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Melusina flutua na sua irrealidade. De inviolável ignorância e de ar secreto é feita a gaze do seu vestido. E solitária, ignorada, verdadeira apesar de sozinha, Melusina, sem esperança de regresso, cria a sua vida e o seu mundo através do seu sonho. Ofício de fada.
Sem ligações, sem razões, passam estranhas imagens que ela recompõe na unidade do seu sonho - Melusina, a ignorada, que se revela. A sua pura solidão essencial canta e manifesta-se, entrega-se sem causa, apenas pelo prazer de se dar. Eis Melusina revelada.
Apenas conhecida, ela não se contenta com admirar-se e eis que, ornado de flores e insectos o mundo se abre, demasiado belo, ignoto porque o vemos mal, mal amado sobretudo.
Tornada real, de irreal mas verdadeira que era, Melusina saboreia o íntimo gosto dessa transformação - saboreia-o lentamente à medida que o descobre. Ordenada por fim, obediente, a música do sonho continua. Mas que faz o sonho da fada, realidade nossa? O sonho espaça-se - Melusina revelada, em seguida amor puro, e terra, e água, e ar - os animais mamados, altivos, adoráveis, impudicos. Do sonho brota a existência, mas nela mora Melusina cada vez menos. Na alegria da música , do amor e das cores se esconde Melusina, lentamente degradada, conhecendo-se cada vez menos. O sonho prossegue lentamente, até se inclinar na adoração da terra. O mundo brota ainda. Génese irreal cujo verbo é Melusina. Porque sonhou ela a nossa realidade?
Indigno,impuro, brota do sonho enfim aquele que fala para dizer: Melusina - único meio de se aproximar dela. Tudo continua. Melusina flutua agora na nossa realidade.
Depois, tudo retrocede, tudo regressa ao morno desespero e à tímida revolta. Melusina está cansada. Aquele que fala regressa à terra; ao ar, à água. E a água ao Amor, a todo o universo, às flores, magnólias, juncos , acónitos. E o próprio Amor abismado regressa a Melusina revelada, que por sua vez vai adormecer em si própria.
O sonho esvai-se. O esforço é vão: nada se pode criar unicamente com a força do amor. Apenas uma caricatura. No mundo que desaparece lembro-me que, sobre um lago, cintilava a prata de um nevoeiro - o vestido de Melusina.
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É esse o belo segredo do mundo." Albert Camus, in " escritos de juventude", Edição " Livros do Brasil" - Lisboa
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