quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Crónicas da Infâmia


Crónicas da Infâmia
4 – De 2014. O Ano da DOR
Gostava de escrever belas frases e de tecer louvores a 2014. Não o faço. Não porque as palavras me falhem , mas apenas porque renitentes não se juntam em frases belas. E os louvores escondem-se e quase me esconjuram por os querer ligar a 2014. E teimo  em querer entender por que assim acontece. 2015 aproxima-se. Estará aí dentro de poucas horas.
Retomo 2014 e, em jeito de revisão, concluo que se trata de um ano que pretendemos expulsar. Se tivéssemos que apor sentimentos a cada ano que passa, este conjuga bem com Dor. Não porque o escrevo na primeira pessoa. Experimentei dores fundas que não conhecia. É verdade. Uma verdade muito dura e muito real.  Foram dores que deixaram marcas e que passaram a integrar o meu espólio vivencial. A dor sofrida na primeira pessoa é uma dor que não é falante, que não se traduz em palavras. No entanto, não é essa a razão por que 2014 poderá ser o Ano da Dor. Não. A dor é um sentimento forte que não se confina ao coração. Ela invade-nos por dentro e não se deixa esconder. Desgarrada mostra-se aos outros. A quem a quiser ver. A quem não tem a capacidade de tornar invisível o que não quer ver. E eu vi-a por aí. Espalhada em milhares de rostos. Nos olhos vazios de tanta gente. A dor da guerra, a dor da fome, a dor dos espoliados , a dor do fracasso, a dor da perda, a dor da doença, a dor da solidão, a dor do abandono, a dor da velhice, a dor da exploração, a dor da morte,  a dor de um país onde a esperança definha sem sonhos de futuro. A dor que estatiscamente não é dor. 
Após um 2013  que foi a imagem da revolta feita Raiva, 2014 cristalizou-se em Dor. A revolta, a raiva de tanta perda, de tanta injustiça que foi grassando   transformou-se numa dor que se vestiu de escuro. Não há diferentes e variadas dores. Quanto a mim existem várias causas para a provocar. Ela surge no grau de intensidade correspondente à causa que a fez emergir e tendemos a atribuir-lhe  esses epítetos . Assim  as acabei de nomear.
Henry de Montherlant, um dos maiores e fecundos  escritores franceses, escreveu um livro admirável, “ O caos e  a noite”.  Toda a espantosa arquitectura deste romance  me tocou profundamente. Há uma frase que quero destacar, aqui e agora. Rica, expressiva, genial supera e encerra mil frases em poucas palavras. Representa o que se acaba e pretende afirmar. Refere-se ao olhar de Pascualita, uma das personagens, filha do herói Celestino Marcilla . Ei-la:  "(…) fitando-o com o olhar com que a pantera olha o domador ( de pupilas cheias de coisas destruídas).”.
É isso. “ de pupilas cheias de coisas destruídas”  é o olhar  de 2014.  Foi o resultado de tanta afronta que, ao longo destes anos, caiu em 2014. A dor de 2014 é essa. A dor  que resulta da perda da raiva domada. 
2014 é a dor da ausência da Dignidade, do roubo que lhe fizeram. É a maior dor . Aquela que debilita e anula qualquer ser humano.
E que não há maior infâmia, não há!
Que venha 2015.
                                                          Praia da Rocha ,  31 de Dezembro de 2014
Maria José Vieira de Sousa

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade

"Eu vi tudo o que se passa debaixo do Sol e eis que achei que tudo era vaidade." Palavras do Eclesiastes

Eclesiastes lido por Luís Miguel Cintra: capítulo primeiro
«Palavras do Eclesiastes, filho de David, rei de Jerusalém: Vaidade de vaidades, disse o Eclesiastes, vaidade de vaidades, e tudo vaidade. Que tira mais o homem de todo o seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa e outra geração lhe sucede, mas a Terra permanece sempre firme
Foi com estas palavras que o actor e encenador Luís Miguel Cintra abriu a leitura do livro do Eclesiastes, no último domingo, 31 de Outubro de 2011, na Capela do Rato, numa sessão com entrada livre.
O autor deste livro do Antigo Testamento, também conhecido por Qohélet, ou Coélet, chama a atenção para a finalidade da existência humana, consciente da radical insuficiência do homem, face à realidade da morte.


Luís Miguel Cintra lê o Eclesiastes (1)

Luís Miguel Cintra lê o Eclesiastes
Em entrevista ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura,o actor e encenador Luís Miguel Cintra fala da leitura do Apocalipse, proferida no mesmo local em Junho deste ano, do Eclesiastes e do texto das Escrituras que gostava de voltar a interpretar.
Sobre a leitura do Eclesiastes confidencia o actor: «O padre Tolentino disse-me que gostava que eu viesse mais vezes ler textos à Capela do Rato. ‘Não gostava de ler o Eclesiastes?’, perguntou-me. ‘Eu nunca li o Eclesiastes’, respondi. ‘Vai ser uma coisa que, de certeza, vai adorar’.
De facto, o texto toca em todos os temas que povoam a minha cabeça e com que me debato continuamente. São questões que têm a ver com a exaltação dos valores humanos, da meditação sobre a morte, começando logo com aquela frase famosa ‘Vaidade das vaidades, tudo é vaidade’.
Ao conhecer a Bíblia um pouco mais, ficamos com uma noção muito mais rica do que são os livros sagrados. É um conjunto de textos de natureza muito diferente, que constitui uma espécie de herança que forma a nossa cultura e a nossa identidade. A Bíblia não é só a história da vida de Cristo. A Bíblia é uma quantidade de outras coisas que no seu todo formam uma visão do mundo, ou até várias visões do mundo, que se congregam em torno de alguma coisa que os primeiros cristãos consideraram pertencer a uma mesma maneira de ver a vida.»

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Quando tinha saudades, lembrava-se...


