Parábola de Natal
Era um fim de tarde
embatente de frio e uma névoa descia lenta e espessa na cidade.
Por Baptista-Bastos
«Comecei
a vê-los assim que me aproximei do hospital. Eram umas dezenas: homens,
mulheres, velhos, novos, alguns deficientes, todos encostados às paredes dos
numerosos restaurantes que por ali havia. Esperavam os restos dos almoços, com
disciplina e contenção. À distância, um carro da Polícia vigiava. Mas nada de
sobressaltante acontecia. "Tudo calmo, por aqui", comunicava um dos
agentes para a esquadra. O tempo era inclemente e a solidariedade parecia
desempregada. Nas ruas, as pessoas não se cruzavam, trespassavam-se com a
indiferença de quem apenas quer saber de si.
Ia
ver a minha mulher, que quebrara a perna esquerda em duas partes e os médicos
preparavam-na para a engessar. Eu vira os ossos de perna dela expostos e
ensanguentados e a imagem perturbara-me. Os nossos filhos iam vê-la, consoante
a disponibilidade dos horários das escolas e os do hospital. O mais novo
parecia que ronronava e estava constantemente a afagar-lhe o braço, com a cara
encostava ao corpo dela. Contei-lhe das pessoas que aguardavam as sobras dos
restaurantes, e de dois amigos nossos que tinham sido presos. Política, está
bom de ver. O hospital, o de São Lázaro, estava repleto. Disse-me ela: "Há
muito mais velhos do que novos. Os velhos caem em casa. Há alguns novos, mas a
maioria é constituída por velhos que caíram em casa." Agora, caía uma
chuva miúda e a cidade cheirava a peixe podre. Ouviu-se o silvo de uma
ambulância e um grito longínquo. "Daqui a duas semanas, saio, mas vou
ficar uns tempos largos com a perna cheia de gesso. E dá--me uma comichão
enorme. Tens chegado cedo a casa?" Aproxima-se um médico. Não me liga
nenhuma e faz perguntas do estado de saúde da minha mulher. Ela responde-lhe
dificultosamente e estou à beira de intervir na conversa. A arrogância dos
médicos é como se fora o seu estatuto social. Despeço-me dela e acaricio-lhe o
belo rosto com ternura. "Já não sei dormir sem ti", digo. "Vem
depressa." A rua é um bloco de gelo, e os eléctricos circulam vazios. As
pessoas comem dos caixotes, depois de escolherem as peças mais apresentáveis.
Um dos deles olha-me fixamente. Diz: "Nunca viu um homem comer?"»
Baptista-Bastos, em Artigo de Opinião publicado no CM, em 24.12.2014
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