segunda-feira, 30 de setembro de 2024

No último dia de Setembro

III – O tempo dos afectos
  
“De pequeno não me lembro de mim, mas lembro-me dum ser extasiado, que abria os olhos atónitos para o mundo, todo frenesi e paixão...”
Raul Brandão,   Memórias

(...) A minha família completou-se definitivamente, com o nascimento do meu irmão mais novo.  Nasceu em Setembro, no último dia de férias, na praia  onde passávamos férias.
Nesse ano, regressámos mais tarde à quinta. Acabámos por ter férias prolongadas. Recordo perfeitamente este nascimento, embora ele tenha nascido durante a noite. Sei que acordei e vi uma das salas iluminada. Curiosa e inquieta, resolvi ir investigar o que se passava.
Na sala, estavam a minha tia Chi, irmã de meu pai,  e a sobrinha mais velha, a Lai, filha do meu tio Eduardo, um dos irmãos de meu pai e meu padrinho. Na minha cabeça, tanta gente acordada, foi uma confusão , embora eu nunca acordasse  durante a noite. Dormia encantada a noite inteira, como convinha a uma criança feliz.
Ao verem-me, meia estremunhada, esfregando os olhos devido ao brilho agressor das luzes,  levantaram-se e vieram buscar-me.  Então, com muito carinho, e naquele jeito, que os adultos compõem para darem as notícias às crianças, informaram-me do nascimento do meu irmão. Não sei bem o que senti. Dizem que bati palmas e que logo me pediram para não fazer barulho para ele não acordar.
Fui pé ante pé, em procissão, com algumas recomendações  até ao quarto dos meus pais. A minha mãe estava deitada. Olhava-me e acenava-me para que me aproximasse. Num bercinho, junto dela, lá estava o meu irmão. Lindo, de rosto redondinho, parecia um daqueles bonecos que o meu pai nos trazia de Espanha. Fiquei muito quietinha junto às grades a observá-lo. Ele dormia e dormia.
Naquele momento, senti-me muito importante: era a primeira de todos a conhecer o nosso novo irmão. E não sei por que razão fiquei convencida de que ele sabia dessa proeza.  Não é que acordou passados alguns segundos e ,  simulando  olhar para mim,   lançou-me  aquele  doce sorriso que me cativaria para sempre . (Ainda hoje, o meu irmão mais novo tem um sorriso doce.)
Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi", pp. 27, 28

domingo, 29 de setembro de 2024

Ao Domingo Há Música

Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.
                   Eduardo Galeano, O Mundo dos Afectos

O talento, a capacidade de tocar o outro, de o contagiar é a chama de alguns. Distinguem-se dos outros e a Arte é o campo onde muitos deles se expandem.
Assim se colhe a transcendente beleza dos sons de um piano nas mãos de um talentoso compositor-pianista.
Philip Glass, em Opening (Official Video). 
"Philip Glass apresenta Opening, para celebrar o seu novo álbum de piano, Philip Glass Solo, no seu 87º aniversário. Filmado em Brooklyn, NY, 2021.
Sobre Opening
Glass compôs Opening para o seu álbum Glassworks de 1981, para captar a intimidade do piano a solo. Opening tornou-se uma das suas obras mais fascinantes – tanto que, nas muitas gravações disponíveis, Opening foi transmitido mais de 100 milhões de vezes e  frequentemente é considerada a peça mais emblemática da música do compositor."

sábado, 28 de setembro de 2024

Novidades Literárias

 
Guerra&Paz Editores
Os meus livros de Setembro 
por Manuel S. Fonseca
"Que terra assombra de amor-ódio-culpa o imaginário do século XXI português? De onde vêm essas ondas de dor, de nostalgia, de sopro heróico e arrepio pusilânime, que se nos cravam no estômago e baixo-ventre? Dois belíssimos e chocantes romances – sim, romances de amor-ódio-culpa – respondem, e começam aqui os meus livros de Setembro: O Elogio da Dureza, romance cru, rijo como rocha, poético e intempestivo como Rimbaud, da autoria de Rui de Azevedo Teixeira, e Sublevações, romance de seis dilacerados e raivosos monólogos-trovão, de Filipe Súcia Fernandes, assustaram-me e comoveram-me: são trovões que vêm de Angola, com cenas de fúria que se nos espetam como punhais na nossa carne inocente e no raio dos nossos pecados. São muito boa literatura. Vêm das entranhas, não são para meninos ou meninas, são para mulheres e homens bravos, romances que fazem mais forte a forte gente. Repito: Elogio da Dureza, de Rui de Azevedo Teixeira e Sublevações, de Filipe Súcia Fernandes, dois romances diferentes, vestem-nos e despem-nos com fervor e furor, instinto assassino, o nosso incendiado passado colonial, a perplexidade e a amargura da derrota, da expulsão, um lençol de sexo e amor também. São feridas novíssimas e indeléveis abertas na literatura portuguesa. A ler já. "
Manuel S. Fonseca, editor da Guerra &Paz
Sobre a obra
O Elogio da Dureza
"O romance de Rui de Azevedo Teixeira balança entre a universidade e a contra-guerrilha. A sensibilidade culta e inteligente das Letras e o «magnífico terror» dos tiros – em páginas inultrapassáveis de violência letal credível no romance português – formatam o protagonista. «Comando refinado», que tanto desmonta, na escuridão, a G3, como conceitos de Eco, Barthes ou Kristeva, é um raro «homem à parte». E, apesar de um período de relações rápidas, instantâneas até, é um romântico.
Num percurso vital que começa numa aldeia de Vila Velha do Mar, passa por Macau, Coimbra, Mafra, Luanda, savana e selva, Vila Figueira, Madeira e Porto Santo, e que termina nas tripeiras Antas e Foz, terá Paulo de Trava Lobo encontrado uma luz eleusina, ou outra, para amanhecer a sua «noite interior»?”
Na luta para se manter à tona da sua «noite interior», Paulo de Trava Lobo, o herói de O Elogio da Dureza, escolhe como armas a literatura, o humor e a violência. Na literatura, encontra a possibilidade de se evadir e de se «multiplicar» benignamente pelas vidas de ficção; no humor, o «Remédio Bocage» amansa a sua «amarga, acerba dor»; nos comandos, torna se num dos coriáceos que consegue «dar um passo depois do último». Afinal, quem é Paulo, um herói ou um anti-herói?