"Lograra substituir quase tudo excepto os filhos, pelo trabalho e pela vida de actividade normal, regular, que edificara na ilha. Estava convencido de que conseguira com essa vida algo de perdurável que o fixaria. Agora, quando se sentia solitário e tinha saudades de Paris, lembrava-se de Paris em vez de ir até lá. Fazia o mesmo com toda a Europa, grande parte da Ásia e da África.
Lembrou do que Renoir dissera ao contarem-lhe que Gauguin fora para Taiti pintar. «Porque há-de ele ir gastar tanto dinheiro para ir pintar para tão longe quando se pinta tão bem aqui em Batignolles?» Em francês soava melhor: «quand on peint si bien aux Batignoiles», e Thomas Hudson concebia a ilha como o seu quartier no qual se instalara, travando conhecimento com os vizinhos e trabalhando tão assiduamente como trabalhara em Paris quando o jovem Tom era ainda bebé.
Algumas vezes deixava a ilha para ir pescar ao largo de Cuba ou visitar as montanhas no Outono. Mas arrendara o rancho que tinha comprado em Montana por, ali, a melhor época ser o Verão e o Outono, e agora era sempre no Outono que os rapazes tinham de voltar para a escola.
Ocasionalmente, via-se obrigado a ir a Nova Iorque para se avistar com o seu agente. No entanto, era mais frequente agora ser o seu agente a visitá-lo e a levar as telas para o norte consigo.
Tinha uma reputação bem firmada como pintor, e era respeitado tanto na Europa como no seu próprio país. Contratos de exploração de petróleo em terrenos que o avô possuíra garantiam-lhe proventos regulares. Esses terrenos tinham sido terras de pastagem, e ao serem vendidos retivera os direitos ao subsolo. Cerca de metade do rendimento era absorvido pela pensão que pagava às suas ex-mulheres, e o resto dava-lhe a segurança necessária para pintar conforme lhe apetecia sem quaisquer pressões de ordem comercial. Permitia-lhe também viver onde lhe dava na fantasia e viajar quando se sentia inclinado a isso.
Tivera êxito quase a todos os respeitos excepto na sua vida de casado, embora, na realidade o êxito nunca o houvesse preocupado muito. O que lhe interessava era a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher que despertara o seu amor. Amara muitas mulheres desde então e, por vezes, lá vinha uma ou outra ficar na ilha. Precisava de ver mulheres ao pé de si e acolhia-as bem durante algum tempo. Gostava de as ter ali, às vezes durante longo período. Mas, no final, ficava sempre satisfeito quando se iam embora, mesmo se gostava delas a valer. Disciplinara-se de forma a deixar-se de discussões com mulheres, e aprendera a arte de não se casar. Estas duas coisas haviam sido quase de tão difícil aprendizagem como instalar-se e pintar a um ritmo regular e bem ordenado. Mas aprendera a fazê-las, e a sua esperança era que essa aprendizagem tivesse sido permanente. Havia muito que sabia pintar, e estava convencido de que ia aprendendo sempre mais a cada ano que passava. Mas fora difícil aprender a assentar e a pintar disciplinadamente porque tinha havido na sua vida uma fase em que ele próprio não fora disciplinado. Nunca tinha sido verdadeiramente irresponsável, mas indisciplinado, egoísta e desapiedado, isso sim. Sabia-o agora, não por muitas mulheres lho terem dito, mas por o haver descoberto finalmente à sua custa. Resolvera então só ser egoísta na sua actividade de pintor, só ser desapiedado no seu trabalho, e disciplinar-se e aceitar a disciplina.”Ernest Hemingway,in "Ilhas na corrente" ,Livros do Brasil

« Ilhas na Corrente, capítulo final na cronologia artística e humana de um grande escritor é, segundo a crítica, uma das obras mais invulgares que ficamos a dever ao autor de "Por Quem os Sinos Dobram", reunindo, num mesmo programa, alguns dos ingredientes que transformaram a arte narrativa de Hemingway numa das mais expressivas do nosso tempo. Roteiro da vida de um pintor desde os anos 30, sequelas trágicas do fim da segunda guerra mundial, centrado nas Caraíbas, é, afinal, um retrato do próprio autor já que une, numa trajectória única, as experiências do artista e do homem de acção, a exigência de disciplina íntima e de comportamento de um espectador da vida e de um interventor activo no que ela tem de mais trágico e absurdo. Algumas das personagens deste livro singular e belíssimo serão recordadas para sempre na galeria de caracteres que Hemingway nos legou. 
Começando na década de 1930, "Ilhas na Corrente" narra o destino de Thomas Hudson, as suas experiências como pintor nas ilhas da corrente do golfo de Bimini e as suas actividades anti-submarinas no litoral de Cuba durante a Segunda Guerra Mundial.»

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Parábola de Natal

Parábola de Natal
Era um fim de tarde embatente de frio e uma névoa descia lenta e espessa na cidade.
Por Baptista-Bastos
«Comecei a vê-los assim que me aproximei do hospital. Eram umas dezenas: homens, mulheres, velhos, novos, alguns deficientes, todos encostados às paredes dos numerosos restaurantes que por ali havia. Esperavam os restos dos almoços, com disciplina e contenção. À distância, um carro da Polícia vigiava. Mas nada de sobressaltante acontecia. "Tudo calmo, por aqui", comunicava um dos agentes para a esquadra. O tempo era inclemente e a solidariedade parecia desempregada. Nas ruas, as pessoas não se cruzavam, trespassavam-se com a indiferença de quem apenas quer saber de si.
Ia ver a minha mulher, que quebrara a perna esquerda em duas partes e os médicos preparavam-na para a engessar. Eu vira os ossos de perna dela expostos e ensanguentados e a imagem perturbara-me. Os nossos filhos iam vê-la, consoante a disponibilidade dos horários das escolas e os do hospital. O mais novo parecia que ronronava e estava constantemente a afagar-lhe o braço, com a cara encostava ao corpo dela. Contei-lhe das pessoas que aguardavam as sobras dos restaurantes, e de dois amigos nossos que tinham sido presos. Política, está bom de ver. O hospital, o de São Lázaro, estava repleto. Disse-me ela: "Há muito mais velhos do que novos. Os velhos caem em casa. Há alguns novos, mas a maioria é constituída por velhos que caíram em casa." Agora, caía uma chuva miúda e a cidade cheirava a peixe podre. Ouviu-se o silvo de uma ambulância e um grito longínquo. "Daqui a duas semanas, saio, mas vou ficar uns tempos largos com a perna cheia de gesso. E dá--me uma comichão enorme. Tens chegado cedo a casa?" Aproxima-se um médico. Não me liga nenhuma e faz perguntas do estado de saúde da minha mulher. Ela responde-lhe dificultosamente e estou à beira de intervir na conversa. A arrogância dos médicos é como se fora o seu estatuto social. Despeço-me dela e acaricio-lhe o belo rosto com ternura. "Já não sei dormir sem ti", digo. "Vem depressa." A rua é um bloco de gelo, e os eléctricos circulam vazios. As pessoas comem dos caixotes, depois de escolherem as peças mais apresentáveis. Um dos deles olha-me fixamente. Diz: "Nunca viu um homem comer?"» Baptista-Bastos, em Artigo de Opinião  publicado no CM, em 24.12.2014

domingo, 28 de dezembro de 2014

Ao Domingo Há Música


“A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas.
Mas por música não deve entender-se só a que se toca.
Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfís; há outro luar, que o mesmo só não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser.
Só os sonhos são sempre o que são.
É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e nosso."
Fernando Pessoa

