O Humor de Stephen Leacock:
“Uma cultivada Insolência”
Por Eugénio Lisboa
"Às vezes,
acontece: compramos um livro que nos chama a atenção e nos acicata o apetite de
o lermos e, depois, por qualquer razão, outros passam à frente e este fica
esquecido por mais de uma década... Aconteceu-me com esta sumptuosa antologia
de um dos maiores humoristas do século XX, cuja obra se situa entre 1910 e
1945: Stephen Leacock, canadiano de nacionalidade, que nasceu em 1869 e faleceu
em 1944. A antologia a que me refiro – The
Penguin Stephen Leacock, Selected and introduced by Robertson Davies - ,
publicada em 1981, jazia na minha biblioteca, desde 1982, ano em que a comprei,
em Londres. Só agora a fui ler. Leacocock foi admirado (e utilizado) por
grandes actores cómicos como Jack Benny, a quem Groucho Marx apresentou as
obras do grande escritor (e professor) canadiano.
As pessoas
que nos fazem rir nem sempre são de feitio fácil. No geral, são até grandes
pessimistas (como Mark Twain) ou francamente hipocondríacos, como Marcel Aymé.
Dizia precisamente Mark Twain, com um saber de experiências feito, que: “A
fonte secreta do humor não é a alegria mas sim a tristeza. Não há humor no
céu.” Quanto a Leacock, Robertson Davies informa-nos, cautelosa e
eufemisticamente, de que o autor de “My Financial Career” “não era,
necessariamente, um homem de temperamento solar e descuidado”, aludindo,
enviesadamente, à sua “têmpera imperiosa”. Alguma razão terão os humoristas
para a sua amargura e para o seu pessimismo. O estado do mundo há muito que não
promete grandes coisas. O conhecido político e embaixador americano Henry Cabot
Lodge, olhando o mundo do seu tempo, oferecia-nos este pálido rebuçado: “Esta
organização [a ONU] foi criada para nos impedir de irmos para o inferno. Não
foi criada para nos levar para o céu.” De qualquer modo, se outras razões não
tivessem, os humoristas teriam, desde logo, boas razões de queixa, por a
generalidade dos críticos e outros escritores os olharem como cultores de
“literatura ligeira”. O escritor E. B. White notava-o, reprovadoramente: “O
mundo gosta do humor, mas trata-o com paternalismo.” A Academia Sueca, por
exemplo – e bem em contradição com o espírito do patrono do Prémio Nobel –
parece desprezar o eminente contributo dado à literatura e ao bem-estar das
pessoas por escritores do calibre de Mark Twain, P. G. Wodehouse, Dorothy Parker,
Ring Lardner, Damon Runyon, O.Henry, Evelyn Waugh, Art Buchwald, H. L. Mencken,
Robert Benchley, James Thurber, Groucho Marx, Woody Allen, S. J. Perelman e
este que hoje aqui nos traz: Stephen Leacock. Entre outros. Tudo, escritores,
no meu humilde pensar, bem mais merecedores do augusto galardão do que
tantíssimas mediocridades, de pendor soturno, qualidade artística mais do que
duvidosa e teor de pensamento muito questionável. Além do mais, os grandes
humoristas escrevem todos admiravelmente, o que nem sempre é o caso de muitos
nobelizados.
A ideia de
que o humorista não é sério ou não é para levar a sério é uma ideia sem pernas
para andar. A brincar, se dizem sérias e importantes verdades, ou, como queria
o espírito acerado desse incómodo irlandês, que se chamava George Bernard Shaw,
“a vida não cessa de ser cómica quando alguém morre, do mesmo modo que não
cessa de ser séria quando as pessoas riem.”
É certo que,
hoje em dia – e Portugal não é excepção – os humoristas têm a vida facilitada,
devido à abundância de matéria prima. Dizia o impagável Will Rogers (e o que
disse vale para hoje e para “aqui”) que “não é avaria ser humorista quando todo
o governo trabalha para eles.” De facto, basta abrir a televisão e ouvir um
ministro falar: não é preciso ir à caça de mais tema!
Voltando a
Leacock, recomendo-vos, de modo geral, tudo o que escreveu, e, de modo
particular, as coisas atrevidas que glosou sobre o mundo da finança e da
governação, o mundo das conferências, a Universidade de Oxford, os escritores
clássicos da Grécia e de Roma, etc.
Este género
de humor especialmente afrontoso (e afronta, sobretudo, a hipocrisia dos
“scholars”) e à beira do ultraje, é também cultivado pelo grande H. L. Mencken,
que escreve coisas como esta: “Leva bastante tempo, a uma pessoa naturalmente
crédula, para se reconciliar com a ideia de que Deus, no fim de contas, não a
vai ajudar.” Outro exemplo particularmente contundente é o deste “graffito”
anónimo, aparecido em 1975: “Deus não está morto. Está vivo, mas a trabalhar
num projecto muito menos ambicioso.” O afrontoso pode revestir conotações brejeiras,
como neste aforismo de Lichtenberg: “Aquilo a que se chama «coração» fica muito
abaixo do último botão do colete.”
Mas,
voltando ainda a Leacock, não queria furtar-vos ao prazer de vos dar esta
amostra da desenvoltura com que trata a famosa Universidade de Oxford. Depois
de nos dar um quadro propiciatório (“Tem professores que nunca ensinam e alunos
que nunca aprendem”), oferece-nos o formato, deliciosamente “inglês” do
“professor”: “era suposto ser uma espécie de pessoa venerável, com bigodes, de
uma brancura de neve, que chegavam até ao estômago. Esperava-se dele que
vadiasse pelo campus, esquecido do mundo à sua volta. Se lhe acenavam, não dava
por nada. De dinheiro, nada sabia; de negócios, muito menos. Era, nas
orgulhosas palavras dos seus administradores, «uma criança»”. Mas, por outro
lado, observava Leacock, “ele tinha, dentro de si, um reservatório de saber de
tal profundidade, que era praticamente sem fundo. Nada, deste saber, parecia
ser de qualquer valor material ou comercial para ninguém. A sua utilidade
residia em salvar a alma e alargar o espírito.”
Na
introdução que escreveu para a bela antologia The Best of Modern Humour (Allen Lane, London, 1983), Mordecai
Richler informa-nos de que uma jovem senhora de Oklahoma City perguntou um dia
ao humorista James Thurber se havia algumas boas regras para escrever histórias
cómicas. O grande humorista respondeu, entre outras coisas ligeiramente menos
significativas, que se devia evitar, a todo o custo, escrever histórias “acerca
de canalizadores que passam por cirurgiões, de xerifes que se assustam com o
tiroteio, de psiquiatras que dão em doidos com pacientes do outro sexo, de
médicos que desmaiam à vista de sangue, de raparigas adolescentes que sabem
mais de sexo do que os pais e, por fim, de anões que se verifica serem os pais
de um matulão com cem quilos de peso.” Em suma, evitar o uso grosseiro e
estafado do óbvio. Em nenhum destes pecados, juro, incorre Stephen Leacock.
Para terminar, faço ao leitor um pedido: caso estes exemplos de humor mais ou menos afrontoso ponham na sua (do leitor) cabeça a ideia oportunista de um mestrado sobre “o sentido profundo e transcendente do humor em José Duro”, peço-lhe empenhadamente que desista – lembre-se do que, a este respeito, observou o inimitável Robert Benchley: “Definir e analisar o humor é o passatempo de pessoas destituídas de humor”. Fica avisado. E diga-me quando a sua dissertação de mestrado vier à luz." Eugénio Lisboa em "Pro Memoria", Jornal de Letras
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