Desagrada-me ter de molhar a caneta na tinta do desalento e da mágoa. Não me sinto bem a dizer mal. Mas o mal aí está, numa sociedade decrépita, cujos dirigentes demonstram uma felicidade tão intensa quanto leviana, e a elite, averiguadamente, não se...
Desagrada-me ter de molhar a caneta na tinta do desalento e da mágoa. Não me sinto bem a dizer mal. Mas o mal aí está, numa sociedade decrépita, cujos dirigentes demonstram uma felicidade tão intensa quanto leviana, e a elite, averiguadamente, não se interessa pelos destinos do País. Numa entrevista a Ana Lourenço, na SIC, terça-feira, António Barreto fez uma análise demolidora da situação. Barreto demonstrou, com números e dados de facto, que Portugal parece condenado a não se sabe bem o quê. Avisou: "Nos próximos anos, pode haver um movimento de emergência nacional." Como, "emergência nacional"? Intervenção militar? Ruptura absoluta na economia e nas finanças? Surgimento de um poder baseado nos bancos e nos juízes? Nada é de pôr de lado. Tudo é admissível. Qualquer destas hipóteses tem acontecido, a espaços mais ou menos curtos, um pouco por todo o lado dito "ocidental."
Na verdade, de que forma se pode organizar um país, o nosso, com 600 mil desempregados, 20 mil compatriotas a viver na faixa da miséria, 40 mil idosos com fome, milhares de grandes, pequenas e média empresas a fechar, e uma mocidade sem perspectivas, não só aqui como em outros países?
A precariedade instalou-se na vida, nos costumes, nos hábitos e na resignação portugueses. Não vale a pena estruturar as coisas nem a longa nem a curta distância. Os salários estão cada vez mais baixos, e os gentis senhores Van Zeller e Vítor Constâncio propõem: nada de aumentos! O jornalismo português existe numa baixeza moral e profissional nunca vista, nem mesmo nos tempos da Censura, da PIDE, das guerras coloniais. Sei muito bem que há gente incomodada quando escrevo e digo isto. E digo isto nos jornais, nas televisões, nas rádios e em debates para que, frequentemente, sou convidado.
Raramente notícias com a importância daquelas que referi vão para as primeiras páginas, abrem os telejornais, são comentadas e esclarecidas. A rotina dos que interpretam os factos escapa destes casos, recusa a sua análise. Os comentadores são muito independentes, muito imparciais, muito limpos, muito "distanciados" e não têm por objectivo incomodar quem manda.
As doses maciças de futebol com que nos anestesiam as capacidades críticas atingem os territórios do obsceno. O País está em declive acentuado, e não sou só eu que o digo, e a música que nos tocam é maviosa.
Os vencimentos são tão baixos que não chegam para sustentar famílias com um e dois filhos. Recorrem aos bancos da fome, à Caritas, e a outras organizações cristãs e a movimentos de solidariedade social. Há dias, o "Correio da Manhã" informava dos criminosos (não há outro termo: criminosos) ordenados e reformas obtidos por cavalheiros que talvez se julguem acima do bem e do mal. É uma notícia aterradora pela pouca-vergonha que comporta. Uma casta de privilegiados sobreleva todas as ideias de justiça e de equilíbrio social, por mais minguadas que sejam. Aqueles de nós, cada vez mais reduzidos, por medo ou por compromisso, aqueles de nós que manifestam indignação e repulsa por este estado de coisas são apodados de comunistas. Alguns, até, perseguidos, pelo singelo desejo de uma pátria solidária e fraterna. Como devem calcular, sei muito bem do que falo.
No entanto, creio que a função social da Imprensa corresponde, cada vez mais, à necessidade de se criar novos laços sociais. De contrário, corremos o risco de uma explosão generalizada, com consequências imprevisíveis. As pessoas mais novas pouco ou nada sabem do nosso passado próximo recente. Poucos filmes "políticos", pouca investigação histórica, poucos resultados de ordem pedagógica. Os escritores portugueses parecem ter-se demitido da sua exemplaridade. Abandonaram os testamentos legados por uma literatura que forneceu o retrato moral, estético, ético e intelectual do Portugal sequestrado. A ausência de debate e de polémica resulta desse abandono trágico.
O retrato de António Barreto ao País foi terrível, por perturbador. Com uma secura implacável e a voz serena e calma que se lhe conhece, o sociólogo não escamoteou nem ocultou as novas figuras de autoridade, como o medo, que nos limitam e constrangem. E Ana Lourenço, muito bem preparada, formulava as perguntas apropriadas àquilo que Barreto ia dizendo. E Barreto não esqueceu os tropeções por que tem passado o jornalismo português, cada vez mais medíocre, mais apressado, mais levezinho e ligeirinho. Uma grande entrevista, que devia servir de exemplo a muitos e muitas preopinantes das televisões, que apenas procuram o sobressalto, a surpresa e o pequeno escândalo.
O retorno do recalcado aí está. O recalcado não encontra motivação em coisa alguma. Depois, é informado da miséria, do desespero e da angústia que o rodeiam; dos ordenados (diz-se "vencimentos", é mais civilizado) dos "gestores" que foram, que são e que estão para vir. Tudo o recalca. Tudo o abate. Tudo o conduz à frustração.
Artigo de Opinião de Baptista Bastos, publicado no "Jornal de Negócios", em 30 de Outubro de 2009