quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A ESTRADA DA FELICIDADE

A ESTRADA DA FELICIDADE
                                                               Há muitas estradas para a felicidade, se 
                                                               os deuses estiverem de acordo.
                                                                                         Píndaro, Odes
"No dia 21 de Março, acordei cedo, como de costume , em casa dos meus pais, na Rua Fernandes da Piedade. A cerimónia do casamento civil iria ter lugar no pequeno hall da entrada da casa, vindo o oficial do Registo até nós e não nós até ele. Eu estava vestido a carácter e a MA apareceu num vestido branco lindíssimo. Vinha serena, sorridente e menineira ( na véspera ou  antevéspera tinha estado invulgarmente nervosa).
Havia bastantes convidados, especialmente do lado dos meus pais. Os pais da Antonieta foram mais discretos e comedidos. Assinámos galhardamente o " compromisso", beijámo-nos, recebemos felicitações e fomos todos para um copo de água, servido no 1º andar do "Café Nicola", situado na Baixa, na Praça 7 de Março. ( Este café viria a ser baptizado pela nossa inesquecível Quina - Maria Joaquina Rodrigues - como o " Kremlin", por ali se reunir uma avantajada fatia da gente de esquerda, como suponho já ter dito).
Demorámos o minimamente necessário, no copo-de-água, e escapámo-nos o mais depressa que pudemos, para nos vestirmos de leve e partirmos de viagem ( eu comprara, pouco antes, um pequeno " Ford", visto que não queria levar o carro da Companhia). Seguimos, via Nelspruit, no Transval, para um hotel de montanha, em Kaapsehoop, não longe daquela pequena cidade.
À partida de Lourenço Marques e durante quase toda a viagem, o dia estava de sol, mas, ao entrarmos na estrada ascendente, que nos levava ao hotel, no topo do monte, era já noite e chovia desabridamente. O hotel, que me fora recomendado pelo meu amigo Rui Baptista, foi um choque: era um velhíssimo edifício de madeira e zinco, e rimava em sintonia gótica, com a noite de bruxas e lobisomens que desabara sobre nós. Eu fiquei transido de desapontamento: embora por dentro o hotel não fosse desagradável, não era aquilo com que tinha sonhado...Fora-me recomendado, como disse, por um amigo, em Lourenço Marques, que ali estivera, provavelmente com tempo primaveril e não em lua-de-mel. Era só por uma noite, mas não era o presente que eu gostaria de dar à MA. Mas ela tinha - como ainda tem - um sentido de humor, que surge sempre, quando é necessário. Jantámos e fomos deitar-nos.
No dia seguinte, partimos, via Pretória e Johannesburg, para Durban. Aí, tinha eu escolhido, por bem conhecer a cidade, o "Hotel Claridge", aparatoso e muito mais sofisticado. Ali ficámos cerca de uma semana, explorando Durban e explorando os complicados caminhos de, pela primeira vez, viver a dois.  A MA era - é - uma pessoa extremamente perceptiva, sensível e de uma grande inteligência dos outros. " Mata-os", por assim dizer, muito antes de mim. Estar com ela era, para mim, um encanto - e,  em muitos aspectos uma  aprendizagem. Ela observava, com atenção disponível e fina, "as pequenas coisas" que me escapavam.
Receio não ter sido um grande cicerone, porque andava num grande tumulto de emoções. E tinha um medo enorme de cometer gafes que lhe ferissem a sensibilidade. Se calhar cometi.
Tinha planeado irmos passar uns dias às montanhas de Drakensberg, no Natal, mas não foi possível, por não haver vaga no hotel. De modo que terminámos a lua-de-mel, em Durban e seguimos para Lourenço Marques. ( O pérfido do Noel Coward costumava dizer que a lua-de-mel é uma ocupação cujo valor tem sido sobrestimado, mas é evidente que não sabia do que estava a falar , por nunca ter experimentado...) Era o ano de 1959. Fomos directamente para a casa da Matola, onde várias coisas, como a instalação de água, não estavam a funcionar...Lá nos fomos adaptando à nova vida , eu, tapado de problemas, numa estação terminal cheia de defeitos técnicos - preço de terem poupado demasiado na construção... A MA, adaptando-se à nova vida de dona-de-casa (inexperiente), com a agravante de eu me ensaiar pouco para levar para casa, alguém, sem avisar...
