A minha mãe, quando me contou a estreia do Bolero, falou-me da sua emoção, dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do tumulto. Algures na mesma sala , encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss. Como ele,muito mais tarde, a minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida.
Agora compreendo porquê. Sei o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados.
Escrevi esta história em memória de uma jovem que, involuntariamante, foi uma heroína aos vinte anos. " J.M.G. Le Clézio, in " A Música da Fome", Publicações Dom Quixote, Julho de 2009
Sempre que escuto o Boléro de Ravel, relembro, de imediato , dois grandes momentos de intensa emoção e fulgor. O filme " Les uns et les autres" de Claude Lelouch onde se apresenta uma das mais belas criações, em bailado, desta obra-prima com a espantosa coreografia de Maurice Béjart e a soberba execução de Jorge Donn. O outro momento refere-se a este romance de Clézio, a Música da Fome, de onde se extraiu o pequeno texto introdutório. Romance que tem como cenário a última Guerra Mundial e a consequente acção devastadora que provocou em França. Tal como o Boléro, a Fome desenvolve-se em crescendo até ao apogeu final. É a Música da Fome. Um livro belo de uma escrita sóbria e despida que nos enleva e marca.
Sidi Larbi Cherkaoui et Damien Jalet apresentaram no Palais Garnier, a 2 e 3 de Junho de 2013, uma nova visão do Boléro de Ravel. Ao revisitá-lo, criaram uma forte coreografia onde se assiste à explosão de uma verdadeira energia aliada a uma densa elevação espiritual protagonizada por um corpo de bailado de grande qualidade. Esta criação faz parte do repertório de L’Opéra de Paris.
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