31.01.95 –
Disse-me ontem o Hélder que o Giovani Pontiero, tradutor do Saramago, está a
morrer, de Sida. Era um homem cortês, meticuloso, amaneirado. Candidatara-se,
há anos, a tradutor do Sena (O Físico
Prodigioso), mas tanto eu como o editor (Dent & Son) rejeitámos a amostra
de tradução que nos propôs: o peculiar estilo de Sena era frontalmente
torpedeado, a favor de períodos mais curtos e…menos difíceis. Fez o mesmo ao
Saramago, que, no entanto, andava todo ufano com o serviço.
Quando, o ano
passado, escrevi a carta ao Saramago, mandei cópia ao Pontiero, para
informação. Respondeu-me cortesmente, mas a pôr-se, diplomaticamente, à margem.
No entanto, segundo o Saramago, ele fora, um pouco, parte da intriga. Coitado,
ainda assim, do Pontiero. Ajudei-o sempre que pude. E ainda não há muito,
aceitei apoiá-lo numa candidatura a um posto qualquer na Europa. Fraquezas são
apenas fraquezas e o Pontiero era, neste mundo de apressados e desatentos, um
homem atento e minucioso. Levava (ou fazia que levava) o Saramago a sério, mas
cada um tem direito às suas idiossincrasias.
O fim de
semana a tratar do certificado de saúde do Jim e a triar papéis: sacos e sacos de
páginas, suplementos literários e revistas – tudo para o lixo. Anos de
acumulação amorosa de “textos” – subitamente “eliminados”. Sinto-me
simultaneamente deprimido e libertado. Amputado, mas alado. Entenda quem puder.
O suicida talvez se sinta assim, uma vez tomada a decisão: separado dos vivos, mas eufórico. Quem sabe.
(…)
25.02.95 –
Londres. Regressei ontem à noite de Leeds, após um dia de conferências. Das
três que ouvi, destacou-se, sem dúvida, a excelente lição de Fernando Rosas,
sobre a Aliança Luso-Britânica e o Estado Novo (anos 30 a 40). Mais uma vez se
provou que os ingleses gostam de alianças e uniões (europeias)…à la carte. Para só tirarem delas o que
lhes convém. São, nisto, dum descaramento e de uma boa consciência a toda a
prova. O que lhes dá boa consciência é “saberem” que estão a servir “os
interesses britânicos” (algo que, para eles, está infinitamente acima de Deus).
Que mestres consumados em transformarem o seu egoísmo nu numa causa patriótica
e mesmo moral! (…)
15.04.95 –
Páscoa em Londres. Quase não tenho visitado este diário. Espécie de apatia em
que me colocou este estar com um pé cá e outro já em Portugal. E sem saber em
que situação vou ali estar. O que, no
fundo, me apetece é que o MNE faça a sacanice total e me ponha à chuva.
Irei para casa, ler, escrever e passear. Dá-me um certo gozo tê-los entalado
com a própria legislação que produziram, para…nos entalarem! (…)
Convém que
fique aqui registado. O secretário-geral do MNE, que é um [primitivo] de alto
calibre, telefonou-me há dias a dizer-me que dera um “parecer” sobre a minha
eventual transferência para Lisboa: que, em suma, sendo transferido, “bloquearia”
um lugar de conselheiro cultural… E, no mesmo telefonema, [como quem deita sal
na ferida e com acinte] (…), informou-me de que já telefonara ao embaixador, em
Londres, a pedir-lhe que deixasse ficar mais tempo o primo (R. M. C. K.).
[Registo aqui, em 2014, que eu resistira a uma transferência, como conselheiro
cultural, para ir trabalhar para Washington e, numa visita que fiz àquela
cidade, não “preferira” ir almoçar com ele… Os restantes comentários, no meu
diário, a esta atitude do secretário-geral- que, no final do telefonema, me
disse: “Desenrasque-se!”, assim me agradecendo dezassete anos de bons e leais
serviços – serão publicados postumamente. Para que conste.]
