“ Um dia ,
Ângela dissera-me : “ Nas alturas de crise surgem as pessoas mais inesperadas;
aqueles que pensávamos que tinham desaparecido para sempre vêm ter connosco e falam-nos como se os
tivéssemos deixado na véspera.” E eu, que queria falar com alguém sobre o presente, a Europa, a
crise, encontrara no sósia de Lenine o interlocutor ideal. Pertencíamos à mesma
geração; tínhamos lido os mesmos livros; talvez tivéssemos acreditado nos
mesmos ideais. Agora, era como se a História voltasse para trás. Nos países
ocupados, os nazis tinham descoberto a solução para se verem livres dos judeus:
metê-los em guetos: E para os enganar, faziam-nos eleger chefes que, muitas
vezes, porque pensavam que assim protegiam o grupo, cumpriam as ordens do
Reich: reduzir rações, confiscar os bens,
deixar morrer os velhos, os doentes, as crianças. Era nisto que a nova
Europa se estava a tornar: os guetos eram os países sob confisco, e em cada um
deles tinham arranjado governos dóceis que cumpriam as ordens que vinham do
centro de decisão. Não chegáramos à perfeição desses guetos, ao encerramento
dos países dentro de muros de onde ninguém podia sair nem entrar; mas era uma questão de tempo,
pensava eu, enquanto ia passando por criaturas deitadas debaixo de portas,
enroladas em mantas, alguns deles com um rádio ligado, sinal que não se tratava
já dos tradicionais pobres, os que vinham do nada e só tinham o nada para onde
ir; estes vinham de meios em que havia o hábito de ouvir rádio, de ver
televisão, só que não tinham outra hipótese senão adormecer , na rua, com uma
estação de música clássica a dar-lhes o “ Hino à alegria” em cima , para que
eles agradecessem à Mãe Europa por essa dádiva do céu; ou então a alternativa
que tinham, se não tivessem umas moedas para se sentarem num café, era esperar
que nalguma montra estivesse um televisor ligado e ficar em frente, a ver o que
se passava no ecrã, mas sem o som que o vidro abafava. Assim, ao menos não
tinham de ouvir as notícias , de estar a par da queda de um mundo, que era o
que estava a acontecer à vista de todos. “ Nuno Júdice, in “ A Implosão “,Publicações Dom
Quixote, Fevereiro de 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário