O Homem e o Livro
por Eugénio Lisboa
"As relações
do homem com o livro vão, desde a indiferença, passando pelo amor e podendo
chegar até ao ódio. Por mais estranho que pareça, há pessoas para quem o livro
é, de todo, indiferente: há lares onde se não vê um único livro. Sim, há quem
de todo não leia. A família real inglesa, por exemplo, é notoriamente conhecida
como amando imenso os cavalos mas sendo, completamente, indiferente aos livros.
Foi até, baseado neste facto, que o escritor Alan Bennett escreveu um livro
delicioso – The Uncommon Reader - ,
no qual imaginou a actual rainha Isabel, que, tendo, por desfastio, tomado de
empréstimo, um romance de Ivy Compton-Burnett, se pôs a lê-lo, assim adquirindo
um inesperado e, para todo o Palácio de Buckingham, escandaloso vício da
leitura. O cómico reside no improvável do caso. O pior, na história, é que a
rainha não só adquire o hábito de ler, como, até, supremo sacrilégio, passa
também a ter o gosto de escrever! Para quem saiba da profunda indiferença dos
Windsors por tudo quanto seja leitura ou escrita, a improvável congeminação de
Bennett tem um sabor ultrajantemente delicioso.
Um episódio
picante foi também o ocorrido com o duque de Gloucester, irmão do rei Jorge
III, a quem o grande historiador Edward Gibbon ofereceu o primeiro volume da
sua hoje famosa The History of the
Decline and Fall of the Roman Empire. Quando o segundo volume desta obra
apareceu, julgou apropriado oferecê-lo também ao duque. Este recebeu o volume
com afabilidade, mas com estas palavras de algum fastio: “Mais um calhamaço
chato! Sempre a escrevinhar, a escrevinhar, a escrevinhar! Eh, Mr. Gibbon?” A
relação dos “royals” com o livro não foi nunca de grande empatia… E há muita
gente para quem o livro é apenas aquilo de que se faz um filme para a televisão
ou para o cinema. Por outro lado, há os que, como o poeta galês, Dylan Thomas,
leram apaixonada e indiscriminadamente até os olhos lhes saltarem das órbitas
(palavras do próprio Thomas). No outro extremo, estão os que perseguem o livro,
proibindo-o ou queimando-o. Um exemplo de instituição encarregada de censurar
livros foi o Index Librorum Prohibitorum,
estabelecido pela Igreja Católica, em 1559. Entre os grandes escritores
“apanhados” na rede persecutória do Index,
estão Bacon, Milton, Locke, Daniel Defoe, Richardson, Hume, Sterne, Goldsmith,
Descartes, Montaigne, Spinoza, Rousseau, Pascal, Kant, Stendhal, Hugo, Balzac,
Casanova, Dumas, Flaubert, Zola, Gide, Sartre e Moravia, entre outros.
Nem sempre
foi precisa a inquisição católica, para se perseguir, com eficácia, o livro. A
rainha Isabel I, que não gostava da cena, na peça Richard II, de Shakespeare, na qual o rei é deposto, mandou “apagá-la”
em todos os exemplares da obra. E, entre 1788 e 1820, o King Lear foi proibido nos palcos ingleses, para não se fazer a
ligação entre a peça e a loucura do rei Jorge III.
No primeiro
quartel do século XX, a Watch and Ward
Society, em Boston, fez também uma razia censória, de que uma das vítimas
foi o grande dramaturgo americano Eugene O’Neill: o censor foi, para o caso, um
primo do presidente da câmara, que, tendo perdido um braço, se viu despedido do
seu emprego de tocador de tambor, pelo que obteve o trabalho de censor.
Mas a
suprema forma de censura ao livro é a queima na praça pública. Os nazis foram
magníficos incendiários de livros de que não gostavam e não convém também
esquecer os bombeiros incendiários de livros, do famoso romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Mas os
nazis não inventaram nada: a queima de livros vem de tempos muito remotos, não
é uma invenção do século XX. Os Analectos,
de Confúcio, foram queimados (c. 240 A.C.) e centenas dos seus discípulos
enterrados vivos. Em 1497, as obras de Ovídio, Propércio, Bocaccio, Dante e
outros foram queimadas pelo monge Savonarola, na grande “Fogueira das
Vaidades”, de Florença; em 1521, as obras de Martinho Lutero foram destruídas
pelo fogo, por ordem do Papa Leão X; em 1599, as obras de Ovídio viram a
fogueira, em Londres; em 1660, as Lettres
à un Provincial, de Pascal foram incineradas por ordem de Luis XIV; as Lettres Philosophiques e o Temple du Goût, de Voltaire viram a
fogueira em 1734; em 1795, as obras de Cagliostro foram devidamente queimadas.
Hoje,
fico-me por aqui. Talvez ainda volte a esta estranha relação do homem com o
livro. Muito ficou por dizer. "
Eugénio Lisboa, em Ensaio publicado na rubrica " Ipsissima Verba", da Revista LER, 2017
Sem comentários:
Enviar um comentário