quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A flor da solidão


Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos.

Ruy Belo, in " Todos os Poemas II ", Ed. Assírio & Alvim, 2004

1 comentário:

  1. ... Não se trata de advogarmos a solidão em si mesma. No entanto, por vezes a solidão é a mais bela das presenças! Ruy Belo sabia-o:... "sozinho como um homem morre cristo"...

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