Vozes de mulheres desta Ibéria a que pertencemos. Vozes que se fazem de  talento e  de extraordinária sonoridade . De Espanha,  Concha Buika e de Portugal, Mariza. Dois grandes nomes que denunciam a singularidade que distingue os dois países (de para cá dos Pirinéus ), mas também a  capacidade de união em prol da Música.
Um apontamento musical com vozes no feminino para encerrar os Domingos de 2014.
Que  2015 nos permita ter as armas mágicas que transformam os sonhos, o luar e a música na harmoniosa realidade almejada

Concha Buika, em "Somos"

Mariza e Concha Buika, em " Pequenas verdades,(Terra)"

Mariza, em "O Tempo não pára".
O Tempo não pára

Eu sei, que a vida tem pressa
que tudo aconteça,
sem que a gente peça,
Eu sei,
Eu sei, que o tempo não pára,
tempo é coisa rara
e a gente só repara,
quando ele já passou

Não sei, se andei depressa demais
Mas sei que algum sorriso eu perdi
Vou pedir ao tempo,
que me dê mais tempo
para olhar para ti
De agora em diante,
não serei distante
Eu vou estar aqui

Cantei,
cantei a Saudade da minha cidade
e até com vaidade, cantei
Andei, pelo Mundo fora
e não via a hora
de voltar para ti

Não sei, se andei depressa demais
Mas sei que algum sorriso eu perdi
Vou pedir ao tempo,
que me dê mais tempo
para olhar para ti
De agora em diante,
não serei distante
Eu vou estar aqui
Música e letra de  Miguel Gameiro
Arranjo musical de Tiago Machado

sábado, 27 de dezembro de 2014

Sobre as Memórias de Eugénio Lisboa

Memórias do escritor Eugénio Lisboa
17-12-2014  SÁBADO
Por Eduardo Pitta
"Há quem se interrogue com o título - Acta Est Fabula -, expressão latina que significa "A peça está representada". Deveras adequado às memórias de Eugénio Lisboa, que aos 82 anos decidiu pôr as suas em letra de forma, publicando em 2012 o primeiro dos projectados cinco volumes. O quarto saiu agora: "Acta Est Fabula. Memórias IV. Peregrinação", cobrindo os anos de 1976 a 1995, e as andanças do autor após a saída de África. A diáspora começa em Joanesburgo e termina em Londres, com intervalos em Paris e Estocolmo.
Com obra publicada desde 1957, Eugénio Lisboa não fez o percurso do literato convencional. Engenharia electrotécnica não é de uso ser a porta de entrada no milieu, e uma carreira de gestor na área dos petróleos ainda menos. Nem uma coisa nem outra impediram Lisboa (nascido em 1930) de participar de forma activa na vida cultural de Lourenço Marques. Em 1974 começa a dar aulas de literatura nas universidades de Maputo e Pretória, como depois faria em Estocolmo. Pelo meio houve Paris, cidade onde durante um ano exerce o cargo de director mundial da Compagnie Française de Pétroles. Em 1978 radica-se em Londres, como conselheiro cultural da Embaixada de Portugal. Ali viveu dezassete anos, "ricos e frutuosos". Em 1995, após o regresso a Portugal, seria presidente da Comissão Nacional da Unesco e catedrático visitante da Universidade de Aveiro. Mas o pós-Londres fica para o próximo volume.
Este intercala a narrativa memorialística com fragmentos de um "Diário" inédito dos anos de Londres, e também, sob forma diarística, o relato franco de uma viagem a Maputo em 1989, das melhores páginas que a obra contém. Mas é sobretudo nas passagens do "Diário" londrino que o autor alivia o fígado. Num país "onde abundam os especialistas em processos de intenção", Lisboa tem o mérito de dizer em voz alta o que a maioria cochicha, quer se trate de candidatos ao Panteão ou de personalidades com lugar cativo nos media, como aqueles que, sem pudor, "atordoam a nossa praça literária com o ruído wagneriano do amor por si próprios" (neste caso, Al Berto). Em clave provocatória, Lisboa sujeita Saramago, Vergílio Ferreira, Lobo Antunes, etc., a um escrutínio isento de vénia. Um dos capítulos, "Brincando (a sério) aos editores", ilustra a extrema dificuldade em impor a literatura portuguesa no mundo anglo-saxónico.

A terminar, ficando muito por dizer, gostaria de sublinhar a nitidez das reflexões pós-coloniais e, num registo pungente, confissões de natureza íntima."

Crítica de Eduardo Pitta na Revista Sábado
Acta Est Fabula. Memórias IV. Peregrinação, Eugénio Lisboa
Preço: €23,95
Nota 100%

Os editores deste blog decidiram documentar  o artigo de Eduardo Pitta com um excerto do livro em análise, "Acta Est Fabula.Memórias IV. Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres." Trata-se de um dos fragmentos do "Diário" inédito que enriquece esta obra memorialística de Eugénio Lisboa.
Diário dos Últimos Tempos
"26.12.94 – Natal. O último em Londres. Hoje, no Daily Mail, notícia da morte do John Osborne. Detestável como pessoa e, como dramaturgo, duvidoso que venha a ser considerado dos grandes. Mas deixou uma marca na história, como autor de Look Back in Anger. Nos últimos anos produziu uma autobiografia ultrajante, em dois volumes. Julgo que não se resignou ao seu declínio, depois dos primeiros êxitos. (…)
(…) Tchekhov (carta a A. S. Suvorin, Dezembro de 1889): “Sinto um desejo apaixonado de me esconder algures, durante cinco anos ou coisa, para me devotar a obra meticulosa e séria. Preciso de estudar e de aprender o meu ABC literário porque, como escritor, sou um completo ignoramus.” O mesmo sinto eu acerca de mim próprio. Cinco anos – era tudo quanto pedia aos deuses. Mas cinco anos meus – sem ninguém a pedir-me coisas, a telefonar-me, a pedir-me bibliografia, a mandar-me livros, a pedir-me conferências. Cinco anos meus, só meus, para os encher à minha maneira. É tudo quanto peço. Pedi-lo aos 64 anos – não é pedir muito.
No último JL o Tabucchi puxa os colarinhos ao Saramago. E, “ma foi”, com razão. Diz-lhe, à bruta, o que eu lhe disse com jeitinho. Mas não sei qual de nós o terá ferido mais. Depois destas duas portas abertas, não vai faltar quem lhe diga duas verdades.

27.12.94 – Desde o dia 21, estão connosco a Geninha, a Sara e o Frank. Isto é, a minha produtividade baixou a zero, em termos de leitura, música e escrita. Mas ganhei a Sara: a encarnação da graça, da vivacidade e da beleza. Conduz-nos a todos, com o máximo de elegância e facilidade, ao mundo dela. Tudo, mas tudo se converte em jogo – segundo regras que ela própria inventa.

