“A vida é curta e é pecado perder o seu tempo. Sou activo, diz-se. Mas
ser activo é ainda perder o seu tempo, na medida em que nos perdemos. Hoje é um
descanso e o meu coração parte ao encontro de si próprio. Se uma angústia ainda
me estreia, é a de sentir este impalpável instante escorregar-me por entre os
dedos como as gotas do mercúrio. Deixai, pois, aqueles que querem voltar as
costas ao mundo. (...) Posso dizer, e direi daqui a pouco, que o que conta é
ser humano e simples. Não, o que conta é ser verdadeiro e então, tudo aí se
inclui, a humanidade e a simplicidade. E quando posso eu ser mais verdadeiro do
que quando sou eu o mundo? Sou satisfeito antes de ter desejado. A eternidade
está ali e eu esperava-a. Já não é ser feliz o que eu desejo agora, mas apenas
ser consciente.
Um homem contempla e o outro cava o seu túmulo: como distingui-los? Os
homens e o seu absurdo? Mas aqui está o sorriso do céu. A luz aumenta e breve
será o Verão? Mas aqui estão os olhos e as vozes daqueles que é preciso amar.
Estou preso ao mundo por todos os meus gestos, aos homens por toda a minha
piedade e o meu reconhecimento. Entre este direito e este avesso do mundo, eu
não quero escolher, não gosto que se escolha. As pessoas não querem que se seja
lúcido e irónico. Eles dizem: «Isso mostra que não és bom.» Não vejo a relação.
Decerto oiço dizer a uma delas que é imoralista, traduzo que ela tem
necessidade de atribuir-se uma moral; a outra que despreza a inteligência,
compreendo que ela não pode suportar as suas dúvidas. Mas porque eu não gosto
que se faça batota. A grande coragem é ainda a de ter os olhos abertos para a
luz como para a morte. Além disso, como explicar a ligação que leva deste amor
devorador à vida a este desespero oculto? Se escuto a ironia escondida no fundo
das coisas, ela descobre-se lentamente. Piscando o olho pequeno e claro: «Vive
como se...», diz ela. Apesar de muitas pesquisas, aqui está toda a minha
ciência."
Albert Camus, in "O avesso e o direito", Editora Livros do Brasil, p.75-76
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