" Diálogo com a Morte " é uma lição de vida. A luz que irradia é mais intensa que a de muitos ensaios filosóficos." escreveu François Mittterand.
Marie de Hennezel, autora deste livro, nasceu em 1946 em França, e é Psicóloga. Tem exercido desde 1987, na primeira Unidade de Cuidados Paliativos para doentes terminais, em Paris. "Os que vão morrer ensinam-nos a viver- é esta a mensagem ou antes, a razão que a levou a escrever este livro.
Hoje, Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, apresentamos um excerto deste luminoso livro , em que Marie de Hennezel descreve o encontro com o Presidente francês, François Mitterrand.
"Neste momento, estou sentada na pequena sala cinzenta anexa ao quarto de François Mitterand, no palácio do Eliseu. O Presidente, com quem falei ontem ao telefone, propôs-me vir visitá-lo. Acaba de ter alta do Hospital Cochin. Sei, como toda a gente, pela imprensa, que foi operado a um cancro. " Em breve vou precisar dos seus cuidados paliativos" avisa-me.
A sala está repleta de livros , de quadros , de esculturas. São os presentes recebidos pelo Presidente, que ele conserva neste local de paredes sombrias, antes de os enviar para o Museu da Nièvre, destinado a acolhê-los. Está tudo em silêncio, nesta tarde de sábado. Está escuro e faz frio.
Abre-se uma porta. O contínuo anuncia-me que o Presidente vai receber-me. Introduz-me , então, no belo quarto de madeiras claras e proporções harmoniosas. Há nesta sala algo de caloroso e de calmo, que contrasta agradavelmente com a antecâmara. O Presidente encontra-se deitado na sua grande cama. A aura de dignidade que costuma rodeá-lo parece tê-lo seguido até este lugar íntimo. Sei que essa aura não está apenas à sua função, mas também à sua pessoa. Há neste homem aqui deitado um ara que imprime respeito e, simultaneamente, algo de muito humano que nos convida a sentirmo-nos próximos dele. Tem os traços bem vincados , mas parece muito sossegado. Aproximo-me e sento-me na beira da cama, tal como faço tantas vezes no hospital. Tive sempre uma relação simples e espontânea com este homem, que me recebe como amiga, e começa a contar-me, sem rodeios, o que lhe acontece.
- O processo está desencadeado...é uma doença de que se morre, eu sei... - A voz é calma, o olhar límpido, direito ao meu. - Não tenho medo da morte, mas gosto de viver ... a morte chega sempre cedo de mais.
Depois, falamos do tempo, do tempo, do tempo que lhe resta de vida. Ninguém lhe pode fazer um prognóstico nesse domínio. O desejo de viver vence muitas as previsões clínicas. Tenho bastantes provas disso.
- Não se deve morrer antes da morte - digo-lhe. Sabe, tão bem como eu, que podemos ser lúcidos em face da morte e, todavia, continuarmos a tecer projectos de vida. Trata-se , muito simplesmente, de permanecer vivos até ao fim...
O Presidente interroga-se sobre a possibilidade de os crentes enfrentarem mais serenamente a morte. Existe uma ligação entre a fé e a serenidade? As nossas conversas sobre a morte costumam abordar o seu lado místico. Aliás, como poderia ser de outro modo? Poderemos falar da morte, que permanece um imenso mistério, sem evocar os nossos laços com o invisível? com tudo o que não sabemos explicar, mas apenas apreender com os nossos sentidos? O Presidente, que se declara agnóstico, sublinha , por outro lado, que isso não o impede de ter um sentimento religioso, o sentimento de estar ligado a uma dimensão que o ultrapassa. Experiência quase sensorial e íntima, da qual ele diz que, do seu ponto de vista, advoga mais pela existência de Deus do que qualquer teoria religiosa.
- Podemos não ser crentes e estarmos serenos perante a morte, prepararmo-nos para ela, como para uma viagem ao desconhecido. Ao fim e ao cabo, o desconhecido não é um além?- pergunta-me.
(...) A crença num além da morte não vale grande coisa, se não estiver enraizada numa experiênca vivida, íntima e profunda de confiança. Conheci dois padres no seu leito de morte, ambos profundamente angustiados e atormentados, incapazes de rezar e de se entregarem.
" Não é a fé, mas o lastro de vida que temos atrás de nós , que permite abandonarmo-nos nos braços da morte", disse eu, nessa ocasião.
Falamos calmamente das coisas que têm a ver com a morte, e eu sinto um impulso de gratidão que me invade, devido a este momento de intimidade, partilhado com um homem que tão pouco goza dela. Tão pouco tempo para si próprio, tão pouca intimidade, embora eu saiba que ele sempre a soube preservar.
O Presidente evoca agora a sua visita à unidade de cuidados paliativos: " Foi um momento formidável!" A calma dos doentes que ali encontro está bem presente na sua memória. Diz-me que espera , de todo o coração, poder conservar, chegado o seu dia, esse domínio até ao fim." Marie de Hennezel, in " Diálogo Com a Morte" , Casa das Letras
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