28.12.94 – Ontem, o dia em Cambridge, em casa da Manucha, com a Geninha e a Sara. E as gatinhas da Manucha, a Welby e a Albertina. O Michael [meu genro] acaba de perder o pai (cancro e coração, tudo junto). Almoço, conversa, troca de presentes (desta vez deixei o feminismo na naftalina e dei-lhe [à Manucha] discos e livros sobre gatos). A Sara entreteve-se com as gatinhas e por fim adormeceu. À noite vi o Dick Tracy e gravei o Othelo, com o Welles (e do Welles).
Hoje [de regresso a Londres] vou ao teatro com a Geninha e a Antonieta (a Sara partiu com o pai para os lados de Birmingham). De resto, vim à Embaixada enviar uns faxes, dar alguma informação que me pediram pelo telefone e fazer uma dúzia de cartões de Natal.

29.12.94. Ontem, teatro com a Geninha e a A. : The Clandestine Marriage, com Nigel Hawthorne (of “Yes Prime Minister” fame). Uma boa farsa com algumas interpretações notáveis.
No Evening Standard, editorial de Paul Johnson, um dos mais horríveis personagens da feira jornalística e intelectual britânica. Estes bichos que foram de esquerda e querem agora ganhar credenciais de direitíssima – não há quem os agarre. Uma das consequências da sua mutação foi passar a sofrer de anglofilia desvairadamente aguda. A língua inglesa é “simply the best” in the world. A arte inglesa – tudo o que há de melhor no mundo. A política inglesa, a monarquia inglesa – quem tem igual? John Major [o primeiro ministro], é claro, é um cretino porque ainda não conseguiu o óbvio – fazer da língua inglesa a “língua oficial” da União Europeia. Para quê tradutores? Aprendam todos a “melhor” língua que há no mundo. Paul Johnson dixit.

13.01.95 – No dia 9, a Geninha e a Sara partiram, de regresso a Barcelona. A casa ficou consideravelmente mais vazia – embora francamente se não note, com as caixas que se vão acumulando (cheias, sobretudo, de livros, de cassettes de CDs e de vídeos).
Na Embaixada, encetei também a “limpeza” – o que não pouco me deprime.
Como, no dia 9 [de Fevereiro], abandonamos a casa em que vivemos desde 1981 (quase 14 anos…), tivemos que procurar um apartamento para nele nos aboletarmos, antes do regresso a Lisboa. Encontrámos um magnífico, em Beckenham, mesmo ao lado do Kelsey Park. Ficarei 10 minutos mais longe do centro de Londres do que estou agora. Mas ficaremos optimamente instalados e com uma vizinha escocesa (e velhota) que é uma delícia. Foi amor à primeira vista. Entretanto, vou trabalhando, lendo e escrevendo. E vou ficando, sobretudo, cada vez mais baralhado. Quando nos aproximamos do fim de qualquer coisa, o ideal seria sentirmo-nos leves e livres. E eu sinto-me soterrado em papéis, livros e objectos.
Marquei dois bilhetes de avião para Lisboa, para o dia 10  de Fevereiro. E isto, para levar connosco o Jim. Que angústia, tudo isto!
Manipulo um Universal Dictionary. E faço contas. Racine tem direito a 4 linhas. Shakespeare, 18. Será que Shakespeare é 4.5 vezes maior do que Racine? Por mim, dou o autor de Hamlet na íntegra só pela Phèdre de Racine. Mas convenho que são gostos. Gil Vicente não é mencionado. Cervantes merece 4.5 linhas. Goethe, 9.5. Platão, 7 linhas. Einstein, 7.5 e Newton, 22. Arquimedes, 13.5. Digam lá agora se os ingleses não gostam de proteger os rapazes da casa! Querem mais provas? Jane Austen tem direito a 5.5 linhas, mais uma do que Cervantes e mais 1.5 do que Racine. Será que a autora de Pride and Prejudice é mais importante do que o autor de Andromaque? Ou ainda: Paul Valéry tem 2.5 linhas e Claudel nem sequer é mencionado, ao passo que Eliot tem 9.5 (mais cinco do que Racine…) e Philip Larkin, 4 (quase o dobro de Valéry…). Fernando Pessoa é solidamente omitido. Viva a objectividade crítica. Viva o conhecimento da cultura dos pequenos países. Viva, sobretudo, o “fair-play”, não é? Ah, já me ia esquecendo, Agatha Ghristie tem 3 linhas, quase tanto como Racine e mais do que Valéry, para não mencionar Claudel, o qual, como se sabe, não existe.
Como a língua inglesa é a mais universal das línguas, as “verdades” acima referidas têm a máxima divulgação e há sempre quem acredite em tudo quanto aparece em letra de forma, sobretudo, sob a forma respeitável de “dicionário”. Além do mais, o Universal Dictionary é bem apresentado e bem distribuído pela Reader’s Digest.
Noutra perspectiva: Marguerite Duras tem direito a 4.5 linhas (mais do que Racine), mas Martin du Gard (infinitamente mais importante) nem sequer é mencionado. Montherlant é também mais pequeno do que Duras (3.5 linhas) e Jouhandeau é um “figment of the imagination). Colette é igualmente menos importante do que Duras (3.5). Gide consegue safar-se com 5.5 (mais do que Huxley: 4.5). Sartre apanha 8 linhas, para eterna vergonha de Gide e Valéry, mas Malraux contenta-se com 4.5 (ainda assim, mais do que Racine). Vergílio Ferreira não aparece (como é que lhe vou dar a notícia?) Felizmente, Saramago também não (o que sempre adoça a pílula do Vergílio). Teria piada se aparecesse o Tabucchi (não vou verificar, para deixar a maralha na dúvida – o Saramago vai-se roer). Eça de Queirós… não vem. Para quê torturar-me?
O Rui Knopfli está em casa desde anteontem. Parece um fantasma. Não come porque, segundo diz, engolir impede-o de respirar. Tem os pulmões tapados pelo fumo. Bebe um copo de whisky e fica aos zig-zags. Não come, não bebe e nem se fala no resto. Diz que 1995 é o ano da sua morte [morreria dois anos depois]. Não escreve, quase. Não lê. Mete-se na cama cedo. É um nó de frustração e angústia. E, no entanto, a vida deu-lhe tudo, sem esforço. Talento, dinheiro, reputação. E um apartamento em Londres, com bom salário, como sempre sonhara. Dá Deus nozes… 

