Lisboa vista do rio Tejo |
"Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não me admiro sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras , há sereias. O convés, em praça larga com uma rosa-dos-ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para os oceanos. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão; um pouco atrás , está um rei-menino montado num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de tritões a cavalo de golfinhos.
(...)" Se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa ", escreveu Fernando Assis Pacheco num poema tonto de luz ( a tão citada luz sempre imprevista). De acordo, mas uma cidade de caprichos como esta nunca o sol a pode iluminar por igual. Tem de se lhe afeiçoar aos contornos e aos instintos desordenados, à sua placidez aqui, ao burburinho dos bairros velhos acolá, e é com esses desvelos que ele lhe dá cor singular.
Terreiro do Paço , estátua de D. José e Arco da Rua Augusta |
Cidade Branca, que cegueira a deste Tanner lumière. É cor , o branco do filme dele ou é metáfora? Interroga as impetuosidades duma luz que no mesmo lugar, no mesmo instante e na mesma cor nunca se repete? Pergunto.
Largo de Camões de Abel Manta, (1888-1982) |
(...) " « Noutros tempos , longos tempos , havia uma sereia em Lisboa, uma sereia...» Conheço uns versos de Robert Desnos que começam desta maneira mas é melhor ficar por aqui porque o Tejo não é de fábula nem de poema e corre sem nostalgias. E Lisboa a mesma coisa, disso podemos estar nós bem seguros. Só que, com o saber dos séculos e os sinais de muito mundo que a perfazem, sugere várias leituras, e daí que a cada visitante sua Lisboa, como tantas vezes se ouve dizer.
Grande panorama de Lisboa, a cidade das sete colinas e das mil Igrejas, Sec.XVII |
Quando por fim fechamos a página onde líamos a cidade, descobrimos que a vidraça do café está toldada por uma dança de gaivotas em turbilhão e que não há Tejo. Que desapareceu por detrás de uma desordem de asas e já não é prenúncio de oceano.
Então, ternamente , confiadamente, reconhecemo-nos ainda mais ancorados à cidade que nos viu partir." José Cardoso Pires, in " Lisboa, Livro de Bordo, vozes, olhares memorações", Publicações Dom Quixote,1997
Sobre o Livro, nas palavras
do autor: “Este livro foi
um ajuste de contas comigo mesmo para com uma cidade que eu me fartei de ver, e
vejo sempre interpretada de uma maneira um bocado convencional e que eu vejo de
uma maneira muito diferente.(...) É uma Lisboa que tenho na memória.(…)Neste livro quis fazer outra coisa: uma espécie de levantamento que desse, com toda a
sinceridade, o modo como sinto Lisboa. E é aí que o livro me parece muito
diferente da Lisboa convencional do Tejo que é bonito, etc. Há ainda muitas
coisas que faltam e que espero trabalhar numa próxima edição: a sintaxe
lisboeta. Está abordada, mas não aprofundada. E os cheiros... (…)Quis uma
coisa leve, não exaustiva. Chamar a atenção para o lado artístico de Lisboa e
para o humor de Lisboa. Um tipo só gosta de uma cidade - e é isso que eu
pretendia que se sentisse neste meu livro- quando é cúmplice dela. Interrogar a
cidade é fácil, isso qualquer turista faz. Mas um tipo só está a viver numa
cidade quando se sente interrogado por ela: "O que é que tu tens a ver
comigo?", "Porque é que tu estás aqui?", "Como é que tu te
adaptas?", "Porque é que tu não te entendes?" Paris, por
exemplo, não me interroga, despreza-me. Enquanto que nas cidades de que gosto
(Londres, Rio de Janeiro, Barcelona, Praga), sinto-me interrogado. Em toda a
parte há bocados de mim.”
Sobre o autor:
José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de
1925 em São João do Peso, Vila de Rei, Castelo Branco, mas veio para Lisboa com poucos meses de idade. Lisboa era a cidade que conhecia profundamente e pela qual tinha um fascínio muito grande. O seu primeiro livro foi publicado em 1949 e o último em 1997. Considerado
um dos maiores escritores portugueses do século XX, deixou-nos uma extensa ,
extraordinária e premiada obra que se reparte por diversos géneros literários.
Viveu intensamente e soube traduzir essa vivência na escrita, mesmo as
experiências trágicas como aquela em que sofreu um acidente
vascular-cerebral ( 1995) e entrou em coma. Dessa passagem escreveu
"De Profundis, Valsa Lenta" (1997) que é apresentado pelo autor como uma “viagem à desmemória”. É a única
narrativa da sua obra que pode ser considerada autobiográfica.
Em 1997,
ganha o Prémio Pessoa, Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus e Prémio
da Crítica da Associação Internacional de Críticos Literários (AICA).
Em Julho de
1998 é internado após novo acidente vascular cerebral. Entra em coma e
não mais saiu, vindo a falecer em 26 de Outubro de 1998. A Associação
Portuguesa de Escritores (APE) atribui-lhe o Prémio Vida Literária, que foi
entregue à mulher do escritor a 23 de Setembro.
Eduardo
Lourenço define-o como :«Homem, nem de certezas nem de incertezas, nem olímpico
nem angustiado, o autor de "O Delfim" investiu-se, como uma espécie
de predestinação, no papel de detective por conta própria, apostado na descoberta
de enigmas ou crimes, secularmente sepultados, sob o espesso silêncio
português, raiz e matriz do tempo sonâmbulo (a frase é dele) que lhe coube
viver. Viver e reviver em contos e romances inseparavelmente realistas e
alegóricos, onde em quem os ler respirará um pouco aquele ar refeito de um
passado português que foi o da sua geração e, eminentemente, o seu.» (Público,
27/10/98)
E Urbano
Tavares Rodrigues acrescenta:«José Cardoso Pires foi sem dúvida uma figura
cimeira entre os melhores escritores portugueses do seu tempo. A sua linguagem
é muito depurada, de um grande rigor, por vezes com conotações bem pessoais e
intensamente sugestivas.» (Público, 28/10/98)
OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES
CONTOS 1949-Os Caminheiros e Outros Contos,1952-Histórias de Amor,1960-Cartilha do Marialva,1963-Jogos de Azar
1972-Dinossauro Excelentíssimo (fábula),1979-O Burro-em-Pé,1988-A República dos Corvos
ROMANCES
1958-O Anjo Ancorado,1963-O Hóspede de Job,1968-O Delfim,1982-Balada da Praia dos Cães,1987-Alexandra Alpha
TEATRO
1960-O Render dos Heróis,1980-Corpo Delito na Sala de Espelhos
CRÓNICAS, ENSAIOS E OUTROS TEXTOS
1977-E Agora, José?,1994-A Cavalo no Diabo1997-De Profundis-Valsa Lenta1997-Lisboa, Livro de Bordo
PRÉMIOS RECEBIDOS
1963-Prémio Camilo Castelo Branco: O Hóspede de Job-1982-Grande Prémio de Romance e Novela da APE: A Balada da Praia dos Cães-1988-Prémio Especial da Associação de Críticos do Brasil:Alexandra Alpha
1991-Prémio Internacional União Latina-1997-Prémio Pessoa-1997-Prémio D.Dinis: De Profundis, Valsa Lenta
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