segunda-feira, 18 de julho de 2011

Poesia do Brasil











Emergência
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
Mário Quintana, in " Cem Melhores Poemas brasileiros do Século"
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
António Cícero, in "Guardar", Record 1997











Retrato
Outrora
outro era o mar
o grande mar da infância...
tinhas aquela água imensa para salgar tua inocência
o horizonte incendiado pelo fogo das auroras
e as manhãs de espumas, conchas, redes e gaivotas.
Tinhas os crepúsculos de verão para extasiar tuas retinas
e no caminho rútilo dos pirilampos
tinhas a dança luminosa de um farol
e a lua flutuando no plácido espelho das águas.

Na voz submersa de um tempo inumerável
o mar te ensinou a mágica leitura do infinito.
No seu murmúrio ouviste o eco de todas as origens,
na linguagem das ondas e das tormentas,
na força  das correntes e nas grandes calmarias,
o mar te ensinou a sonoridade e o silêncio,
o encanto e a indomável magnitude dos movimentos.
Os pescadores te contaram de sua insondável  beleza, 
de passarelas de algas e corais
onde desfilam cores, formas e mistérios.
Te contaram histórias de tempestades e naufrágios,
de embarcações  que se perderam,
de sobreviventes, órfãos  e viúvas.
O mar te seduziu com o beijo incessante das espumas,
te acenou com o lampejo intermitente dos relâmpagos,
com o branco das velas que voltavam.
Encheu teu samburá de caramujos e mariscos,
teus lábios de sal, teus pés de areia
e tatuou em tua vida esta única saudade.
O mar te inundou com sua água imensa e horizontal
e, com suas imensuráveis distâncias, 
deixou em teus passos um caminho aberto para todos os portos.
                                                     
Teu coração enfim,
repleto como um dique,
era um relicário de rotas e promessas
e desde então em tua alma navegam todos os possíveis...

Desabrochavas a flor da  adolescência
quando uma onda solitária escorreu teus passos
e a vida te levou para o planalto.
Não conhecias o exílio e a penumbra das cidades
onde piratas velozes manejam o vício e a lança.
Não conhecias os tentáculos da noite
nem as paisagens sitiadas pela sedução.
Sobrevives nestes mares e ilhas inquietantes,
te consolas com a foz dos ribeirões,
recrias aqui a tua praia, o teu manguezal
e um horizonte impossível.

Retornas ao teu mar, de quando em quando,
mas ele não é mais o teu mar de outrora.
Recordas um tempo de saudosas navegações,
de pescadores partindo pelas madrugadas
e do regresso das canoas trazidas pelo vento.
Um tempo em que as estações se sucediam em equilíbrio
e num céu de ozônio o sol te oferecia a carícia de uma luz imaculada.
Num tempo em que o petróleo ainda não boiava sobre as águas
e os rios não despejavam nos litorais sua agonia.
As redes  chegavam pesadas e repletas
porque os radares ainda não cercavam os cardumes no teu mar.
Não conhecias o protesto das baleias suicidas,
nem os estertores dos pingüins betumizados.
Os arpões não tinham ainda sua infalível precisão,
os rios não choravam os seus mortos,
nem choravam os recifes os seus corais despedaçados.

No fundo e na  superfície
teu pranto assiste agora a um funeral de vítimas.
Num tempo que se curva sob o peso dos pressentimentos,
teus punhos se fecham contra uma legião de predadores.

Eis o teu cálice...
tua indignação, teu suplício...
teu grito... como tantos
tua lágrima... como tantas.
Impotente, num mundo que se afoga, sobrevives...
Sobrevives...
na memória e no esquecimento...
Sobrevives...
quando te hospedas na infância...
Sobrevives...
porque um estuário de esperança te sobrepõe à realidade...
Sobrevives...
porque um território de sonho te preserva do naufrágio.
                                                            Curitiba,Outubro de 2003
Manoel de Andrade, in " Cantares" Ed. Escrituras, S.Paulo, Brasil , Fev. 2007

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