17.1.95 – Londres. Morreu o Torga. A notícia não foi inesperada: o Torga morria-me há já muitos anos. Mas é um fim, apesar de tudo.
Começa a ser intolerável o desaparecimento de referências, à nossa volta. Ontem soube, por exemplo, que o Cardoso Pires teve um acidente cerebral e está com impedimentos de fala. E, desde segunda feira, ando preocupado com o Knopfli – pelo andar das coisas, não sei se durará até à minha partida para Lisboa, em Maio. Falei ao Conselheiro e este telefonou ao primo do Rui, em Washington. O procedimento do Knopfli é uma quase indisfarçada busca da morte – mas por uma via pouco elegante e um tudo nada…egoísta.
Mais quem? O David foi operado à próstata. Agora é o tempo de as árvores caírem e de ficarem clareiras à nossa volta. Até cairmos nós. C’est pas joli. E o pior, no meu caso, é que ainda não comecei. Isto é, não escrevi um único dos livros que gostaria de escrever. Penso muito, no que se refere à minha ida para Portugal, em termos de ir finalmente começar. Mas, com 65 anos, deveria pensar em termos de ir acabar. Contudo, não penso: sinto que é um começo. Cada um ilude-se como pode.
Mas o Torga: não era um personagem amável. Não era simpático. E era um escritor limitado. Não tinha nem a inteligência, nem a subtileza, nem a complexidade do Régio. Era, sim, um grande contista, com páginas de antologia, e um prosador de uma beleza brutal e sensual, atraente e forte. Deixa rasto na literatura – e um rasto inesquecível. Como dizia o Régio, era um grande escritor de curto fôlego. Mas a sua Montanha tornou-se a nossa (mítica) montanha.

26.1.95 – Dias de atrapalhação e limpeza de papéis. No meio da confusão que é limpar a casa e o escritório da Embaixada, antes de vir o transportador que há-de fazer esvaziar tanto uma como o outro, ainda recebo convites para fazer palestras e mesas redondas e escrever textos   (hoje mesmo, carta da Verbo a pedir-me duas entradas para um dicionário da literatura: uma sobre o Jogo da Cabra Cega, outra sobre Fausto José.) Neste mesmo momento, tento escrever um prefácio curto para a antologia do Pessoa e outro para a antologia do conto português (tudo para a Carcanet). Quis furtar-me a “comentários de fundo”, mas o Kim Taylor insiste em que extraia do meu texto “Pessoa, the Incurable Foreigner”, passagens relevantes sobre a foreigness do poeta da Mensagem. E tenho que preparar palestras ou conversas para Manchester, Sheffield, Nottingham e Londres. E só queria que me deixassem em paz.
Há dias, no Evening Standard, uma revelação que me não espantou: o Osborne era bissexual. Com uma nuance: tratava mal as mulheres com quem se casou e foi sempre de um carinho pacífico para com o amante de uma vida inteira. Era este o Osborne que dizia: “Whatever else, I have been blessed with God’s two greatest gifts: to be born English and heterossexual.” Vivam os angry young men! Angry? Com quem? Talvez com eles próprios…
(…)
31.01.95 – Disse-me ontem o Hélder que o Giovani Pontiero, tradutor do Saramago, está a morrer, de Sida. Era um homem cortês, meticuloso, amaneirado. Candidatara-se, há anos, a tradutor do Sena (O Físico Prodigioso), mas tanto eu como o editor (Dent & Son) rejeitámos a amostra de tradução que nos propôs: o peculiar estilo de Sena era frontalmente torpedeado, a favor de períodos mais curtos e…menos difíceis. Fez o mesmo ao Saramago, que, no entanto, andava todo ufano com o serviço.
Quando, o ano passado, escrevi a carta ao Saramago, mandei cópia ao Pontiero, para informação. Respondeu-me cortesmente, mas a pôr-se, diplomaticamente, à margem. No entanto, segundo o Saramago, ele fora, um pouco, parte da intriga. Coitado, ainda assim, do Pontiero. Ajudei-o sempre que pude. E ainda não há muito, aceitei apoiá-lo numa candidatura a um posto qualquer na Europa. Fraquezas são apenas fraquezas e o Pontiero era, neste mundo de apressados e desatentos, um homem atento e minucioso. Levava (ou fazia que levava) o Saramago a sério, mas cada um tem direito às suas idiossincrasias.
O fim de semana a tratar do certificado de saúde do Jim e a triar papéis: sacos e sacos de páginas, suplementos literários e revistas – tudo para o lixo. Anos de acumulação amorosa de “textos” – subitamente “eliminados”. Sinto-me simultaneamente deprimido e libertado. Amputado, mas alado. Entenda quem puder. O suicida talvez se sinta assim, uma vez tomada a decisão: separado dos vivos, mas eufórico. Quem sabe.
(…)
25.02.95 – Londres. Regressei ontem à noite de Leeds, após um dia de conferências. Das três que ouvi, destacou-se, sem dúvida, a excelente lição de Fernando Rosas, sobre a Aliança Luso-Britânica e o Estado Novo (anos 30 a 40). Mais uma vez se provou que os ingleses gostam de alianças e uniões (europeias)…à la carte. Para só tirarem delas o que lhes convém. São, nisto, dum descaramento e de uma boa consciência a toda a prova. O que lhes dá boa consciência é “saberem” que estão a servir “os interesses britânicos” (algo que, para eles, está infinitamente acima de Deus). Que mestres consumados em transformarem o seu egoísmo nu numa causa patriótica e mesmo moral! (…)

15.04.95 – Páscoa em Londres. Quase não tenho visitado este diário. Espécie de apatia em que me colocou este estar com um pé cá e outro já em Portugal. E sem saber em que situação vou ali estar. O que, no fundo, me apetece é que o MNE faça a sacanice total e me ponha à chuva. Irei para casa, ler, escrever e passear. Dá-me um certo gozo tê-los entalado com a própria legislação que produziram, para…nos entalarem! (…)
Convém que fique aqui registado. O secretário-geral do MNE, que é um [primitivo] de alto calibre, telefonou-me há dias a dizer-me que dera um “parecer” sobre a minha eventual transferência para Lisboa: que, em suma, sendo transferido, “bloquearia” um lugar de conselheiro cultural… E, no mesmo telefonema, [como quem deita sal na ferida e com acinte] (…), informou-me de que já telefonara ao embaixador, em Londres, a pedir-lhe que deixasse ficar mais tempo o primo (R. M. C. K.). [Registo aqui, em 2014, que eu resistira a uma transferência, como conselheiro cultural, para ir trabalhar para Washington e, numa visita que fiz àquela cidade, não “preferira” ir almoçar com ele… Os restantes comentários, no meu diário, a esta atitude do secretário-geral- que, no final do telefonema, me disse: “Desenrasque-se!”, assim me agradecendo dezassete anos de bons e leais serviços – serão publicados postumamente. Para que conste.]
Comprei ontem, num alfarrabista, uma edição de Collected Essays, de Aldous Huxley. Que prazer ler um ensaísta inteligente e vastamente informado! Que bem faria a leitura deste homem aos líteras que atravancam a nossa praça literária com words, words, words…
Sydney Smith: “Words are an amazing barrier to the reception of truth.” Boa purga para políticos e literatos portugueses.
Agora que estou para deixar a loira Albion, registo aqui esta passagem de Caesar and Cleopatra, de Shaw: “This is Britannus, my secretary. He is an islander from the westwern end in the world, a day’s voyage from Gaul… He is a barbarian, and thinks that the customs of his tribe are the laws of nature.”
E ainda esta, extraída da St. Joan, também de Shaw: “We are not fairly beaten, my lord. No Englishman is ever fairly beaten.” True! Bastaria ir reler-se o que as páginas desportivas dos jornais ingleses disseram aqui há anos de uma equipa de futebol portuguesa que bateu folgadamente uma equipa inglesa. De usurpadores e ladrões para baixo, chamaram-lhes tudo! Como se atreveram os ridículos portugueses a bater uma grande e majestosa equipa inglesa?

