sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma visão desmedida


“Você sonha demais, e, à força de querer outras coisas que não há, vai negando as coisas que existem, o que é uma forma de alienação pura e simples. Porque o que havia entre ambos, separando-os, eram as falsas dimensões sonhadas, disse Afonso, e por isso ele proibia-a de sonhar. Mas ela abria um guarda-sol na varanda e sonhava debaixo do guarda-sol, ou abria um guarda-chuva na rua, e sonhava debaixo do guarda-chuva, onde ele não pudesse ver a sua cabeça e os sonhos que corriam dentro dela.
(...) Precisava de se sentir existindo , de ser atingida, mesmo que tivesse de sofrer para se provar que estava viva. (...) Existir, existir, um instante, na coincidência do seu ser com o seu corpo, fechar os olhos, cambaleando, de repente devorada pela sua própria força. Regressar a casa e ser submersa em fadiga, dias moles, objectos vagos, milhares de gestos inteiramente inúteis. A força dele sobre ela era assim uma força de identificação que a levava a perder os seus próprios contornos, somando-a, apenas, à vida que era a dele, e por isso ela vagueava, diluída, na casa que era a dele, e não a dela ?
(...)É que ela esperava que o amor fosse uma ponte para outra coisa, disse Afonso, outra coisa que não existia, não existiria nunca, ela forçava obscuramente um caminho através do amor, através dele, uma saída, uma porta, uma passagem, como se o universo fosse de repente abrir-se, alargar-se em direcções diversas - mas não havia no universo dimensões sonhadas, existia apenas o quotidiano, exacto e transparente.
(...)mas ela queria a vivência, a qualquer preço, procurava uma visão desmedida das coisas, e por isso sofria, porque toda a consciência era dolorosa. Ir sempre mais além, como um animal caminhando obstinadamente pela areia, um pequeno animal cego avançando, recusando cada ponto de chegada para nunca parar de caminhar, era isso, Lídia, ele sabia, a ansiedade que a levava a recusar a sua vida, a vida possível, na pressa de procurar outra, mais alta mas inexistente, Lídia, ele sabia.(…)porque não temos para viver senão este universo, e era preciso que ela aceitasse isso, finalmente a tensão entre eles era assim entre as coisas imóveis e as coisas movediças, entre a ordem e uma desordem contra a qual, obscuramente, ele se defendia? O tempo à beira-mar, o curto verão, o amor breve, e desde o início uma tensão crescente, de repente tão perto que ele caía no seu campo magnético, na sua zona de tensão, e se ela desse mais um passo,um único, ele ficaria subitamente vulnerável e não saberia mais onde apoiar os pés em terra firme. Porque então tudo teria de ser posto em causa – e como ter coragem de recusar os alíbis, de caminhar sem apoio, num mundo que perdera as coordenadas, então ele colocara atrás de si uma barricada de objectos e continuava a escrever, no seu pequeno espaço de segurança provisória, mas ela acabava sempre por invadir mesmo esse espaço diminuto, como se para ela nunca houvesse fronteiras (…) O último degrau, descer interiormente o último degrau, despojar-se de tudo e também de si mesmo, deixar todas as coisas para trás e não ter mais nada para levar consigo – era esse, então , o ponto de rotura para onde ela o arrastava, a prova de fogo depois da qual e só depois da qual, seria possível recomeçar de outro modo?"
Teolinda Gersão, in "O Silêncio", Sextante Editora, Lisboa, Portugal

“O silêncio” é uma história de amor. Um diálogo entre Afonso, um cirurgião famoso de meia-idade, e a jovem Lídia, que se torna sua amante e o liberta de um casamento convencional e frustrado.
Lídia fala de si , de sua mãe, Lavínia, do seu modo inquieto de olhar o mundo. Mas o que Lídia conta é exactamente o que Afonso não quer ouvir. “

2 comentários:

  1. Teolinda Gersão é uma grande escritora.Tem uma escrita peculiar em que disseca os sentimentos sem pejo e com muita acuidade.

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  2. O retrato de Lídia, do âmago da sua interioridade ansiosa, do desejo latejante à beira da explosão, do pulsar que a revolve, que a despe, que a expõe até aos limites do possível, são descritos com genialidade e genuididade pela professora e escritora Teolinda Gersão, com uma tremenda transparência, que chega a confundir-nos, que chega a parecer que comungamos com ela (a protagoista de "O Silêncio") a sua presença à beira do abismo, à beira da consumação do seu corpo, que não pode esperar, e que a envolvemos, que a abraçamos, nesse sentir esmagador, como é patente na mulher, tanto que ela o procura ocultar, cobrir, colhendo as hesitações do amante já colhido, inconfundivelmente "seu", porém prosaicamente distraído porque a timidez é tanto maior quanto o avassalamento da natureza de que somos feitos. - V. P.

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