No seu
último ensaio, "A Poesia do Pensamento", George Steiner
"apresenta-nos uma profunda análise da relação entre a filosofia ocidental e a
sua linguagem.De forma
precisa e pormenorizada, Steiner analisa mais de dois milénios de cultura
ocidental, entrelaçando filosofia e literatura. O resultado evidencia que em
toda a filosofia existe literatura oculta.
Steiner acredita que «o génio poético do pensamento abstracto se
ilumina, se torna audível. O próprio raciocínio analítico tem o seu ritmo
percussivo. Torna-se ode. Haverá melhor expressão dos andamentos finais da
Fenomenologiade Hegel do que o non, rien de rien de Edith Piaf, uma dupla
negação que Hegel teria apreciado? Este ensaio é uma tentativa de escutar
melhor», um esforço do autor para integrar tudo o que até hoje escreveu sobre
cultura."
Eis um pequeno excerto dessa excepcional obra:
"Este ensaio mais não fez do que arranhar a superfície. Os embates, as cumplicidades, as interpretações e amálgamas entre a filosofia e a literatura, entre o poema e o
tratado metafísico são uma constante. Para além da escrita, estendem-se à música. Às belas-artes ( como o
testemunha, datado de 1999, o perturbante busto de Sócrates por Egbert Verbeeck).
Os temas platónicos proliferam. Não referi o “ De Amore” ( 1469) de Ficino, o “
Alcibiades” (1675) de Thomas Otway, o
influente “ Gespprache des Sokrates” (1756) de Wieland nem o “ Socrate” (1759)
de Voltaire, marcado pela sua abominação de Aristófanes, que o autor
considerava em parte culpado do destino de Sócrates.(…) A tradução que Shelley
fez do “Banquete” foi igualmente encenada . O fascínio persiste.
Há os que
negam qualquer diferença essencial. Para Montaigne, toda a filosofia “ n’est qu’une poésie sophistiquée”. Não
há oposição. “ Cada uma delas faz a
dificuldade da outra. Juntas são a própria dificuldade: de fazer sentido”(
Jean-Luc Nancy). Outros consideraram as
intimidades entre o filosófico e o poético incestuosa e reciprocamente funestas.
Husserl , por exemplo.
O ponto que
tentei elucidar é simples: a literatura e a filosofia, como as conhecemos, são
produtos da linguagem. É esse, inalteravelmente, o seu solo comum, ontológico e
substantivo. O pensamento na poesia , a poética do pensamento, são obras da
gramática, da linguagem em movimento. Os seus meios, as imposições que os
constrangem , são os do estilo. O indizível, no sentido imediato da palavra,
circunscreve-os a ambos. A poesia visa reinventar a linguagem, fazê-la de novo.
A filosofia esforça-se por tornar a linguagem rigorosamente transparente, purgá-la
de ambiguidade e de confusão. Por vezes, esforça-se por superar as limitações
lexicais e sintácticas e o conjunto das atrofias herdadas, recorrendo à lógica
formal e aos algoritmos metamatemáticos, como no caso de Frege. Mas a matriz
total continua a ser o discurso humano. Este aspecto tem uma ilustração soberba
no “ Zibaldone” de Leopardi. A seu ver, não havia poesia válida sem
filosofia; nem, sem poesia, filosofia
que valesse a pena aprender. O acesso generativo a uma e a outra é uma
filologia apaixonante. Leopardi examina por meio de uma erudição muitas vezes
microscópica as unidades lexicais, as ordens gramaticais e as aplicações
pragmáticas. Deus – ou por outras palavras, o milagre do sentido comunicável –
reside no pormenor linguístico. Como vemos no cabalista que deriva da simples
letra os próprios impulso e magia da
criação. As letras estão escritas no fogo primordial. Da incandescência deste,
vêm toda a filosofia, toda a poesia – e os paradoxos do seu uníssono autónomo.
Sugeri que
esta concepção da linguagem como núcleo que define a existência – como doação ,
em última instância teológica, da humanidade ao homem – se encontra hoje em
refluxo. Que nem no seu estatuto ontológico, nem no seu alcance existencial , a
palavra mantém a sua centralidade tradicional. Sob muitos aspectos, este
pequeno livro, bem como o interesse e atenção que espera dos seus leitores –
estatisticamente, uma ténue minoria –
são já arcaicos. Reportam-se, por
exemplo, às artes monásticas da atenção da Alta Idade Média ou à biblioteca
vitoriana. Convivem mal com a redução dos textos literários nos ecrãs ou com a
anti-retórica do blogue. A simples sobrevivência de um ensaio deste género
depende da sua acessibilidade on-line.O
futuro do armazenamento dispendioso – e, ao mesmo tempo, já quase
incontrolável, de tão pletórico – nas bibliotecas públicas e universitárias é
cada vez mais questionável.
As novas
tecnologias atingem o coração da linguagem. Nos Estados Unidos , a faixa etária dos oito aos dezoito
anos passa cerca de onze horas por dia acoplada aos suportes da comunicação
electrónica. A conversa limita-se cara a cara. A realidade torna-se a realidade
virtual dos ciberespaços. Os computadores portáteis, os iPods , os telemóveis, o email, a Web planetária e a Internet
modificam a consciência. O funcionamento mental é alimentado por cabo. A
memória compõe-se de dados recuperáveis . O silêncio e a intimidade privada, as
coordenadas clássicas dos encontros com o poema e com o enunciado filosófico tornam-se
ideológica e socialmente luxos suspeitos. Um crítico, Crowther, escreve: “ A cacofonia dentro e fora das nossas
cabeças assassinou o silêncio e a reflexão.” Estado de coisas que poderá
vir a revelar-se terminal, uma vez que a qualidade do silêncio se encontra
organicamente ligada à da palavra. Nenhum dos dois pode aceder à sua força
plena na falta do outro.(…)
Há no
horizonte a perspectiva de descobertas bioquímicas e neurológicas que demonstrarão
que os processos inventivos e cognitivos da psique humana são, em última
instância , de origem material. Que até mesmo a conjectura metafísica ou o
achado poético maior são formas complexas de química molecular.
Não é uma
visão da qual uma consciência obsolescente , e muitas vezes tecnófoba, como a minha possa extrair
conforto. Vem depois das “humanidades” que tão desoladoramente nos faltaram na
longa noite do século XX. Mas talvez seja uma aventura formidável. E
algures um cantor rebelde, um filósofo
que a solidão embriague, dirá “ Não”. Uma sílaba carregada da promessa da
criação. “
George
Steiner, in “ A Poesia do Pensamento, Do
Helenismo a Celan”, Relógio D’Água Editores, Setembro 2012
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