17.04.95 – Ontem, almoço em casa do Kim Taylor, em Sevenoaks e, depois do almoço, passeio no parque de Knoles. Ao almoço, estava o actual “Headmaster” (Director) da escola de Sevenoaks – que o próprio Kim dirigiu durante 14 anos. Tem cerca de 900 alunos. É uma escola privada e as propinas – sendo baratas… - são da ordem de 8000 a 9000 libras por ano. Estava ainda uma senhora de idade, Barbara não sei quantos, viva, mexida, faladora. Numa passagem da conversa, indicou que tinha um cancro no esófago e, noutra passagem, disse, discretamente, como quem muda de assunto: “Para o ano que vem, é muito possível que já cá não esteja.” Canta (ou cantava) e diz detestar Beethoven e, em particular, as sonatas para piano. Falou-se em Wagner e, aí, ficámos todos de acordo: um insuportável chato, pedante e ridiculamente repetitivo.
A Barbara tem uma casa agradável (ofereceu-nos chá, depois do passeio no parque), com um jardim soberbo e meticulosamente tratado. Tem muitos e bons livros e aguarelas. E começa a olhar para tudo aquilo como quem se vai embora para não voltar. Uma vida assim, no campo, agradável e quentinha. E finita.
A Universidade de Manchester enviou ao embaixador um convite para a cerimónia de doutoramento (honoris causa) do Saramago. O embaixador chamou-me para me dizer que, devido a um compromisso, não poderia ir. Preparava-se, por certo, para me pedir que o substituísse. Antes que o fizesse, disse-lhe que, no caso vertente, não poderia ir em vez dele (além de que não queria ir). Contei-lhe o que se passara entre mim e o Saramago e disse-lhe que, na minha opinião, a embaixada talvez se não devesse fazer representar. No fim de contas, o Saramago fora insolente para a embaixada toda e não só para mim. Começou a gaguejar: que ainda não sabia bem o que fazer. Que ia pensar. Que nem era um admirador incondicional do Saramago. Observei-lhe que, de um modo ou de outro, o Saramago reagiria mal: se não fosse ninguém, porque não tinha ido ninguém; se fosse alguém, parecia incrível irem lá, depois do que se passara… (…)
Dentro de pouco mais de um mês, deixo a Inglaterra. Vivi aqui mais tempo do que em Portugal (mais do dobro dos anos). Sinto isto, um pouco, como uma das minhas terras. E uma das que mais me deu.” Eugénio Lisboa , in “Acta Est Fabula, Memórias IV- Peregrinação: Joanesburgo.Paris. Estocolmo.Londres”, Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp.467,468, 469, 470,471,472,474,475,446, 447

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O Planeta Terra

Máquina de Assombros

"Das humildes praias deste oceano,
te olhámos, cosmos: era o começo.
De aqui, assombros vimos: cada ano,
o milagre era um recomeço."
Eugénio Lisboa, in "O Ilimitável Oceano", Edições Quasi

"Este é um vídeo extraordinário sobre o Planeta que todos habitamos. Compilado através das 12.500 fotografias que Alexander Gerst tirou a bordo da Estação Espacial Internacional, mostra uma série de fenómenos naturais e provocados pelo homem em sequência acelerada. Das auroras boreais à iluminação produzida pelas cidades à noite, passando por um nascer do sol extraordinário, é tudo belo nesta sequência. "

Há algumas semanas, o Observador já tinha publicado uma fotogaleria com imagens de Alexander Gerst: O nosso planeta é ainda mais surpreendente do que pensa.

Ficha técnica do vídeo:
Title Alexander Gerst’s Earth timelapses
Released 22/12/2014
Length 00:06:10
Language English
Footage Type Music Clip
Copyright ESA
Description
Watch Earth roll by through the perspective of ESA astronaut Alexander Gerst in this six-minute timelapse video from space. Combining 12 500 images taken by Alexander during his six-month Blue Dot mission on the International Space Station this Ultra High Definition video shows the best our beautiful planet has to offer.
Marvel at the auroras, sunrises, clouds, stars, oceans, the Milky Way, the International Space Station, lightning, cities at night, spacecraft and the thin band of atmosphere that protects us from space.
Often while conducting scientific experiments or docking spacecraft Alexander would set cameras to automatically take pictures at regular intervals. Combining these images gives the timelapse effect seen in this video.
Watch the video in 4K resolution for the best effect and find out more about Alexander Gerst’s Blue Dot mission here: www.esa.int/BlueDot

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Natal com Mozart


A música sacra de Mozart é uma das mais belas. Mozart foi um génio que nos legou um acervo incomparável de obras. Nomear as diversas especificidades de cada uma seria um acto infindável.Mozart não se reduz a palavras. Há, porém,  uma espectacular profusão de estudos e de opiniões sobre Mozart. Mas Mozart é Música . E é com essa grandiosidade   e beleza que saudamos o Natal de 2014.
Mozart na voz de Natalie Dessay.
Que o Natal se faça em cada um de nós sob esta harmonia musical. 
FELIZ NATAL.


Ao vivo, num espectáculo em Bucareste.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Noite de Natal

FESTAS FELIZES
  Coimbra, Natal de 1959

Estrela do Ocidente

Por teus olhos acesos de inocência
Me vou guiando agora, que anoitece.
Rei Mago que procura e desconhece
O caminho,
Sigo aquele que adivinho 
Anunciado
Nessa luz só de luz adivinhada,
Infância humana, humana madrugada.

Presépio é qualquer berço
Onde a nudez do mundo tem calor 
E o amor 
Recomeça.
Leva-me, pois, depressa,
Através do deserto desta vida,
À Belém prometida...
Ou és tu a promessa?