Rui de Azevedo Teixeira

Sobre o autor
Rui de Azevedo Teixeira nasceu em Argivai, Póvoa de Varzim. Combateu em Angola. Doutorou-se em Literatura Portuguesa Contemporânea e agregou, por unanimidade, em Estudos Portugueses – Literatura. Organizou os dois primeiros congressos internacionais sobre a Guerra de África – 1961-1974 – e os respectivos livros de actas: A Guerra Colonial: Realidade e Ficção (Instituto de Defesa Nacional, 2000) e A Guerra do Ultramar: Realidade e Ficção (Fórum Cultural do Seixal, 2001). É «Titular de Reconhecimento da Nação».
Como académico, publicou os livros A Guerra Colonial e o Romance Português: Agonia e Catarse (tese de doutoramento) e Uma Proposta de Cânone (aula de agregação).
Como ensaísta, entre outros títulos, O Leitor Hedonista: Sobre o Romance Português Contemporâneo e Outro Textos, A Guerra de Angola: 1961-1974, Homem de Guerra e Boémio: Jaime Neves por Rui de Azevedo Teixeira Ensaios de Espelho.
Como romancista, O Elogio da Dureza, O Longo Braço do Passado e, agora, O Imenso, Sereno e Doce Rio." 
Ficha Técnica:
Título: O Elogio da Dureza
Autor: Rui de Azevedo Teixeira
Categoria(s): Ficção, Romance
Colecção: Arquipélago
Nº de Páginas:192
Ano de Edição:Setembro 2024
ISBN:978-989-576-100-5
Formato:15x23
Capa:Brochado
Preço : 12,80€
Sublevações
Sobre a obra:
"Porque é que não se pode escolher a terra para viver, porque é que a terra onde se nasceu tem de ser a nossa terra?
Sublevações, de Filipe Sucia Fernandes, conta a história da família de um comerciante do mato que escolheu uma terra para viver e morrer, onde os filhos e os netos não puderam ficar. A narrativa leva-nos ao início da guerra colonial, em Angola, culminando na pandemia de covid-19.
A partir desta ferida biográfica, Sublevações é a história de uma perda, de uma queda sem apogeu nem remissão.
Porque é que não se pode escolher a terra para viver, porque é que a terra onde se nasceu tem de ser a nossa terra? Se a terra não tem donos, não se deveria ser livre nas escolhas, sobretudo quando se foge para não morrer?
Um romance em seis actos de catarse, que envolvem o comerciante do mato, o filho mais velho, o filho mais novo, um neto e uma bisneta. Agora, a última descendente da família, a bisneta do comerciante de café, espera pelo regresso do filho desaparecido. Não sabe se ele está vivo ou se já morreu. Se ele não voltar, que chegue a notícia, como com o Encoberto.
Filipe Sucia Fernandes
Sobre o autor:
Filipe Sucia Fernandes nasceu em Angola, é jornalista, já escreveu em vários jornais e revistas e fez biografias, histórias empresariais e económicas. Sublevações é o seu primeiro romance e surgiu depois de receber uma Bolsas de Residência Literária da Fundação Eça de Queiroz. Durante um mês, seguiu o pensamento de Santa Teresa d’Ávila: era uma boa inspiração, deixou o medo e escreveu este romance a partir de notas feitas ao longo de vários anos.Ficha Técnica:

Título: Sublevações
Autor: Filipe Sucia Fernandes
Categoria(s): Ficção, Romance, Sem categoria
Nº de Páginas:128
Ano de Edição:Setembro 2024
ISBN:978-989-576-097-8
Capa:Brochado
Preço original era: 15,00 €.12,00 €. O preço atual é: 12,00 €.

