sábado, 13 de julho de 2013

A queda de um mundo

“ Um dia , Ângela dissera-me : “ Nas alturas de crise surgem as pessoas mais inesperadas; aqueles que pensávamos que tinham desaparecido para sempre vêm  ter connosco e falam-nos como se os tivéssemos deixado na véspera.” E eu, que queria  falar com alguém sobre o presente, a Europa, a crise, encontrara no sósia de Lenine o interlocutor ideal. Pertencíamos à mesma geração; tínhamos lido os mesmos livros; talvez tivéssemos acreditado nos mesmos ideais. Agora, era como se a História voltasse para trás. Nos países ocupados, os nazis tinham descoberto a solução para se verem livres dos judeus: metê-los em guetos: E para os enganar, faziam-nos eleger chefes que, muitas vezes, porque pensavam que assim protegiam o grupo, cumpriam as ordens do Reich: reduzir rações, confiscar os bens,  deixar morrer os velhos, os doentes, as crianças. Era nisto que a nova Europa se estava a tornar: os guetos eram os países sob confisco, e em cada um deles tinham arranjado governos dóceis que cumpriam as ordens que vinham do centro de decisão. Não chegáramos à perfeição desses guetos, ao encerramento dos países dentro de muros de onde ninguém podia sair  nem entrar; mas era uma questão de tempo, pensava eu, enquanto ia passando por criaturas deitadas debaixo de portas, enroladas em mantas, alguns deles com um rádio ligado, sinal que não se tratava já dos tradicionais pobres, os que vinham do nada e só tinham o nada para onde ir; estes vinham de meios em que havia o hábito de ouvir rádio, de ver televisão, só que não tinham outra hipótese senão adormecer , na rua, com uma estação de música clássica a dar-lhes o “ Hino à alegria” em cima , para que eles agradecessem à Mãe Europa por essa dádiva do céu; ou então a alternativa que tinham, se não tivessem umas moedas para se sentarem num café, era esperar que nalguma montra estivesse um televisor ligado e ficar em frente, a ver o que se passava no ecrã, mas sem o som que o vidro abafava. Assim, ao menos não tinham de ouvir as notícias , de estar a par da queda de um mundo, que era o que estava a acontecer à vista de todos. “ Nuno Júdice, in “ A Implosão “,Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2013

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