Miguel Torga, in "Diário VIII", Círculo de Leitores

Um presente de Natal

O Natal não é uma história de faz-de-conta
P. Gonçalo Portocarrero de Almada*
“Quando uma família vive a generosidade que é própria do amor cristão, o Natal não é uma história faz-de-conta, nem uma mera evocação, mas algo encantador que acontece. Santo Natal!
Quando o João passou pela esquadra do bairro, o subchefe, baixote e barrigudo, como a função exige, apresentou-lhe o Manuel, um rapaz de cinco anos.
A sua história era breve, como breves são sempre as desgraças. Órfão de mãe, vivia com o pai, conhecido traficante de drogas que, apanhado em flagrante delito, recolhera, por ordem do juiz, ao calabouço, deixando só aquele único filho, que também não tinha parentes próximos que o pudessem acolher.
Era já a antevéspera do Natal e, como depois se metia o fim de semana, o subchefe não tinha tempo para, antes das festas, pedir à segurança social que providenciasse o destino do menor.
João, pai de numerosa e barulhenta prole, teve então uma feliz ideia:
– Pois olhe, subchefe, se quiser, eu levo o miúdo para casa, porque, onde estão dez, também cabem onze e depois logo se vê para onde vai o rapaz. Assim, pelo menos passa estes dias em família, enquanto se arranja melhor solução.
Ao agente da autoridade a ocorrência pareceu óptima, sobretudo porque assim ficava aliviado daquele imbróglio. Por outro lado, sendo o João um bom médico e excelente pai, o Manuel não poderia ficar em melhores mãos.
Dito e feito. Era já hora de jantar e o João ligou pelo telemóvel para a sua mulher, para a advertir da demora e do novo comensal. Mal chegou a casa, apresentou o Manuel à Luísa e aos filhos:
– Este é o Manuel e vai ficar connosco uns dias. É como se fosse um presente de Natal para toda a família! Como só tem um ano a menos que o Miguel, o mais novo cá de casa, fica no seu quarto.
O benjamim ficou radiante com a responsabilidade de acolher o Manuel e fez questão de que se sentasse ao seu lado, na ampla mesa da casa de jantar. Para o Manuel toda aquela algazarra era algo insólito, pois nem sequer os nomes deles conhecia. Mas, como todos o tratavam com tanta naturalidade, parecia que se conheciam desde sempre.
Foi preciso improvisar uma cama, o que se conseguiu armando um divã que estava no sótão, e arranjar um pijama e uma escova de dentes para o Manuel, que não trazia nada com ele. Para vestir no dia seguinte, a Luísa foi buscar algumas roupas antigas do Miguel, que já não lhe serviam e que tinha guardado para dar na paróquia.
Os dias foram passando e Miguel continuava a ser o seu mais próximo amigo, com quem partilhava o quarto, a roupa e os brinquedos. A integração do Manuel era tão perfeita que era difícil distingui-lo dos filhos: todos conviviam em absoluta igualdade.
A bem dizer, era mais do que perfeita, ou perfeita demais, porque parecia quase irreversível, tal o apego de parte a parte. Por isso, João aproveitou uma saída da Luísa com o Manuel, para se reunir com os filhos, a quem explicou a situação. Depois de recordar que o levara para casa porque o pai dele fora detido e depois se evadira, advertiu que era provável que o Manuel tivesse de ir para alguma instituição, ou fosse entregue a algum seu familiar. Terminada a exposição, só o Miguel fez uma observação, com uma não contida raiva:
– O pai – disse – é pior do que o pai dele!
Dito isto, saiu porta fora, com cara de poucos amigos. Os outros filhos sorriram com aquela atitude do mais novo, que tinha tido a coragem de dizer, em alto e bom som, o que todos, de algum modo, intuíam. Ninguém se lembrou de que já eram muitos, que o espaço era escasso e remediada a economia familiar. O Manuel era da família, ponto final parágrafo.
Esta história verídica, com já mais de dez anos, aqui transcrita com nomes e circunstâncias fictícias, teve um final feliz: o Manuel foi adoptado por aqueles pais, que já o tinham como seu, e pelos filhos deles, que já eram, de facto, seus irmãos.
Quando uma família vive a generosidade que é própria do amor cristão, o Natal não é uma história faz-de-conta, nem uma mera evocação, mas algo encantador que acontece. Santo Natal!” P. Gonçalo Portocarrero de Almada , em Crónica publicada no Observador, em 20.12.2014
*Sacerdote católico

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Cuba e a Música


"A esperança é abundante, mas não é para nós." Franz Kafka

Sendo um grande escritor ,  nem sempre  as suas palavras veiculam a verdade eterna , embora estejam vestidas de intemporalidade. E como fundamento  está a real aproximação USA e Cuba que acaba de acontecer. Os primeiros passos estão dados. Que venha Cuba ao desafio e que os USA se  dispam de rancor e se encham de orgulho neste abrir de braços tão acalentado.
Para celebrar fomos à Música e destacamos Pablo Milanés com alguns cartões de visita tão representativos dessa   Cuba   exilada e lejana.


Y van pasando los años
Y al fin la vida no puede ser
sólo un tiempo que hay que recorrer
a través del dolor y el placer
quién nos compuso el engaño
de que existir es apostar a no perder.

Vivir es más que un derecho
es el deber de no claudicar
el mandato de reflexionar
qué es nacer, qué es morir, qué es amar
el hombre, por qué está hecho
y qué eres tú, libertad,
libertad, libertad, libertad.

La idea no es razonable,
tampoco el verbo fundamental;
¿es el alma principio o final,
o armonía del bien frente al mal?
qué es el amor insondable
que empuja al cuerpo a ser incógnita
inmortal.

El siglo está agonizando
y el testamento que va a dejar
es un orden que quiere ocultar
el preciso compás del azar;
a qué seguir respirando
si no estás tú, libertad,
Libertad, libertad, libertad




"Em 1978, Chico Buarque de Holanda foi chamado para ser jurado do Prémio Literário da Casa da América, em Cuba, e aproveitou para fazer uma aproximação cultural com o país, que vivera o seu  processo revolucionário havia menos de vinte anos, criando uma versão para a música Canción por la Unidad Latinoamericana, de Pablo Milanés.
A música contempla o movimento de resistência às ditaduras da América Latina da década de 1970 inserindo-o  num processo histórico dirigido pelo povo.
Criada no auge da Guerra Fria, Canción por la Unidad Latinoamericana tornou-se um hino socialista glorificando os exemplos de José Martí, Simon Bolívar, Fidel Castro."
Eis " Cancion por la Unidad Latino Americana" por Pablo Milanés/1975


El nascimiento del mundo se aplazó por un momento,
Fué un breve lapso del tiempo, del universo un segundo
Sin embargo parecía que todo se iba a acabar
Con la distancia mortal que separó nuestras vidas
Realizaron la labor de desunir nuestras manos
Y apesar de ser hermanos nos miramos con temor
Cuando pasaron los años, se acumularon rencores
Se olvidaran los amores, parecíamos extraños.