Gradiva Edições


D. Sebastião | 1554-1578
José Maria de Queiroz Velloso
"Considerada uma das suas biografias mais fiéis, completa e bem documentada, da autoria do historiador português Queiroz Velloso, há muito que merecia estar de novo disponível junto dos leitores.
Escrita originalmente em 1935 e sucessivamente reeditada com edições aumentadas (a terceira data de 1945), surge agora na sua versão integral, revista e com linguagem actualizada, com um ensaio introdutório do historiador Luís Filipe Thomaz.
Obra de investigação histórica que escalpeliza o reinado de D. Sebastião - a sua infância e juventude, os casamentos propostos, a preparação da jornada de África, a obsessão pela conquista do Norte de África e a corrida para o abismo e a morte na batalha de Alcácer-Quibir -, a presente edição é acompanhada, tal como na sua versão original, com retratos de época, bem como com a ordem de batalha do exército de D. Sebastião e a planta do campo de batalha de Alcácer-Quibir.
«Publicado em 1943 D. Sebastião | 1554-1578, constitui a derradeira e a mais conhecida das obras de Queiroz Velloso. A obra é, em rigor, mais uma biografia que a história de um reinado. [...] escrito numa época em que imperava ainda em Portugal o positivismo histórico, [...] o livro esgota praticamente os dados fornecidos pela documentação subsistente - pelo que é, praticamente, insubstituível como manancial de eventos e não envelhece com os anos.»
Luís Filipe Thomaz, historiador
José Maria de Queiroz Velloso
Sobre o autor
"JOSÉ MARIA DE QUEIROZ VELLOSO (1860-1952) formado em Medicina, enveredou pela docência tornando-se professor do Curso Superior de Letras e depois vice-reitor da Universidade de Lisboa. Ainda estudante, iniciou-se como colaborador de diversos periódicos e integrou as tertúlias literárias então existentes na cidade do Porto. Abandonando a medicina, passou também a dedicar-se ao jornalismo, tendo colaborado com A Folha Nova, A Província, o Novidades, o Repórter e o Tempo. Também se interessou pela política, sendo eleito deputado às Cortes da Monarquia Constitucional Portuguesa, nas listas do Partido Regenerador. Iniciou a carreira no ensino em 1896 no corpo docente do Liceu de Évora, assumindo os cargos de director da Escola de Habilitação para o Magistério Primário e da Biblioteca Pública. Em 1902, foi encarregue de reger a cadeira de História da Pedagogia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi nomeado director do Curso Superior de Letras em 1910, cargo que manteve após a reforma republicana de 1911. A 3 de Abril de 1920 foi agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. Jubilou-se em 1930, aos 70 anos, dedicando-se depois à intensa actividade de investigação historiográfica."

Livro:D. Sebastião | 1554-1578
Autor:José Maria de Queiroz Velloso
Edição :Setembro 2024
Colecção: Fora de Colecção
Páginas: 504
Capa: Capa brochada
Preço: €24,00 €21,60
O que é a Arte?
Lev Tolstoi
A obra de Tolstói como autor de romances dispensa apresentações. Porém, o escritor russo foi muito mais do que um grande romancista, dedicando a parte final da sua vida ao ensaísmo filosófico.
O Que é a Arte? é talvez o ponto mais alto da reflexão filosófica de Tolstói, tendo levado cerca de quinze anos a escrever, o que mostra a importância que o próprio autor dava ao tema em causa. Como ele mesmo refere, a arte é uma coisa séria. Não é uma mera questão de beleza e ainda menos de divertimento ou de obtenção de prazer.
A arte autêntica é acessível a todos e define-se, segundo Tolstói, pela sua capacidade de comunicar sentimentos que contribuam para a união das pessoas e para o aperfeiçoamento moral de toda a comunidade. Estas são as bases da teoria da arte que veio a ser conhecida como «teoria da expressão», assente numa definição funcionalista da arte. Teorias que continuam a ser estudadas e discutidas pelos filósofos interessados em debater o que é a arte e qual o seu valor.
 
