Por Anselmo Borges
"Ainda se pode dizer algo que não tenha já sido dito sobre Nelson Mandela,
perante quem o mundo todo se inclinou, em sinal de respeito e veneração, aquando
da sua morte a 5 de Dezembro passado, aos 95 anos? Já antes também.
Estive várias vezes na África do Sul, ainda no tempo do apartheid. Ainda vi,
por exemplo, em bancos de jardim ou indicação de praia, a ordem: "Whites only"
(só para brancos). Se pude visitar o Soweto, foi porque o afável bispo católico
de Joanesburgo, que não era racista, pediu ao pároco negro que me acompanhasse.
E foi com muita simpatia que me receberam.
Muitas vezes me perguntei como é que aquela ignomínia iria acabar. Seria
possível sem um banho de sangue? Foi possível. Pacificamente, abriu-se o caminho
para a democracia no quadro da coexistência racial. Isso deveu-se certamente
também à inteligência política do presidente De Klerk, no novo contexto criado
pela queda do muro de Berlim. Mas, para evitar a tragédia, o espírito e a acção
de Mandela foram determinantes. Afinal, tudo está naquele gesto de apertar a mão
aos carcereiros e convidá-los para o banquete de inauguração da nova presidência
da "nação arco-íris". É necessário caminhar com a utopia, que nos diz, por um
lado, o que não pode ser, porque intolerável, e, por outro, nos indica o caminho
do para onde se deve ir.
Mandela percebera que os seus carcereiros eram seres humanos habitados pelo
medo. Ora, o medo é do pior que há. O medo tolhe a razão e a capacidade de
pensar. É preciso ter medo de quem tem medo, de tal modo que a primeira
libertação tem de ser a libertação do medo. Também e sobretudo no universo da
religião. Aterrados pelo medo de Deus, homens e mulheres que se julgam
religiosos caminham fatalmente para desgraças tenebrosas. Por isso, a Bíblia é
atravessada pela compreensão histórica lenta, que culmina em Jesus, através da
sua experiência, palavras e acções, de que a única tentativa de "definir" Deus é
(está em São João): Ho theós agapê estín (Deus é amor incondicional, Deus é
Força infinita de criar e só sabe amar).
Mandela era cristão. Por isso, sabia que se deve perdoar aos inimigos. Pelo
Evangelho, também sabia que os romanos enquanto potência de ocupação podiam
obrigar um judeu a transportar a bagagem na distância de uma milha, sendo neste
contexto que se percebe o que Jesus diz: "Faz uma segunda milha de livre
vontade." Talvez o romano começasse a conversar, e quem sabe se não acabariam
por beber um copo juntos? A reconciliação, a solução pacífica dos conflitos é
preferível à violência e à guerra. E Jesus, do alto da cruz, rezou: "Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem."
De qualquer modo, o perdão é um milagre, também em política. Jürgen Habermas,
agnóstico, talvez o maior filósofo vivo, que quereria uma filosofia que
herdasse, num processo de secularização mediante a razão comunicativa, os
conteúdos semânticos da religião e a sua força, reconheceu que há um resto na
religião não herdável pela simples razão. Disse-o num discurso famoso, por
ocasião da recepção do prémio da paz dos livreiros alemães e já depois dos
acontecimentos trágicos do 11 de Setembro de 2001. Esse resto tem que ver
nomeadamente com o drama do perdão.
O perdão, em última análise, já não pertence à ordem do jurídico nem do
político. No perdão do imperdoável, é a razão humana enquanto capacidade do
cálculo que é superada, pois nem o algoz tem direito ao perdão nem a vítima é
obrigada a perdoar. Como escreveu o filósofo Jacques Derrida, perdoar o
imperdoável aponta para algo que está para lá da imanência, "qualquer coisa de
trans-humano": "na ideia do perdão, há a da transcendência", pois realiza-se um
gesto que já não está ao nível da imanência humana. Aí, começa o domínio da
religião. "A partir desta ideia do impossível, deste "desejo" ou deste
"pensamento" do perdão, deste pensamento do desconhecido e do transfenomenal,
pode muito bem tentar-se uma génese do religioso." Anselmo Borges , em artigo de opinião publicado no DN, em 1.02.2014
Sem comentários:
Enviar um comentário