"O meu livro "Mensagem" chamava-se primitivamente "Portugal". Alterei o título porque o meu velho amigo Da Cunha Dias me fez notar — a observação era por igual patriótica e publicitária — que o nome da nossa Pátria estava hoje prostituído a sapatos, como a hotéis a sua maior Dinastia. «Quer V. pôr o título do seu livro em analogia com "portugalize os seus pés?"» Concordei e cedi, como concordo e cedo sempre que me falam com argumentos. Tenho prazer em ser vencido quando quem me vence é a Razão, seja quem for o seu procurador.
Pus-lhe instintivamente esse título abstracto. Substituí-o por um título concreto por uma razão...
E o curioso é que o título "Mensagem" está mais certo — àparte a razão que me levou a pô-lo — de que o título primitivo.
Deus fala todas as línguas, e sabe bem que o melhor modo de fazer-se entender de um selvagem é um manipanso e não a metafísica de Platão, base intelectual do cristianismo. Reservo-me porém o direito de pensar que tal forma da religião é uma forma inferior. É sem dúvida necessário que haja quem descasque batatas, mas, reconhecendo a necessidade e a utilidade do acto descascador, dispenso-me de o considerar comparável ao de escrever a "Ilíada". Não me dispenso porém de me abster de dizer ao descascador que abandone a sua tarefa em proveito da de escrever hexâmetros gregos.
Fernando Pessoa , in "Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional" (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979
Tormenta
Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o pode ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar 'scuro 'struge.
Fernando Pessoa, in " Mensagem, (Terceira parte - III Os Tempos) ", Obras completas de Fernando Pessoa, Colecção Poesia, Edições Ática
Tormenta
Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o pode ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar 'scuro 'struge.
Fernando Pessoa, in " Mensagem, (Terceira parte - III Os Tempos) ", Obras completas de Fernando Pessoa, Colecção Poesia, Edições Ática
Pessoa (Fernando) conta-nos como surgiu a ideia de colocar o título de "Mensagem" ao seu livro... Impressionantes as palavras de Pessoa, sobretudo o tom simples e coloquial como descreve os factos e a forma como consentiu que a Razão o vencesse, mesmo alvitrada, transmitida por um amigo, Cunha Dias, que - tudo indica... - não gostava da ditadura instaurada e do domínio do Estado Novo sobre Portugal. Um memorando pessoano muito interessante e desconhecido para muitos apreciadores de Fernando Pessoa e da sua genial obra literária.
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