«[…] O Que é a Arte?, de Tolstói, um livro maravilhosamente original e ao mesmo tempo perverso e até exasperante. De bom grado confesso, discordando de quase todas as suas conclusões, o quanto lhe devo.»
Roger Fry
Lev Tolstoi
Sobre o autor
"LEV TÓLSTOI (1828, Iasnaia Poliana - 1910, Astapova), autor de obras universais como Guerra e Paz (1865-69), Ana Karenina (1875-77), A Morte de Ivan Ilitch (1886) ou Sonata Kreuzer (1889), é por muitos considerado um dos maiores romancistas de todos os tempos. Nascido no seio da alta aristocracia russa, pai de treze filhos e autor mundialmente reconhecido, acabou por ser assaltado pelas dúvidas próprias dos «homens inúteis» que usufruem de todo o sucesso e riqueza no meio da miséria do povo. Isso levou-o a procurar um verdadeiro sentido para a sua vida, encontrando-o numa religiosidade despojada e interior, avessa à Igreja e seus rituais, bem como numa vida simples, entre os mais simples. Foi durante este último período da sua vida que se dedicou ao ensaísmo filosófico, escrevendo sobre questões morais, religiosas, políticas e estéticas, de que se destacam Confissão (1882) e, precisamente, O Que é a Arte? (1898)."
Título : O que é a Arte?
Autor: Lev Tolstói
Edição Setembro 2024
Colecção Filosofia Aberta
ISBN 978-989-785-322-7
Páginas 256
Capa Capa brochada
Dimensões 15,50 x 23,00 cm
Preço:€16,50 €14,85
O Livro das Despedidas
Velibor Colic
«Chamo-me Velibor Čolić, sou refugiado político e escritor. A minha fronteira é a língua; o meu exílio é o meu sotaque.»
Inspirando-se no seu próprio exílio, Velibor Čolić transpõe em O Livro das Despedidas a vida de um refugiado político descrevendo na primeira pessoa a condição de desenraizado dos imigrantes e a peregrinação desesperada daqueles que nunca encontrarão verdadeiramente a sua casa.
Fugido da Guerra na Jugoslávia, Velibor Čolić desembarca em França e inicia uma segunda luta: a de tentar recuperar a sua identidade através da aprendizagem de uma nova língua reconstruindo-se a partir dela.
Escrito originalmente em francês e publicado pela prestigiada editora Gallimard, O Livro das Despedidas surpreende pela liberdade narrativa jazzística que a cada fragmento oferece uma improvisação sobre um momento significativo do seu percurso de refugiado em vias de se tornar escritor.
Enquadrado pela gíria dos bairros que percorre e por reflexões marcadas pelo consumo por vezes excessivo de álcool, O Livro das Despedidas oferece aos leitores uma verdadeira homenagem à literatura na sua mais cristalina essência. E por detrás do sarcasmo e dos infortúnios do acaso, é possível encontrar um homem cheio de esperança, pronto para partilhar a sua história."
Velibor Čolić 
Sobre o autor:
"Velibor Čolić nasceu em 1964 na pequena cidade de Modrica, na Bósnia. Depois de estudar literatura jugoslava em Sarajevo e Zagreb, trabalhou em rádios regionais como jornalista especializado em música. Viu a sua casa e todos os seus escritos serem queimados durante a Guerra dos Balcãs. Membro do exército bósnio, desertou em Maio de 1992 e foi feito prisioneiro. Tendo conseguido fugir refugiou-se em França, onde reside actualmente.
Em 1994, a editora francesa Le Serpent à Plumes publicou o seu primeiro livro, Les Bosniaques, ao qual se seguiram, entre outros, La Vie phantas - magoriquement brève et étrange d’Amedeo Modigliani (1995), La Chronique des oubliés (1996), Mother funker (2001), Perdido (2005), Archanges (2008), ano em que começa a escrever directamente em francês, Jésus et Tito (2010, Prémio Literário Jovens Europeus 2011). Seguem-se Sarajevo Omnibus (2012), Ederlezi: Comédie pessimiste (2014), Manuel d’exil: Comment réussir son exil en trente-cinq leçons (2016) e Le livre des départs em 2020, todos eles publicados pela editora Gallimard. Guerre et pluie (2024) é o seu mais recente livro."
Título: O Livro das Despedidas
Autor: Velibor Colic
Edição Julho 2024
Colecção Gradiva
ISBN 978-989-785-309-8
Páginas 184
Capa Capa brochada
Dimensões 14,70 x 22,20 cm
Preço: €15,50 €13,95
Porto Editora
Novidades
Cantar o amor à natureza
"No centenário de Sebastião da Gama, a Assírio & Alvim publica O Inquieto Verbo do Mar. Pela primeira vez reúne-se toda a poesia conhecida do poeta que cantou como ninguém o amor à natureza.
É nestes versos, ora densos, ora leves, que encontramos algo que poderíamos descrever como «ecocrítica»: no seu empenho pela preservação da Serra da Arrábida, Sebastião da Gama mostra-nos o que há de superlativo nos espaços que nos rodeiam, exercendo o seu olhar de pedagogo e generosidade na partilha de saberes. O Inquieto Verbo do Mar conta ainda com alguns documentos úteis ao estudo desta poesia, tais como uma cronologia detalhada da vida do poeta e acontecimentos sobre a sua obra; um anexo biobibliográfico comentando cada livro aqui contido e um posfácio de João Reis Ribeiro, que preparou esta edição, iluminando alguns pontos destas composições.  
Numa parceria com a Associação Cultural Sebastião da Gama, o lançamento do livro realiza-se a 4 de outubro, pelas 18:30, na Casa da Cultura, em Setúbal, com apresentação de Viriato Soromenho-Marques." 
 

