Os Que Queimam os Livros
"Os que
queimam os livros, que proscrevem e matam os poetas, sabem rigorosamente o que
fazem. O poder indeterminado dos livros
é incalculável. É indeterminado precisamente
porque o mesmo livro, a mesma página pode ter efeitos inteiramente
díspares sobre os seus leitores. Pode exaltar ou aviltar; seduzir ou repelir; intimar à virtude ou à barbárie;
expandir a sensibilidade ou banalizá-la. Em termos extremamente
desconcertantes, pode fazer uma e outra coisa, quase no mesmo momento, num
impulso de resposta tão complexo, tão rápido na sua alternância e tão híbrido
que nenhuma hermenêutica, nenhuma
psicologia poderá predizer ou calcular a sua força. Em diferentes momentos da
vida do leitor, um livro despertará reflexos inteiramente diferentes. Não há na
experiência humana fenomenologia mais
complexa do que a dos encontros entre texto e percepção, ou, como Dante notou,
entre as formas da linguagem que
excedem o nosso entendimento e as ordens
de compreensão frente às quais a nossa linguagem se revela insuficiente: la debilitate de lo’nielleto e la cortezza
del nostro parlare.
(…) O
encontro com o livro, como com o homem ou a mulher, que vai mudar a nossa vida,
muitas vezes num instante de reconhecimento que se ignora , puro acaso talvez.
O texto que nos converterá a uma fé, nos ligará a uma ideologia, dará à nossa
existência um fim e um critério, podia estar à nossa espera nas prateleiras da
estante de ocasião, dos livros desbotados
ou dos saldos. Pode estar ali, poeirento e esquecido, numa prateleira de
estante exactamente ao lado do volume
de que andamos à procura. A sonoridade estranha das palavras impressas na capa
envelhecida pode deter o nosso olhar: Zaratustra,
Westoslicher Divan, Moby Dick, Horcynus Orca. Enquanto um texto sobrevive, algures à face da terra, ainda que num
silêncio que nada vem quebrar, continua susceptível de ressureição. Walter
Benjamin ensinava–o, Borges elaborou a sua mitologia: um livro autêntico nunca
é um livro impaciente. Pode esperar séculos até despertar um eco vivificador.
Pode estar à venda com cinquenta por cento de desconto numa estação de comboio, como o
primeiro Celan que por acaso descobri e abri. A partir desse momento fortuito,
a minha vida transformou-se, e eu tentei aprender “ uma língua a Norte do
futuro”.
Trata-se de
uma transformação dialéctica. As suas parábolas são as da Anunciação e da Epifania. Conhecemos tão
mal a génese da criação literária! Não
temos por assim dizer qualquer acesso à neuroquímica possível do acto de
imaginação e dos seus procedimentos. Até mesmo o rascunho informe de um poema é
já uma etapa muito tardia na viagem que conduz à expressão e ao gesto
performativo. O crepúsculo , o “ antes da madrugada” e as pressões no sentido
da expressão que se exercem no subsconsciente são para nós quase
imperceptíveis. Mais concretamente: como é possível que alguns traços sobre uma tabuinha de argila, riscos de pena
ou de lápis que muitas vezes mal chegam a ser legíveis num frágil pedaço de
papel, constituam uma persona – uma Beatriz
, um Falstaff, uma Anna Karenina- cuja substância, para um sem-número de
leitores ou espectadores, excede a própria vida na sua realidade, na sua presença fenomenal, na sua longevidade social e encarnada?
( Este enigma da persona fictícia, mais viva, mais complexa do que a existência
do seu criador e do seu “receptor” – que homem ou que mulher tem a beleza de
Helena, a complexidade de Hamlet, ou é tão inesquecível como Emma Bovary? –tal é
a questão decisiva, mas também a mais difícil, da poética e da psicologia.)
(…) O
conceito de leitura, encarado como um
processo que na sua raiz releva da colaboração , é convincente. O leitor
sério trabalha com o autor.
Compreender um texto , “ ilustrá-lo” no
quadro da nossa imaginação, da nossa memória e da nossa representação
combinatória, é, na medida dos nossos meios , recriá-lo. Os maiores leitores
de Sófocles e de Shakespeare são
os actores e os encenadores que dão às palavras a sua carne viva. Aprender um
poema de cor é encontrá-lo a meio-caminho na viagem sempre maravilhosa da sua
chegada ao mundo. Numa “ leitura bem feita” (Péguy), o leitor faz dele
qualquer coisa de paradoxal: um eco que reflecte o texto, mas que lhe
responde também com as suas próprias percepções, as suas
necessidades e os seus desafios. As
nossas relações de intimidade com um livro são, portanto, efectivamente
dialécticas e recíprocas : lemos o livro, mas, mais profundamente talvez, é o livro que nos lê.” George Steiner,
in “ Os Logocratas”, Relógio D’Água Editores
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