Paco de Lucía. A rebelião do flamenco fez-se com estas
seis cordas
O mestre da guitarra sofria em palco e encontrava
tranquilidade na jardinagem. Morreu ontem, com 66 anos
"Sentado, de olhos fechados e perna cruzada, dançava ao som
das próprias notas, sempre de expressão contida e serena. Francisco Sánchez
Gómez ficou conhecido mundialmente por Paco de Lucía - o último nome emprestado
da mãe, uma portuguesa de Castro Marim, Lúcia. Agitou os pilares da música dos
anos 60 e daí em diante fez a sua revolução. Celebrizou o flamenco e ousou
misturá-lo com outras sonoridades: ele e uma guitarra. Morreu ontem, aos 66
anos, numa praia em Cancún, no México, de ataque cardíaco.
Nascido e criado no bairro de La Bajadilla, em Algeciras,
predominantemente cigano, cedo que se familiarizou com a música, a guitarra em
particular. O pai era vendedor ambulante durante o dia e músico de baile em
baile quando o Sol se punha. Assim, não é de estranhar que Paco tenha
encontrado na guitarra uma parceira, pelos seis anos. Numa família humilde, foi
trabalhar cedo para ajudar em casa e tudo o que aprendeu na música foi por
instinto, "era como falar, para mim", revela no documentário "Paco
de Lucía", de 2002. Maria e Antonio, irmãos, também cantavam e tocavam,
respectivamente. Mas foram outros dois irmãos que também acabariam por
enveredar pela música, Ramón e Pepe. Com o último lançou em 1963, com apenas 16
anos, o seu primeiro disco, "Los Chiquitos de Algeciras". Tinham-se
feito ouvir pelo grande público pouco antes, através da emissora local, a Rádio
Algeciras. Paco encontrou num amigo de família um dos seus mentores, Niño
Ricardo, conhecido como o mestre da guitarra espanhola. Um dia disse que Paco
ia ser grande.
"Entre dos aguas", lançado em 1975, confirmou o
sucesso de Paco, que foi convidado a actuar numa das salas mais prestigiadas do
país, o Teatro Real de Madrid, que por hábito só acolhia espectáculos de música
clássica. Os anos 70 criaram também aquela que se revelaria uma das mais fortes
parcerias no mundo do flamenco: Paco aliou-se ao cantor Camarón de la Isla e
juntos tocaram, durante anos, a forçar os limites do flamenco. Nesta década
seriam editados sucessos como "El duende flamenco" (1972),
"Fuente y cuadal" (1973) ou "Almoraima" (1976).
Com a morte de Camarón e com os problemas de direitos das
canções (que eram partilhadas), Paco entrou numa fase difícil, agravada pela
morte dos pais. Afastou-se dos palcos mas acabaria por regressar à actividade,
sempre sem limites estilísticos, com registos tão distintos como
"Siroco" (1987), "Zyryab" (1990) ou "Concierto de
Aranjuez" (1991). O último disco que gravou foi "Cositas
buenas", de 2004, que, aliás, apresentou em solo português. Nesse mesmo
ano recebeu um dos maiores reconhecimentos do país, o Prémio Príncipe das
Astúrias, e poucos meses depois um galardão de projecção internacional, o
Grammy latino para melhor álbum de flamenco, com esse último trabalho.
Conta várias colaborações com outros artistas, também fez
parte de grupos distintos. Nos anos 80 aliou a outro nome conhecido de fora do
mundo flamenco, John McLaughlin, britânico que ganhou fama pelo jazz de fusão
influenciado pelo rock. Numa parceria mais inverosímil, também tocou para Bryan
Adams a melodia de "Have you really loved a woman". Também com
McLaughlin e com Al Di Meola criou um dos mais famosos trios de guitarra de
sempre.
Conseguiu encaixar a salsa, os ritmos árabes, o rock, os
blues, o jazz e a bossa nova no flamenco, provocando alguns puristas mas
surpreendendo pela positiva a maior parte do público. Também entrou na grande
tela através das bandas-sonoras de filmes tão populares como o "Vicky,
Cristina, Barcelona", de Woody Allen, ou da série "Kill Bill", de
Tarantino.
Casou pela primeira vez nos anos 70, contra a vontade dos
pais, e desse casamento teve dois filhos. Voltaria a casar e teria outros dois.
Tinha uma vida terra a terra, fazia jardinagem, mergulho e pesca, actividades
que aproveitava numa vida tranquila no México. "Com a guitarra já sofri
muito, mas depois de passar bons momentos esse sofrimento pareceu-me valer a
pena." Tinha uma relação particular com a sua arte: gostava de
"sentir essa coisa masoquista da criação", mas nem por isso lhe
agradava a fama e tudo o que ela implicava. Arranca a sua história no
documentário: "Reivindico para mim o Francisco Sánchez que gosta da paz,
da tranquilidade, da serenidade. Tudo isso é incompatível com viver com Paco de
Lucía." Maria Espírito Santo, in Jornal i
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