Mais de 100 razões para não largar os livros
"Literatura portuguesa e estrangeira de referência, não ficção sobre temas de grande atualidade internacional e a celebração dos centenários de nascimento dos poetas Sebastião da Gama e Alexandre O’Neill.
FICÇÃO NACIONAL
Corpo Vegetal, disponível nos escaparates a 19 de setembro, marca o regresso de Julieta Monginho à escrita depois de Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, Grande Prémio de Romance e Novela 2021 da APE. Um romance fortíssimo que aborda a dicotomia do consentimento vs. abuso sexual, incluindo as suas repercussões jurídicas.
Imagine um Jesus nascido nesta era, criança curiosa e filha de mãe solteira, praticante de uma fé que se afigura ambígua. Os trinta nomes de Deus é o novo romance de Bruno Paixão, que reimagina a espiritualidade e a procura pela Verdade de uma maneira provocadora e contemporânea. Com lançamento agendado para 12 de setembro, este romance promete surpreender e desafiar as fronteiras do conhecimento.
Em outubro, Teolinda Gersão assina Autobiografia não escrita de Martha Freud, centrado na correspondência privada entre Martha Freud e Sigmund Freud, especialmente nos seus longos quatro anos de noivado, entre 1882 e 1886. Um olhar crítico e perturbador sobre um dos grandes intelectuais do século xx.
 
FICÇÃO INTERNACIONAL
Kiev de 1919, em que os soviéticos controlam a cidade, mas várias ameaças surgem do Ocidente e ninguém confia em ninguém. Este é o pano de fundo para um emocionante thriller histórico em pleno rescaldo da revolução russa. Andrei Kurkov, denominado como o «maior escritor ucraniano da atualidade» pelo New York Times, apresenta O Osso de Prata, um livro já nomeado para o International Booker Prize 2024. O autor estará em Portugal em breve, por ocasião do FOLIO.
Para ler também em outubro, damos destaque à história de uma família normal que caiu de um dia para o outro no abismo. Toda a vida que resta, de Roberta Recchia, realça o luto mas principalmente o carinho e o amor que é capaz de encantar e surpreender.
Camilla Läckberg a rainha do thriller escandinavo está de volta com o explosivo final da história de Faye. Sonhos de bronze prometem um drama de vingança carregado de traição, redenção e irmandade. A não perder!
O Parque é o derradeiro capítulo da história da detetive Elin Warner, depois dos êxitos O Sanatório O Retiro. Desta feita, a inglesa Sarah Pearse situa a ação algures no «nosso» Gerês. Um thriller narrado a dois tempos, repleto de beleza selvagem, mas também de negra sordidez. Para ler em outubro.
 
AUTORES DE VISITA A PORTUGAL
No ano em que celebra o seu 80.º aniversário, a Livros do Brasil revela uma vitalidade como nunca, apostando na publicação tanto de obras assinadas por ícones da literatura mundial, como de livros de autores contemporâneos de grande complexidade e originalidade narrativas.
As Palavras, as memórias de infância de Jean-Paul Sartre, chega às livrarias em setembro. Eis o retrato de um tempo, uma reflexão sobre o lugar dos livros na construção da experiência humana e uma brilhante autoanálise de um dos maiores escritores do século xx.
No mesmo mês é publicado Inyenzi ou As Baratas. Trinta anos volvidos sobre o genocídio do Ruanda, chega a Portugal este documento duro e enternecedor da sobrevivente Scholastique Mukasonga, numa memória pessoal que importa enfrentar coletivamente. A autora estará em Portugal em outubro, no âmbito do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos. Também Burhan Sönmez – cujo Pedra e Sombra foi publicado na primavera – é convidado deste evento.
Ainda na coleção Contemporânea, A Picada de Abelha, finalista de várias distinções, incluindo o Prémio Booker, selecionado como livro do ano por publicações anglo-saxónicas e vencedor do Prémio Nero e do Livro Irlandês do ano, é a melhor das desculpas para, em outubro, ficarmos a conhecer o trabalho de Paul Murray.
A Outra Filha, um livro-carta no qual a Nobel Annie Ernaux escreve à irmã que nunca conheceu, falecida em criança e de cuja existência só tomou conhecimento aos dez anos, é outro dos destaques da rentrée. A reedição de Viagem ao Fim da Noite, o polémico romance de estreia de Louis-Ferdinand Céline, encerra o ano editorial na coleção Dois Mundos.

HISTÓRIAS QUE MARCAM E EXPLORAM O IMAGINÁRIO
Atenta à evolução dos tempos e dos gostos dos leitores, a Singular orgulha-se de trazer para Portugal uma mão-cheia de títulos sensação.
A Viagem de Billie é um romance comovente sobre amor e perda, em que Billie revisita memórias importantes à procura de redenção. Uma história sensível sobre escolhas e resiliência humana. Nomeado para Livro do Ano na Alemanha em 2023 e publicado em Portugal pela Singular, esta é uma história imperdível de Elena Fischer.
Num futuro próximo, um funcionário público entra num misterioso ministério que testa os limites da viagem no tempo. Com figuras históricas e muita ficção científica, O Ministério do Tempo, de Kaliane Bradley, foi considerado por Barack Obama uma das melhores leituras de verão.
Bela Maneira de Morrer segue uma família marcada pela obsessão com a herança, onde cada filho tem motivos para matar. Um estranho, fascinado por homicídios, tenta desvendar a verdade por detrás das mortes. Com um enredo cheio de suspense e personagens cheios de segredos, Bella Mackie oferece uma história de crime irresistível e repleta de reviravoltas.
 