Comprei
ontem, num alfarrabista, uma edição de Collected
Essays, de Aldous Huxley. Que prazer ler um ensaísta inteligente e
vastamente informado! Que bem faria a leitura deste homem aos líteras que
atravancam a nossa praça literária com words,
words, words…
Sydney Smith: “Words are an amazing barrier to the
reception of truth.” Boa
purga para políticos e literatos portugueses.
Agora que
estou para deixar a loira Albion, registo aqui esta passagem de Caesar and Cleopatra, de Shaw: “This is
Britannus, my secretary. He is an islander from the westwern end in the world,
a day’s voyage from Gaul… He is a barbarian, and thinks that the customs of his
tribe are the laws of nature.”
E ainda esta, extraída da St. Joan, também de Shaw: “We are not fairly beaten, my lord. No Englishman is ever fairly beaten.”
True! Bastaria ir reler-se o que as páginas desportivas dos jornais ingleses
disseram aqui há anos de uma equipa de futebol portuguesa que bateu
folgadamente uma equipa inglesa. De usurpadores e ladrões para baixo,
chamaram-lhes tudo! Como se atreveram os ridículos portugueses a bater uma grande
e majestosa equipa inglesa?
17.04.95 –
Ontem, almoço em casa do Kim Taylor, em Sevenoaks e, depois do almoço, passeio no
parque de Knoles. Ao almoço, estava o actual “Headmaster” (Director) da escola
de Sevenoaks – que o próprio Kim dirigiu durante 14 anos. Tem cerca de 900
alunos. É uma escola privada e as propinas – sendo baratas… - são da ordem de
8000 a 9000 libras por ano. Estava ainda uma senhora de idade, Barbara não sei
quantos, viva, mexida, faladora. Numa passagem da conversa, indicou que tinha
um cancro no esófago e, noutra passagem, disse, discretamente, como quem muda
de assunto: “Para o ano que vem, é muito possível que já cá não esteja.” Canta
(ou cantava) e diz detestar Beethoven e, em particular, as sonatas para piano.
Falou-se em Wagner e, aí, ficámos todos de acordo: um insuportável chato,
pedante e ridiculamente repetitivo.
A Barbara tem
uma casa agradável (ofereceu-nos chá, depois do passeio no parque), com um
jardim soberbo e meticulosamente tratado. Tem muitos e bons livros e aguarelas.
E começa a olhar para tudo aquilo como quem se vai embora para não voltar. Uma
vida assim, no campo, agradável e quentinha. E finita.
A
Universidade de Manchester enviou ao embaixador um convite para a cerimónia de
doutoramento (honoris causa) do
Saramago. O embaixador chamou-me para me dizer que, devido a um compromisso,
não poderia ir. Preparava-se, por certo, para me pedir que o substituísse.
Antes que o fizesse, disse-lhe que, no caso vertente, não poderia ir em vez
dele (além de que não queria ir).
Contei-lhe o que se passara entre mim e o Saramago e disse-lhe que, na minha
opinião, a embaixada talvez se não devesse fazer representar. No fim de contas,
o Saramago fora insolente para a embaixada toda e não só para mim. Começou a
gaguejar: que ainda não sabia bem o que fazer. Que ia pensar. Que nem era um
admirador incondicional do Saramago. Observei-lhe que, de um modo ou de outro,
o Saramago reagiria mal: se não fosse ninguém, porque não tinha ido ninguém; se
fosse alguém, parecia incrível irem lá, depois do que se passara… (…)
Dentro de
pouco mais de um mês, deixo a Inglaterra. Vivi aqui mais tempo do que em
Portugal (mais do dobro dos anos). Sinto isto, um pouco, como uma das minhas
terras. E uma das que mais me deu.” Eugénio Lisboa , in “Acta Est Fabula, Memórias
IV- Peregrinação: Joanesburgo.Paris. Estocolmo.Londres”, Editora Opera Omnia,
Outubro de 2014, pp.467,468, 469, 470,471,472,474,475,446, 447