quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Morreu Paco de Lucia

Paco de Lucía. A rebelião do flamenco fez-se com estas seis cordas
O mestre da guitarra sofria em palco e encontrava tranquilidade na jardinagem. Morreu ontem, com 66 anos
"Sentado, de olhos fechados e perna cruzada, dançava ao som das próprias notas, sempre de expressão contida e serena. Francisco Sánchez Gómez ficou conhecido mundialmente por Paco de Lucía - o último nome emprestado da mãe, uma portuguesa de Castro Marim, Lúcia. Agitou os pilares da música dos anos 60 e daí em diante fez a sua revolução. Celebrizou o flamenco e ousou misturá-lo com outras sonoridades: ele e uma guitarra. Morreu ontem, aos 66 anos, numa praia em Cancún, no México, de ataque cardíaco.
Nascido e criado no bairro de La Bajadilla, em Algeciras, predominantemente cigano, cedo que se familiarizou com a música, a guitarra em particular. O pai era vendedor ambulante durante o dia e músico de baile em baile quando o Sol se punha. Assim, não é de estranhar que Paco tenha encontrado na guitarra uma parceira, pelos seis anos. Numa família humilde, foi trabalhar cedo para ajudar em casa e tudo o que aprendeu na música foi por instinto, "era como falar, para mim", revela no documentário "Paco de Lucía", de 2002. Maria e Antonio, irmãos, também cantavam e tocavam, respectivamente. Mas foram outros dois irmãos que também acabariam por enveredar pela música, Ramón e Pepe. Com o último lançou em 1963, com apenas 16 anos, o seu primeiro disco, "Los Chiquitos de Algeciras". Tinham-se feito ouvir pelo grande público pouco antes, através da emissora local, a Rádio Algeciras. Paco encontrou num amigo de família um dos seus mentores, Niño Ricardo, conhecido como o mestre da guitarra espanhola. Um dia disse que Paco ia ser grande.
"Entre dos aguas", lançado em 1975, confirmou o sucesso de Paco, que foi convidado a actuar numa das salas mais prestigiadas do país, o Teatro Real de Madrid, que por hábito só acolhia espectáculos de música clássica. Os anos 70 criaram também aquela que se revelaria uma das mais fortes parcerias no mundo do flamenco: Paco aliou-se ao cantor Camarón de la Isla e juntos tocaram, durante anos, a forçar os limites do flamenco. Nesta década seriam editados sucessos como "El duende flamenco" (1972), "Fuente y cuadal" (1973) ou "Almoraima" (1976).
Com a morte de Camarón e com os problemas de direitos das canções (que eram partilhadas), Paco entrou numa fase difícil, agravada pela morte dos pais. Afastou-se dos palcos mas acabaria por regressar à actividade, sempre sem limites estilísticos, com registos tão distintos como "Siroco" (1987), "Zyryab" (1990) ou "Concierto de Aranjuez" (1991). O último disco que gravou foi "Cositas buenas", de 2004, que, aliás, apresentou em solo português. Nesse mesmo ano recebeu um dos maiores reconhecimentos do país, o Prémio Príncipe das Astúrias, e poucos meses depois um galardão de projecção internacional, o Grammy latino para melhor álbum de flamenco, com esse último trabalho.
Conta várias colaborações com outros artistas, também fez parte de grupos distintos. Nos anos 80 aliou a outro nome conhecido de fora do mundo flamenco, John McLaughlin, britânico que ganhou fama pelo jazz de fusão influenciado pelo rock. Numa parceria mais inverosímil, também tocou para Bryan Adams a melodia de "Have you really loved a woman". Também com McLaughlin e com Al Di Meola criou um dos mais famosos trios de guitarra de sempre.
Conseguiu encaixar a salsa, os ritmos árabes, o rock, os blues, o jazz e a bossa nova no flamenco, provocando alguns puristas mas surpreendendo pela positiva a maior parte do público. Também entrou na grande tela através das bandas-sonoras de filmes tão populares como o "Vicky, Cristina, Barcelona", de Woody Allen, ou da série "Kill Bill", de Tarantino.
Casou pela primeira vez nos anos 70, contra a vontade dos pais, e desse casamento teve dois filhos. Voltaria a casar e teria outros dois. Tinha uma vida terra a terra, fazia jardinagem, mergulho e pesca, actividades que aproveitava numa vida tranquila no México. "Com a guitarra já sofri muito, mas depois de passar bons momentos esse sofrimento pareceu-me valer a pena." Tinha uma relação particular com a sua arte: gostava de "sentir essa coisa masoquista da criação", mas nem por isso lhe agradava a fama e tudo o que ela implicava. Arranca a sua história no documentário: "Reivindico para mim o Francisco Sánchez que gosta da paz, da tranquilidade, da serenidade. Tudo isso é incompatível com viver com Paco de Lucía." Maria Espírito Santo, in Jornal i

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