"Nos Rastros da Utopia", de Manoel de Andrade, continua em destaque no meio literário brasileiro. Alvo da curiosidade e do interesse de um público em constante crescimento, Manoel de Andrade tem proferido diversas palestras em Universidades brasileiras.
Ao Manoel de Andrade , em jeito de saudação, apresentamos a transcrição de um outro excerto da sua saga libertária.
"Carmen 340. Quem não conheceu esse endereço , na década de 1960, em Santiago? A Peña de los Parra foi o berço da Nueva Canción Chilena. Aqueles eram anos mágicos e o embalo da renovação musical contagiava a América inteira, a começar pelo Brasil, que de 1966 a 1972 realizou no Maracanãzinho o Festival Internacional da Canção, amplamente transmitido pela televisão. O fenómeno cultural, aparentemente sem nenhuma conexão internacional, era marcado pelo conteúdo social numa poética de protesto que era ouvida dentro mesmo dos Estados Unidos , na voz de Joan Baez e Bob Dylan. Em Cuba com a Nueva Trova protagonizada por Pablo Milanes e Silvio Rodriguez. São os anos em que o Brasil cantava com Geraldo Vandré, Chico Buarque , Tom Jobim e José Carlos Capinam e em que a América revolucionária cantava nas vozes de Athaualpa Yupanqui, Daniel Viglietti, Mercedes Sosa, Soledad Bravo, Victor Jara e quando começava a se ouvir, no continente, a canção desterrada em toda a Espanha do catalão Joan Manuel Serrat.
A Nueva Canción Chilena foi marcada pelo aparecimento de novos intérpretes e solistas, compositores e conjuntos que deram uma diferença feição musical ao país. Sob a influência da música andina e as profundas raízes do folclore, sua bandeira estava tingida com as cores das lutas sociais desfraldadas contra a perseguição, a violência e a censura cultural da ultrarreacionária burguesia chilena. Comprometida historicamente com os ideais socialistas e com o povo, a Nueva Canción transformou as reivindicações operárias e camponesas em letra , ritmo, melodia e encanto, e sua voz ecoou nos grandes auditórios universitários, nos recitais para a classe trabalhadora, popularizando-se através das peñas do país - locais onde se ouvia a melhor música, comia-se empanadas, tomava-se o pisco e o bom vinho chileno.
As suas origens remontam à década de 1940, nas vozes de Margot Loyola e Violeta Parra, e começa a ecoar no fim dos anos 1960, alheia a toda música de consumo e questionando a penetração cultural imperialista. Teve sua alta ressonância durante a campanha presidencial e triunfo da Unidade Popular em 1970, ouvida, sobretudo, no recinto da Peña de los Parra e na interpretação de grandes conjuntos como Quilapayún e Inti Illimani.
Naquele Abril de 1969, a Peña de los Parra estava em plena floração e dali exalava o melhor perfume musical do Chile. Herdeiros da genialidade musical de Violeta Parra, seus filhos Isabel Angel Parra abrem, em meados dos anos 1960, numa grande casa no centro velho de Santiago, o local de onde irradiaria todo o significado musical do movimento. Foi ali que ouvi os irmãos Parra, Rolando Alarcón y Patrício Manns que incorporaram inicialmente o grupo, e depois, no meu retorno ao Chile em 1972, as inesquecíveis interpretações de Victor Jara. Era a época em que ali também cantavam o temucano Tito Fernández, Osvaldo " Gitano" Rodriguez e o conjunto Los Curacas. Sempre havia cantores convidados e por ali passaram o argentino Atahualpa Yupanqui e o espanhol Paco Ibañez.
Mas silenciou bruscamente em 1973, com a queda do Governo de Salvador Allende. E tanto no Chile como no Brasil este marcante fenómeno musical teve um momento culturalmente grandioso, mas historicamente trágico. No Brasil, depois de 1968, foi marcado com a prisão e o exílio dos grandes compositores. No Chile, terminou com um verdadeiro genocídio de bravos. No dia 11 de Setembro de 1973 - exactamente 38 anos antes do fatídico ataque dos aviões às Torres Gémeas, em Nova Iorque - um ataque da aviação chilena contra o Palácio de la Moneda derruba o primeiro governo socialista livremente eleito na América. Depois da morte de Salvador Allende, seguiram-se momentos de perseguição e pânico social. Do grupo que integrava a Peña de los Parra, Victor Jara foi um dos primeiros a ser preso. Detido no recinto da Universidad de Chile, onde trabalhava, foi levado com mais 600 estudantes para o Estádio Chile - hoje Estádio Victor Jara. Durante quatro dias, foi barbaramente torturado, quebraram-lhe as mãos com golpes de revólver e finalmente foi assassinado com 44 tiros . Ao ver suas mãos totalmente quebradas, seus carrascos lhe disseram com ironia: " Agora pode tocar violão". Neste Dezembro de 2009, seu corpo foi exumado e seus restos sepultados , com a presença de 12.000 pessoas."
Manoel de Andrade, in " Nos rastos da utopia, uma memória crítica da América latina, nos anos 70", Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2014
Manoel de Andrade, in " Nos rastos da utopia, uma memória crítica da América latina, nos anos 70", Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2014
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