COMPREENDER OS TEMAS-QUENTES
Quantos de nós estariam dispostos a morrer pelo nosso País? Alexei Navalny começou a escrever Patriota pouco depois do seu envenenamento quase fatal em 2020. Esta é a história completa da sua vida: a juventude, o ativismo, o casamento e família, o empenho em desafiar uma superpotência mundial determinada a silenciá-lo. Um título Ideias de Ler, disponível mundialmente a 22 de outubro.
Também A Queda das Civilizações: Histórias de grandeza e declínio ajudará os leitores a entender melhor o mundo de hoje, recorrendo ao passado. Depois do enorme sucesso do seu podcast, Paul Coope r apresenta em forma de livro uma investigação minuciosa, apoiada em mapas, fotografias e ilustrações.
Ainda na mesma chancela, As Vidas Secretas dos Números é uma fascinante viagem pelo universo da matemática. A historiadora Kate Kitagawa e o jornalista Timothy Revell revelam-nos as figuras esquecidas desta disciplina, dos afro-americanos às mulheres, numa escrita refrescante, repleta de exemplos do quotidiano.
Das primeiras uniões microscópicas ao Tinder e ao desconcertante conjunto de fetiches dos nossos dias, como começou o sexo e de que forma evoluiu para a variedade e complexidade atuais? Que influência têm os nossos antepassados genéticos na nossa vida sexual? E como será o sexo no futuro? Com humor e respeito pela diversidade, David Baker apresenta-nos A Mais Breve História do Sexo.
E se a depressão, a ansiedade, a diabetes tipo 2, a demência, o cancro e muitos outros problemas de saúde tiverem a mesma causa? Segundo Casey Means, autora de Boa energia, têm. A, também, cofundadora da Levels, uma empresa de tecnologia da saúde com a missão de acabar com a crise mundial de saúde metabólica, afirma que o segredo está no tipo de energia que geramos no nosso organismo. Por isso, revela tudo o que precisamos para melhorarmos a nossa energia e, consequentemente, a saúde.
Nos últimos anos, a IA tem assustado meio mundo e fascinado outro meio. Em Co-inteligência, Ethan Mollick, um dos mais notáveis e irreverentes especialistas em IA, convida-nos a ver esta tecnologia como um colega de trabalho e um coach. Aprenda a pensar e a trabalhar em colaboração com máquinas inteligentes sem perder a sua identidade e tirando benefício do que melhor têm para oferecer estas ferramentas.
O Fim de Tudo pode parecer um título fatalista, mas o objetivo de Victor Davis Hanson é, precisamente, o oposto. Ao recordar como a força das armas levou ao extermínio total de várias civilizações, o autor pretende deixar aos leitores contemporâneos lições que lhes permitam conhecer os erros do passado, mas também pistas valiosas que conduzam a nossa sociedade a um destino diferente do fim catastrófico, como já aconteceu tantas vezes com uma série de povos.
Alter Ego é um livro de fotografia diferente de todos os outros a que António Homem Cardoso já deu vida. Através da lente do fotógrafo, vemos nomes incontornáveis do mundo artístico português como se a ele nunca tivessem pertencido. Neste universo alternativo, cada um dos retratados é representado de acordo com a vida que poderiam ter seguido, caso a arte não tivesse sido o caminho que percorreram.
 
NO TRABALHO OU NA INTIMIDADE, CUIDE DE SI
Uma vida íntima saudável pode ajudar a promover a saúde mental. Por outro lado, o ritmo de trabalho sem regras pode fazer, precisamente, o contrário. O importante é encontrar o equilíbrio necessário para ter uma vida harmoniosa em todas as áreas.
Se já sofreu de burnout e sente que está a voltar ao mesmo, se já acorda stressado ou se trabalha à noite e aos fins de semana para recuperar o que tem em atraso, precisa d’ A cura para o burnout. Combinando pesquisa científica, a experiência em psicologia organizacional e as estratégias que implementou com sucesso com clientes em todo o mundo, Emily Ballesteros descreve 5 áreas essenciais em que podemos construir hábitos saudáveis para combater o burnout.
Antes do sexo vem o Desejo. Por isso mesmo, sem pudores nem receios, Gillian Anderson, conhecida pelos seus papéis em séries como Sex Education Ficheiros Secretos, desafiou mulheres de todo o mundo a partilharem os seus desejos e suas fantasias sexuais mais ousadas, de forma totalmente anónima. O resultado é este livro único, que junta centenas de cartas (incluindo a da própria autora), revelando os sentimentos mais profundos e íntimos.
 