Não me custou muito adaptar-me  à vida a dois, sendo a MA a pessoa que era: mandando, sem dúvida, no seu Marão, mas perceptiva, inteligente e compreensiva. Ao fim da tarde, quando o serviço mo permitia, íamos até à cidade, para um café, um jantar em casa dos meus Pais ou uma matinée no "Scala" ( às 17.05h).
Foi nessa altura que afinei contactos com os amigos do "Kremlin" ("Café Nicola"). Um deles, foi o Rui Knopfli, que aparecia com ar de pássaro predador, boné nada proletário e palavra afiada e maldosa. Adorava dizer coisas que ofendiam a ortodoxia do " Kremlin", mas tudo lhe era perdoado. Gostava de praticar um humor ultrajante, com uma espécie de grosseria de grand seigneur. Se alguém elogiava muito as qualidades de carácter e de trabalho de um bonzo qualquer, o Knopfli interrompia, brutal: "Toma pouco banho!" Se alguém embasbacava liricamente, para os filmes  de Chaplin, o Knopfli cortava, rente: " Prefiro, de longe, o Bucha e o Estica."  Adorava ferroar os neo-realistas, sobretudo em dias de missa de esquerda bem pensante. O cúmulo do gozo era , para si, destoar. Era , sinceramente , amigo do Craveirinha, que, sorrindo, o apelidava de "lacrau". Quando este o visitava, os cães, sempre profundamente racistas, punham-se a ladrar e logo o Knopfli se apressava  a desculpá-los " Sabes, Zé, os gajos não gostam de pretos". O Craveirinha  desarticulava-se a rir e alisava-lhe as costas, com uma patadinha de ternura: " Grande lacrau...".
(...) 
Foi, por esta altura, que soube da doença fulminante do Reinaldo Ferreira. Estava com um cancro  dos pulmões, internado na Casa de Saúde da Ema Machado da Cruz. Andei a ganhar forças para ir vê-lo. Sabia que era um cancro terminal. Viera de Johannesburg, onde o médico lhe tirara toda a esperança. Como não tínhamos relações muito próximas, eu temia que o meu aparecimento  pudesse significar que "eu sabia". Mas, de qualquer maneira, ele também sabia. E lá fui, de coração apertado, sem qualquer experiência destas situações. Ao chegar, verifiquei que estava lá mais gente. Entremeti o nariz na porta e vi o Reinaldo, estendido no leito, imóvel. Acenei-lhe, sorriu-me. Perguntei desastradamente: " Então, Reinaldo?"Encolheu os ombros, com um ar meio resignado, meio indiferente. Acenei-lhe, de novo, e retirei-me à pressa, para ele não ver a minha comoção. Viria a falecer a 3 de Junho, isto é, pouco depois. Esta morte, quase no momento do meu casamento, afectou-me profundamente. Foi uma pavorosa confirmação. De quê? De uma vulnerabilidade, da nossa efemeridade, do imprevisível, do súbito, do brutal e definitivo.
Embora o não mostrasse, sentia-me profundamente atingido. Vinha-me frequentemente , a memória daquele encolher de ombros. Eu tinha, no fim de contas frequentado o Reinaldo, muito pouco. Mas tinha ficado a gostar muito dele: mais da sua generosidade, até, do que do seu grande talento de poeta e de conversador. Lembrava-me dele como de um pássaro injustamente ferido, em pleno voo. Os deuses, não havia dúvida, ou eram arbitrários ou eram estúpidos: feriam às cegas, sem olhar a quem.
Em Agosto desse mesmo ano, num sarau de poesia, organizado na Câmara Municipal, coube-me falar de poesia de Reinaldo, então ainda não reunida em livro. O texto que li, veio posteriormente a servir de prefácio à edição dos Poemas, publicados no ano seguinte, pela Imprensa Nacional de Moçambique. E foi, depois, incluído no 1º volume da minha Crónica dos Anos da Peste."
Eugénio Lisboa, in " ACTA EST FABULA, Memórias -III - Lourenço Marques Revisited (1955-1976), Ed. Opera Omnia, Outubro de 2013

Eugénio Lisboa programou o registo das suas memórias em cinco volumes. Foram já publicados o Volume I que compreende o período entre 1930 e 1947 e o volume III referente aos anos de 1955 a 1976.  A publicação do volume IV está prevista para os próximos meses de Outubro ou Novembro. Aguardamo-la com obstinada impaciência.

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