Obra de Marcelo Grassmann |
À margem das vanguardas
Por Ferreira Gullar
“A morte de
Marcelo Grassmann, ocorrida no dia 21 de Junho significa uma enorme perda para
a arte brasileira, já que ele foi, além de gravador e desenhista de
extraordinária qualidade, uma personalidade original, criador de um mundo
imaginário único e fascinante.
Grassmann
começou como aprendiz de metalúrgico, para depois matricular-se na Escola de
Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, onde aprendeu a técnica da gravura em metal.
Logo em
seguida, isto é, no começo da década de 1950, a arte brasileira sofre uma
mudança radical com o surgimento da arte concreta, de linguagem geométrica e
construtiva. Esse fato determinou uma ruptura drástica com a tradição
modernista brasileira, surgida nos anos 20 e caracterizadamente figurativa e de
temática nacional, ainda viva, àquela época, na pintura de Lasar Segall, Di
Cavalcanti e Portinari.
A partir de
então, a nova geração de artistas plásticos abandonou a arte figurativa e
voltou-se para um tipo de expressão essencialmente geométrica, construtiva e objectiva.
Era,
portanto, um tipo de expressão no extremo oposto à gravura de Marcelo
Grassmann, àquela altura um jovem de 20 e poucos anos.
A nova
tendência tomou conta do ambiente artístico, mas, apesar disso, o jovem
gravador não se afastou um milímetro da opção artística que fizera: enquanto os
demais pintavam formas geométricas, ele desenhava e gravava cavaleiros
medievais, munidos de armadura, lança e capacete.
Eu que,
àquela época, era também um jovem e interessado nas artes plásticas, não
cansava de admirar a firmeza de Grassmann, que mergulhava num universo arcaico,
demoníaco, figurativo, tido então como um anacronismo estético e ideológico,
mas, apesar disso, fascinante.
Conheci
Marcelo Grassmann em 1952, no apartamento de Mário Pedrosa, o principal
defensor do movimento concretista, mas que tinha sensibilidade e amplitude
intelectual suficientes para reconhecer o valor de manifestações diversas
daquela, como a arte do jovem gravador paulista. Magrinho, alto, com o queixo
levemente torto, sorria irónico das ideias da vanguarda. Mário não discutia com
ele, mas simplesmente elogiava a qualidade e expressividade de suas gravuras.
Embora, por seu físico, distante da prática esportiva, teve, na época, como
namorada, uma moça musculosa que praticava boxe.
Os anos se
passaram, aliás, décadas. A arte concreta esgotou sua proposta, em seu lugar
nasceu a arte neoconcreta, audaciosa e inventiva, com os "Bichos" de
Lygia Clark, as esculturas de Weissmann e Amílcar de Castro. Mas, logo, no
lugar dela, surgiu a pop arte e, depois, a chamada arte contemporânea, que
dispensa linguagem e critérios estéticos.
Tudo isso
aconteceu sem abalar em nada a persistência de Grassmann na exploração de seu
mundo imaginário, habitado por seres estranhos e satânicos, que mais parecem
delírios que coisas reais.
Dizem que sua
arte tem raízes no gótico, talvez por evocar o mundo nocturno das gárgulas e das
harpias. Na verdade, sua linguagem de formas sumptuosas e estranhas está
impregnada de certa malignidade e requinte, como se observa naquela gravura em
que dois guerreiros medievais parecem arrastar para as profundezas da noite uma
figura angelical de adolescente, enquanto seus capacetes metálicos relampejam
como jóias malditas.
Semelhante
contraste parece constituir a matéria poética de sua arte perturbadora. Mas a
essência dela não se limita a essa temática visionária; reside, de fato, na
qualidade gráfica, que identifica linguagem e tema: é que aqueles seres
estranhos, sejam demónios ou bestas satânicas, nascem dessa linguagem, do
emaranhado de traços, das manchas negras, dos lampejos inusitados, que
constituem seu universo imaginário. E é essa expressividade estética e
visionária que torna sua arte surpreendentemente actual, enquanto muita obra
daquelas vanguardas já não nos diz nada.De certo
modo, fazer arte é soprar espírito na matéria. Se isso é verdade, Marcelo
Grassmann, em seus melhores momentos --ou quase sempre--, alcança esse nível de
transmutação. Ali, cada linha, cada zona de luz ou treva, vira expressão, que
assimilamos integralmente. É que a obra-prima não deixa resto.” Ferreira
Gullar em Artigo de opinião publicado na Folha de S. Paulo , em 7/07/2013
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