CELEBRANDO FIGURAS ÍMPARES
Assinalando os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões, a Assírio & Alvim publica em outubro o volume Teatro. Com edição de Sérgio Guimarães de Sousa, aqui se apresenta a dramaturgia completa e uma faceta esquecida, mas não menos importante, do autor d’ Os Lusíadas.
Ainda no campo das efemérides, será celebrado o centenário do nascimento de Sebastião da Gama. O Inquieto Verbo do Mar reúne, pela primeira vez, toda a poesia conhecida do poeta natural de Azeitão que cantou como ninguém o amor à natureza. O prefácio é de João Reis Ribeiro. Disponível nas livrarias já a 19 de setembro.
Alexandre O’Neill, também nascido em 1924, não será esquecido na reta final do ano. Depois da sua biografia literária, lançada em abril, dá-se início à publicação autónoma dos seus livros de poesia com Tempo de Fantasmas No Reino da Dinamarca. Dando a conhecer a obra que terá inspirado o Primeiro Grupo Surrealista Português, História do Surrealismo, de Maurice Nadeau, é outro dos destaques para novembro no catálogo da Assírio & Alvim.
A aposta na poesia inédita portuguesa não será descurada neste último quadrimestre, graças à publicação de títulos como Fístula (Diniz Conefrey) A Flor Cadáver (Jorge Sousa Braga) Adrenalina Filipa Leal) O Centro da Terra (José Tolentino Mendonça).

LEITURAS PARA PEQUENAS CRIATURAS
Os mais jovens vão ter muito por onde escolher. O difícil vai ser decidir qual será a próxima leitura. Os títulos que vão integrar o catálogo da Porto Editora para as primeiras idades vão contribuir para que as crianças cresçam mais confiantes, felizes e cheias de imaginação.
As princesas mais corajosas, de Dolores Brown Sonja Wimmer, vem desconstruir a ideia tradicional sobre o que é ser uma princesa. Este é um conto que salienta e aplaude a diversidade existente na sociedade atual e lembra os leitores de todas as idades de que ser diferente não é mau. Aliás, é graças a essas características únicas que cada princesa é dona do seu destino.
Explicar às crianças o que é a morte e como lidar com o luto é uma daquelas conversas que os adultos tendem a evitar até ao último momento. O cometa avô é o primeiro livro de João Tedim e tem como objetivo ajudar grandes e pequenos a enfrentarem esta realidade.
Que atire a primeira pedra o adulto que nunca incentivou uma criança a despachar-se por estarem atrasados. Rápido, rápido, de Émile Chazerand Sandra de la Prada, é uma ternurenta história que traz um olhar divertido sobre a corrida interminável do dia a dia e que convida a fazer uma pausa e a aproveitar o tempo em família.
As mentes mais curiosas e apaixonadas por História vão ter a possibilidade de descobrir os dois primeiros títulos da divertida coleção Como sobreviver à História de Juan de Aragón. Como sobreviver na… Pré-História Como sobreviver… no Antigo Egito são guias de sobrevivência com ilustrações hilariantes e muitas dicas, curiosidades e factos interessantes sobre estes dois períodos da evolução mundial.
Está prestes a chegar a Portugal, o primeiro volume da série Criaturas Impossíveis, que recebeu a distinção Waterstones Book of The Year 2023 e nos British Book Awards venceu na categoria Livro Infantil do Ano e Autor do Ano. Katherine Rundell conta aqui as aventuras de Mal e Christopher que com a ajuda de seres incríveis, terão de enfrentar os seus medos em nome da salvação dos mundos que habitam: o mágico e o nosso."

