terça-feira, 1 de outubro de 2024

Essa memória persistente

Lourenço Marques, Avª Pinheiro Chagas nos anos 30

Lourenço Marques, final da Avª Pinheiro Chagas ,
no Alto Mahé, anos 60.
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por Eugénio Lisboa
"Eu tinha seis anos e entrei para a chamada “classe infantil” (que, nessa altura, ainda existia, tendo, depois, sido abolida). Tive, ali, duas professoras excelentes, a viúva Chaves Maia (como era conhecida) e a D. Ernestina Machado, pedagogas notáveis. Foi o que se pode chamar uma iniciação sem dor e mesmo com grande prazer lúdico. Com plasticina, carimbos e jogos vários, aprendemos a ler, escrever e contar, como se de nada se tratasse. Uma festa! Tudo, num ambiente de grande ternura maternal, onde não havia nem a suspeita de um castigo. Julgo que acabei por saltar depressa a primeira e a segunda classes, indo desaguar na terceira classe da D. Laurinda Magalhães: uma Senhora sobre o pletórico – mas não gorda – de voz um pouco cheia ou mesmo ligeiramente rouca, maternal, mas exigindo disciplina, de um modo amistoso mas não “camarada” (o que seria um erro). Eu adorava‑a, pura e simplesmente. Gostávamos dela, mas não abusávamos. E sentiamo‑nos tanto mais aconchegados quanto, na sala ao lado, uma outra professora – Amena Cassanhe – metralhava com a sua fúria sádica, a golpe de gritos e violentas palmatoadas, uma turma de garotos pálidos e aterrados. Por vezes, perdia literalmente a cabeça e despenhava‑se por ali abaixo, numa gritaria de fêmea mal saciada. A gritaria chegava até nós, furando a opacidade das paredes e nós olhávamos para a D. Laurinda, pedindo protecção. Não sei se, por acção do sr. Garradas, a Cassanhe foi transferida para outra escola lá mais para os lados da Polana. Mas creio que veio a ter um processo disciplinar, tendo sido afastada.
Trinta e muitos anos depois de ter frequentado a terceira classe da D. Laurinda, por ocasião de uma entrevista que dei ao Rádio clube de Moçambique, tendo‑me sido perguntado de que professores me lembrava com particular carinho, referi a D. Laurinda, procurando justificar essa memória persistente. Eu não sabia se ela ainda era viva ou, sendo, se ainda viveria em Moçambique. Mas eis que, um ou dois dias depois da entrevista, atendo um telefonema: era aquela inconfundível voz, cheia, quase rouca, agradecendo, com lágrimas (que eu “ouvia”...), as palavras bonitas do “Sr. Engenheiro”... Quase chorei eu, também, a pedir‑lhe que me tratasse por “tu”, como nos tempos da Paiva Manso e do sr. Garradas. Com a D. Laurinda, tudo tinha sido fácil, fluente e apetecido: a leitura, o ditado, a aritmética,a geografia... Nós gostávamos daquilo, porque gostar daquilo era como gostar da D. Laurinda. Com a idade que agora tenho, a D. Laurinda já não pode estar viva – mas está viva dentro de mim e de algum colega meu, desse tempo, que, por acaso, ainda viva. Ao ter‑me iniciado na escola, no estudo, com estas três inesquecíveis senhoras, acho que tive uma sorte prodigiosa. Tudo teria podido ser diferente – para pior ou muito pior – se, em vez de três pessoas inteligentes, sensíveis, competentes e bondosas, me tivesse saído na rifa uma ressabiada, com desejo de sangue e violência. Que as havia, como se viu...
Falando da Paiva Manso, é imprescindível referir os intervalos entre as aulas: era durante o segundo intervalo da manhã que comíamos a merenda – no meu caso, um pãozinho circular, fofo, só muito ligeiramente adocicado, com manteiga, e uma garrafinha de “Toddy”. Esta merenda deixou‑me, na memória, uma marca mais profunda do que não sei quantas madeleines do Proust! Sabia‑me que nem nozes. Quem queria, jogava o berlinde e era, também, durante os intervalos que se armavam as zaragatas entre os que aspiravam ao título de campeão. No território da escola, não se lutava: ficava tudo aprazado para “lá fora”, depois da última aula. Os aspirantes ao “título”, naquela altura do campeonato, eram o Gui e o irmão, de que me não lembro do nome (chamar‑lhe‑ei, por comodidade, Fernando). O Gui era mais novo e mais pequeno, mas era também o mais fogoso e atrevido. Estava absolutamente convencido de que daria uma abada ao irmão, mas o Fernando deu‑lhe, com alguma dificuldade, uma sova mestra, e o caso ficou arrumado. Esta vitória, arrancada a ferros, subiu‑lhe à cabeça e tornou‑o perigosamente provocador: começou a pensar que o seu poder não tinha limites e desatou, sem motivo que se visse, a provocar um colega mulato, grande, gordo e algo balofo. Era uma alma pacífica, pachorrenta e estava pouco virado para zaragatas, “lá fora”. Estas tinham sempre lugar num vasto terreno baldio entre a 24 de Julho e a Pinheiro Chagas. O Fernando, apesar do desinteresse do gorducho, queria, à força, juntar mais uma vitória ao seu currículo. É que, apesar de molengão e passa‑culpas, o potencial adversário pesava uma abada de quilos mais do que ele. E bater aquele latagão dar‑lhe‑ia material q.b. com que alimentar a sua bazófia. Um dia, finalmente, depois de muito assediado e gozado, o latagão dignou‑se dizer, com o seu costumado ar de pachorra arrastada: “Está bem, encontramo‑nos à saída.” O Fernando exultou! Ia, finalmente, mostrar que os homens não se medem aos palmos. Durante o resto da manhã, o Fernando desenvolveu uma infatigável actividade, arregimentando público para assistir ao seu triunfo: nervos e audácia contra uma massa bruta e amorfa! A malta engoliu, impaciente, a última aula, sem quase prestar atenção ao que o professor dizia e, mal a campainha tocou, precipitamo‑nos, de atropelo, para a entrada do baldio. O Fernando começou aos saltinhos nervosos, dando socos no vazio, como boxeur que aquece para a refrega. Pachorrentamente, o matulão desembaracou‑se da mochila, com ar de quem se prepara para almoço e sesta, aproximou‑se do dançarino, deu‑lhe um piparote desenfastiado, que o deitou ao chão e deixou‑se cair, de barriga, em cima dele, ficando ali a espremê‑lo. “Diz quando chega...”, disse ele, como quem se prepara para passar ali a tarde toda, sendo preciso... O Fernando, sufocado, lá disse que chegava e se dava por vencido. O latagão removeu aquela tonelada de carne mulata de cima do Fernando, levantou‑se com uma lentidão cheia de ameaças, sacudiu‑se molemente, pegou na mochila e pôs‑se a andar para casa, ao ralenti. Todo o seu corpo parecia resmungar: “Haja pachorra!” O Fernando sacudiu‑se, vexado. Foi o fim do mito dos dois irmãos imbatíveis: o Gui apanhara do irmão e este apanhara do mulato pachorrento. De aí em diante, não me lembro de ouvir bravatas de qualquer aspirante ao título. Era tudo diabolicamente imprevisível: podia sempre aparecer uma valente sova, vinda de onde menos se esperava. As aparências iludem, como acabara de verificar o Fernando
."
Eugénio Lisboa in “Acta Est Fabula, Memórias I, Lourenço Marques”, Opera Omnia Editora, Novembro de 2012  pp.27-31

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