Que distancia tan sufrida que mundo tan separado
Jamás hubiera encontrado sin aportar nuevas vidas.
Esclavo por una parte, servil criado por la otra
Es lo primero que nota el ultimo en desatarse
Explotando esta visión de verlo todo tan claro.
Un dia se vió liberado por esa revolución.
Esto no fue un buen ejemplo para otros por liberar
La nueva labor fue aislar, bloqueando toda experiencia

Lo que brilla con luz propia nadie lo puede apagar
Su brillo puede alcanzar la oscuridad de otras costas
Quién pagará este pesar del tiempo que se perdió
De las vidas que costó, de las que puede costar
Lo pagará la unidad de los pueblos em cuestión
Y al que niegue esta razon la historia condenará

A Voz "So Beautiful"

Cantor e compositor inglês ficou famoso por interpretar 'With a Little Help From My Friends'
"Joe Cocker, cantor famoso pela emocionante interpretação de With a Little Help From My Friends, dos Beatles, no festival de Woodstock, morreu nesta segunda-feira (22) aos 70 anos de idade. De acordo com a BBC, seu agente, Berrie Marshall, confirmou a morte do compositor, mas sem entrar em detalhes sobre o motivo.
"Ele era simplesmente único e será impossível preencher o espaço que ele deixou em nossos corações", afirmou.
Com sua voz rouca e ao mesmo tempo suave, Cocker também ficou famoso por interpretar outras canções de sucesso, como You Are So Beautiful e Up Where We Belong.
De acordo com o site da iTV, um comunicado da Sony explica que o cantor enfrentava uma batalha contra um cancro do pulmão.
Nascido em 20 de Maio de 1944, John Robert "Joe" Cocker nasceu em Sheffield, na Inglaterra, onde iniciou a sua carreira cantando em pubs e clubes durante a década de 60. A interpretação de With a Little Help From My Friends, do Beatles, deu-lhe reconhecimento nacional e o colocou no topo das paradas. A versão ao vivo da música se tornou mundialmente conhecida e virou tema de abertura da série Anos Incríveis.
Em 2012, antes da última apresentação no Brasil, ele deu uma entrevista exclusiva ao Jornal da Globo e falou daquele show. “Eu nunca esqueço. Eu fui de helicóptero e a milhas de distância  perguntei ao piloto o que era aquele coisa toda no horizonte. E ele respondeu: é o seu público”.
Em 2007,  recebeu a ordem do império britânico por suas contribuições à música. Em 50 anos de carreira, lançou 40 álbuns e colocou sua voz rouca e potente no patamar do inconfundível. 
Up Where We Belong, um dueto com Jennifer Warnes, foi trilha do filme A Força do Destino, e  rendeu um Grammy e um Oscar." Imprensa do Brasil

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Do Natal

O SIGNIFICADO DO NATAL
 Por Manoel de Andrade 
       "Nestes dias que precedem o Natal, ocorre-me pensar nas tantas portas que se fecham para o seu real significado, mascarado por estranhas personagens natalinas e maculado por poderosos interesses mercadológicos. Ocorre-me também pensar que se o Cristianismo fosse verdadeiramente interpretado não haveria tantos sectarismos e o simbolismo da manjedoura de Belém seria fraternalmente reverenciado no mundo inteiro, além da barreira das religiões.
         Jesus não fundou nenhuma igreja, nem dogmatizou nenhuma religião. Trouxe-nos a imagem de Deus como um pai, mostrou a importância da religiosidade e nos revelou o significado incondicional do amor. Não escreveu nada, mas deixou, na memória de seus discípulos, a sabedoria de suas parábolas e, no Sermão da Montanha, toda a essência do cristianismo, falando do amor aos inimigos, do perdão das ofensas e da importância de dar a outra face como um caminho aberto para a reconciliação. Resumindo, quis dizer-nos que ser cristão é saber transformar o orgulho em humildade e o egoísmo em amor.
         A ênfase de sua filosofia propunha a redenção humana pela educação e não pelo constrangimento. Embora abominasse o pecado, Ele amava o pecador e acreditava que educar é despertar o senso da justiça, do amor e da beleza moral que existe, potencialmente, em cada ser humano. Nesse sentido, entre tantos factos de sua vida pública, exemplificou sua tolerância e sua caridade diante da mulher adúltera e do bom ladrão, no alto do Calvário.
          Passados vinte séculos hoje perguntamos qual o significado do seu nascimento para cada um de nós. Sobretudo perguntamos quantos já leram e estudaram o seu Evangelho. Nesse singelo banco escolar que é o planeta,  -- onde ainda somos espiritualmente crianças  -- seu conteúdo é uma cartilha insubstituível para soletrarmos obeabá do amor, da paciência e do perdão. Diante das sabatinas diárias da vida é imprescindível aprendermos o que significa “orar e vigiar” e não fazer a ninguém o que não queremos que nos façam. Quantos são capazes de vivenciar suas lições e seus exemplos, ante as provas e os embates do dia a dia, oferecendo a outra face ante o agressor e perdoando sempre? Se já começamos a ensaiar essa difícil conduta então Jesus já nasceu para nós e temos um Natal para comemorar. Mas muitos ainda trazemos o coração fechado a essa realidade, tais como as estalagens de Belém, cujas portas se fecharam ao seu nascimento.
          Se perguntássemos a Paulo de Tarso onde nasceu Jesus, ele certamente diria que foi diante das Portas de Damasco, onde chegou para aprisionar alguns cristãos da cidade. Se perguntássemos a Maria Madalena onde Ele nasceu, com certeza, responderia que Jesus nasceu para ela na casa de Simão, o fariseu. Foi ali que depois de lavar e enxugar seus pés ela ouviu sua voz compassiva perdoando-lhe os pecados.
  Onde predomina o orgulho e o egoísmo --- essas patologias crónicas da alma humana --- Ele não poderá renascer, ainda que invocado em rituais e ladainhas. É imprescindível que façamos do coração uma manjedoura humilde para que Jesus possa renascer em nossas vidas. Caso contrário, além da beleza sentimental da fraternidade e o significado envolvente do Natal no seio da família, temos apenas uma data histórica para comemorar, com muitos presentes, a figura patética de um Papai Noel, um banquete de sabores e aparências e o apego às ilusões do mundo. " Manoel de Andrade, poeta brasileiro