terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Uma praga resistente

"Vieram coxos, cegos e paralíticos , com muita lamúria suplicar o remédio de seus males: porém nada de milagres e saíram como entraram."
                                                Colecção Moreira -" Sentenças da Inquisição"

O AMIGO “CUNHA” (I)
                        por Varela Pires
" Quem não ouviu falar no Cunha? Digam lá!... Pelo menos uma ou duas vezes já ouviram falar dele, caramba!... Não afirmem que não!?... Eu sei que o conhecem. De certeza. Ora, vamos lá a puxar por essas cabecinhas…
Ó, esse Cunha, raios o partam!... Ainda estão indecisos? Ainda o não reconhecem?!... Lembrem-se, façam um esforço, pois!… Desculpem-me a brejeirice, o enfado, a falta de polimento de maneiras, quando falo dele. É o reflexo de lhe conhecer os métodos, as manhas, os “golpes” que usa a qualquer momento e em qualquer parte.
Ah!... Vejam, só! Já se lembram dele, pois então!... Sim! Sim! Esse mesmo, em que estão a pensar. O amigo Cunha!... E se ele é importante, bolas!...
Quem nesta negregada vida nunca lhe apertou a mão ou nos acasos de “aperto” não lhe segredou ao ouvido o que pretendia, desgraçado é ou desgraçado foi. Ou, então, nunca foi amado pelos deuses e é um triste, não haja dúvida!...
Ah!... Esse incontornável amigo Cunha!… Ora aqui… Ora ali… Ou até mais além… Sereno, mas inúmeras vezes apressado. Cumprimenta, em certas ocasiões, empertigado, olhando-nos de soslaio. Faz que não nos vê, em muitas outras situações em que cruzamos com ele. O malandrete!... E rodopia, esgueira-se pelas esquinas, some-se nos corredores, fechando ou abrindo portas, conforme a necessidade dos que o solicitam. Introduz-se insuspeito e com habilidade nos gabinetes. Sempre pronto “ao cavaco” com quem melhor lhe possa servir os interesses dos seus protegidos.
Serviçal (quantas vezes, servil também!...), útil (se o é!!!...), influente, quase imprescindível, para servir um e outro. Infiel a muitos, já se vê!... Nunca amigo certo de ninguém.
Vai sugerindo, alvitrando, tocando no braço, trocando olhares cúmplices, melífluo, todo ele sorrisos e gentileza, mesmo quando está a perder “jogando a feijões”… Cochichando com um secretário, gargalhando com um adjunto, esportulando o contínuo, mesureiro com a minissaia da telefonista, doce com a jovem assessora do senhor presidente, prometendo o que não tem, oferecendo o que já teve, “emprenhando” os ouvidos dos directores com lisonja e elogios fúteis, tão agradáveis de escutar, música de deuses.
Aí o temos, viscoso, escorregadio, a escapulir-se por entre os dedos… quando o queremos tocar ou agarrar. Surge apressado na hora “H”, esquecido das outras, tão importantes como esta.
O Cunha! Brioso, cunhíssimo!...
Há quanto tempo o não viam?... Uhm!...
Tão invisível, como envolvente. Subtil, como persistente. Necessário, como promíscuo. Anjo, como mafarrico cruel. Desprezível, como desejado. Tão procurado, como retido. Tão real, como imaginário. Presente, milhentas vezes. Ausente, outras tantas, ou mais! O seu paradeiro? Ah! Queriam?!... Queriam saber-lhe a morada?! Ah!... Não se atrevam!... Não sejamos ingénuos! O Cunha nunca confessa onde dorme (se é que dorme!...) ou onde reside, as lojas onde compra os fatos de marca. Paira por aí. Somente.
Que amigão, o Cunha! Vejam só. Ele é afilhado do gerente, como sobrinho do director. É primo chegado de qualquer deputado, como compadre do procurador. É colega do comissário, como parente do ministro. É enviado secreto, como “homem de mão”, de qualquer Partido Político. O que calha! O que convém…
Amigo do peito e do papel “selado” ou coisa que o valha, em variadíssimas ocasiões. Indispensável, numas. Uma praga, noutras! Todos o detestam, mas todos eles nunca o podem dispensar definitivamente em qualquer momento da vida. Só os tolos e os suicidas lhe dizem “não”. Os que já nada têm a perder, infelizmente.
Ah!... O Cunha! Santo para um. Abominável, para os que restaram. Grande “cunha”, bolas!!!... Inacessível em quantas horas de aflição, esse malandro! Amigo providencial, amigo do peito para quem o tem à mão de semear. Pois, então!...
Solene, como um político importante. Insinuante, como um banqueiro. Matemático, quando os números são perfeitamente dispensáveis. Engenhoso, quando a engenharia política é a porta de entrada para tudo, menos para a pobreza e para a ruína.
Sacerdote, quando o altar e turíbulo do incenso se metem no assunto. Frade, quando o magistério de influência cheira a sacristia. A sotaina também nunca lhe ficou mal! Sem uma ruga, sequer. O Paço Episcopal é-lhe familiar, conhece-lhe todos os ângulos. Não precisa fazer-se anunciar. A mitra, meus senhores?!... A mitra?!.... Quantas vezes lhe foi solicitada!... E colocou-a temporariamente, porque tamanha era a necessidade. E nas procissões, segue piedoso e recolhido titubeando padres-nosso e ave-marias atrás do andor principal, enchendo os tímpanos com a fanfarra. Até o sacro Chapéu Cardinalício, depois de uma ida a Roma, já lhe assentou divinamente na cabeça, em certo dia de Pentecostes!...
Minha, nossa!... Lampeiro, esperando sempre recompensa ou mais-valias… aí segue o nosso (a nossa) Cunha. Sonha como um poeta, esmaga qualquer dialéctica dos filósofos, toma o café matinal com o presidente, almoça com ministros, lancha com deputados, janta com os banqueiros, toma o seu cálice de “porto seco” à noite com um juiz, sabiamente divagando sobre a importância de um pequeno país se fazer ouvir nos areópagos internacionais, nem que se tenha de ferrar um valente murro na mesa, lá em Bruxelas."
(Continua) VARELA PIRES

2 comentários:

  1. Oh! Esse amigo Cunha!... Nunca tão oportuno como nos dias que correm!... Sabia que existia, mas - palavra - gostei de lhe apertar a mão. Pode ser que ainda me venha a ser útil, quem o sabe?...

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