Picasso, fase azul |
Receita para fazer azul
Se quiseres
fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão Ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
Nuno Júdice,in “ Poesia Reunida, 1967 – 2000”, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão Ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
Nuno Júdice,in “ Poesia Reunida, 1967 – 2000”, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000
Nuno Júdice vence Prémio Rainha Sofia
de Poesia Ibero-Americana
Dez anos depois de Sophia de Mello
Breyner ter recebido o prémio em 2003.
"O poeta Nuno
Júdice foi nesta quinta-feira galardoado com o XXII Prémio Reina Sofia de
Poesia Ibero-Americana, atribuído pelo Património Nacional espanhol e pela
Universidade de Salamanca, no valor de 42.100 euros.
O prémio
reconhece o conjunto da obra poética de um autor vivo que, pelo seu valor
literário, constitua uma contribuição relevante para o património cultural
partilhado pela comunidade ibero-americana.
O júri
considerou o poeta, ensaísta e ficcionista português como autor de uma poesia
"muito elaborada, de um classicismo depurado", mas, ao mesmo tempo,
com um grande compromisso com a realidade, segundo a agência EFE.
Nesta edição,
o júri foi constituído por 18 personalidades ibero-americanas da área da filologia,
da literatura e do ensaio literário, entre os quais José Rodriguez-Spiteri
Palazuelo, presidente do Património Nacional, Daniel Hernández Ruipérez, reitor
da Universidade de Salamanca, José Manuel Blecua Perdices, da Real Academia
Espanhola, e Víctor García da la Concha, director do Instituto Cervantes.
À agência
Lusa, Nuno Júdice afirmou que o prémio ajudará à projecção da sua obra e
sublinhou que evidencia “a importância da poesia portuguesa” no contexto
ibero-americano. “Vai dar projecção à minha obra, mas mais importante que isso,
mostra que a poesia portuguesa continua a ter um papel importante neste
contexto [ibero-americano]”, disse à Lusa o autor, que confessou estar
“contentíssimo” com o galardão.
Nuno Júdice,
que está publicado em Espanha e em vários países da América Latina, reconheceu
que é “razoavelmente conhecido, mas não foi isso que terá contribuído para o
prémio”, que foi “uma surpresa quando soube”, na manhã desta quinta-feira. O
poeta está a trabalhar num novo livro de poesia, ainda sem título, que “deverá
ser editado no final deste ano ou no princípio do próximo”.
Nuno Júdice,
de 64 anos, é autor de 30 livros de poesia, entre os quais A Matéria do Poema e
Guia dos Conceitos Básicos, editado em 2010. O autor, que começou a publicar
poesia em 1972 – A Noção do Poema e O Pavão Sonoro –, tem escrito também obras
de ensaio, teatro e ficção. A Dom Quixote publicou, no passado mês de
Fevereiro, a novela A Implosão. Além do universo hispânico, Nuno Júdice tem
obras traduzidas em Itália, Inglaterra e França.
Nasceu na
Mexilhoeira Grande, Algarve, formou-se em Filologia Românica pela Universidade
Clássica de Lisboa e é professor associado da Universidade Nova de Lisboa, onde
se doutorou em 1989. Entre 1997 e 2004 desempenhou as funções de conselheiro
cultural e director do Instituto Camões em Paris. Tem publicado estudos sobre
teoria da literatura e literatura portuguesa.Tem livros traduzidos em várias
línguas, destacando-se Espanha, onde tem uma antologia na colecção Visor de
poesia, e França, onde está publicado na colecção Poésie/Gallimard. Dirigiu até
1999 a revista Tabacaria, da Casa Fernando Pessoa. Em 2009, assumiu a direcção
da revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste Gulbenkian.
O escritor já
foi galardoado com vários prémios literários, nomeadamente o Prémio Pen Clube,
em 1985, o Prémio Dom Dinis, em 1990, o Prémio da Associação Portuguesa de
Escritores, em 1995, e o Prémio Fernando Namora, em 2004. “Por Lusa e Público,16/05/2013
- 15:43
Sonhei contigo
Sonhei
contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.
possa ter habitantes tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.
Nuno Júdice,in
“ Poesia Reunida, 1967 – 2000”, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000
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