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Além da Memória

Além da Memória
por Sebastian Barry
Capítulo Um
“Durante a década de sessenta, o velho Sr. Tomelty acrescentara uma extensão incongruente ao seu arremedo de castelo vitoriano. Era um anexo de dimensões modestas, mas com alguns detalhes agradáveis que o tornavam digno de acolher um hipotético membro da família. O trabalho de carpintaria, pelo menos, revelara‑se excelente. Uma das paredes estava coberta por um material a imitar madeira, com uma superfície envernizada que captava a luz e a fazia mudar de cor, para tons suaves de um castanho‑escuro.
Foi nestas acomodações, compostas por um minúsculo vestíbulo e um quarto com um bocadinho de eco, onde se acumulavam centenas de livros ainda dentro de caixotes, mais dois estojos de armas que guardara dos tempos passados no exército, que Tom Kettle «desembocou», para usar a sua expressão. Os livros relembravam, à revelia da vida atual, os seus antigos interesses. A história da Palestina, da Malásia britânica, antigas lendas irlandesas, deuses entretanto rejeitados, uma dúzia de assuntos aleatórios que em determinados momentos apelaram ao seu espírito inquisitivo. O som agitado do mar, por baixo da janela panorâmica, fora o atrativo inicial, mas tudo naquele lugar lhe agradava — a arquitetura pseudo‑gótica, incluindo o acastelamento inútil da linha do telhado, a geometria das sebes no jardim, que criava um espaço protegido do vento onde se podia apanhar sol, os pontões em granito meio desfeitos ao longo da costa, a ilha ali tão perto mas esquiva, até as condutas de esgoto em mau estado que derramavam o seu conteúdo no mar. As tranquilas poças criadas pelas marés recordavam‑lhe a criança facilmente impressionável que um dia tinha sido, há sessenta anos, em contraponto vagamente atormentador com o ruído distante das crianças de hoje, a brincar nos seus jardins invisíveis. O tormento vago era a sua especialidade, pensou. As cortinas de chuva, a claridade intensa, os pescadores, pobres heróis tentando trazer os seus barcos a remos até ao pequeno porto escavado na rocha, enquanto lutavam contra a corrente feroz, coisas tão puras e agradáveis como as que havia em New Ross, onde trabalhara como polícia quando era muito novo — tudo lhe parecia maravilhoso. Mesmo agora, em pleno inverno, quando a estação fria se mostrava apenas interessada em exibir a sua dureza hostil. Ele gostava de se sentar numa cadeira de verga desbotada pelo sol, mesmo no centro da sala de estar, pés apontados aos murmúrios da natureza lá fora, fumando as suas cigarrilhas. Observava os corvos‑marinhos alinhados nas rochas negras, para a esquerda da ilha. O seu vizinho, na vivenda que ficava mesmo ao lado do falso castelo, montara um suporte para a espingarda na varanda e por vezes, ao fim do dia, apontava aos corvos‑marinhos e às gaivotas, pobres aves inocentemente pousadas naquelas rochas, julgando‑se a salvo das atenções humanas. Algumas acabavam por tombar, como os patos de metal nas atrações de tiro ao alvo das feiras. E tombavam tão suavemente, tão tranquilamente, quanto um ser vivo pode tombar. Ele nunca se deslocara até à ilha mas, no verão, testemunhara a ida de alguns grupos de pessoas até lá, em botes. Os barqueiros inclinados sobre os remos, a corrente oferecendo resistência à quilha. Não participava em tais passeios, não queria fazer a curta viagem, limitava‑se a contemplar tudo de longe. O distanciamento bastava‑lhe. Para ele, o sentido da aposentação, e da sua nova existência, era mesmo esse: ficar imóvel, ao mesmo tempo feliz e inútil. Naquela tarde de fevereiro aparentemente calma, alguém bateu à porta e perturbou o sossego do seu ninho. Nos nove meses que vivera ali, ninguém o incomodara a não ser o carteiro e, numa certa ocasião, o Sr. Tomelty em pessoa, vestido com a sua roupa de jardinagem, a pedir uma chávena de açúcar, o que Tom não lhe conseguiu providenciar. A verdade é que nunca usava açúcar por sofrer de uma diabetes ligeira. Com exceção desse brevíssimo contacto, estivera sempre sozinho no seu reino e nos seus pensamentos. Embora fosse estranho formular as coisas desta maneira: a filha não o viera visitar pelo menos uma dúzia de vezes? Mas nunca se poderia dizer que Winnie o incomodava, e de qualquer modo tinha obrigação de conviver com ela. Já o filho nunca aparecia, nunca vinha até tão longe, não porque não quisesse, mas porque vivia e trabalhava no Novo México, perto da fronteira com o Arizona. Era um médico substituto num dos pueblos.
O Sr. Tomelty tinha segmentado a sua propriedade: o anexo onde Tom ficava, mais os aposentos para hóspedes no corpo do edifício, e também o Apartamento do Torreão, neste momento — e de súbito — ocupado por uma jovem mãe e o seu filho, que haviam chegado pouco antes do Natal, durante um dos raros nevões. Ninguém duvidava da eficiência do Sr. Tomelty enquanto senhorio. Era certamente rico, porque além desta propriedade, chamada Queenstown Castle, detinha um hotel imponente na marginal de Dunleary, o The Tomelty Arms, um nome com ressonâncias aristocráticas. Mas a sua aparência habitual, pelo menos na perspetiva de Tom, era a de um jardineiro curvado pela idade, a passar mesmo por baixo da janela panorâmica das traseiras, virada para o mar, como uma figura de um conto de fadas, empurrando um carrinho de mão que rangia. Durante o verão e o outono, o velho Sr. Tomelty andara à cata de ervas daninhas, arrancando‑as e atirando‑as para um monte de entulho que não parava de aumentar. Só o inverno lhe interrompera esta tarefa.
Ouviu‑se de novo o implacável bater de um punho contra a porta. E, como se não bastasse, o som da campainha, insistente. Tom levantou o corpo sólido e volumoso da cadeira, o mais rápido que conseguiu, como se obedecesse a um instinto de dever — ou, talvez, apenas à sua humanidade. Mas era também um obscuro incómodo para ele. Sim, habituara‑se a estar inativo e recatado, a gostar disso — talvez demasiado, pensou, uma vez que o sentido de dever ainda estava vivo dentro dele. Apesar de tudo, quarenta anos ao serviço da polícia não deixavam de ser quarenta anos ao serviço da polícia.
 Pela porta envidraçada, conseguia ver as silhuetas de dois homens, possivelmente envergando fatos escuros — mas era difícil ter a certeza, porque o grande rododendro, atrás deles, conferia‑lhes uma espécie de halo carregado, e de qualquer modo a luz do dia ia perdendo força. Estas eram as poucas semanas em que o rododendro floria verdadeiramente, apesar do vento e do frio e da chuva. Mesmo através do vidro fosco, Tom reconheceu o movimento de passar o peso de uma perna para a outra que as duas figuras estavam a fazer. Típico de pessoas com dúvidas quanto à forma como serão recebidas. Mórmones, talvez.
A porta da frente não assentava bem nos gonzos e a aresta inferior arranhava dramaticamente o chão. Havia uma lamentável marca em forma de leque nos mosaicos. Ele abriu a porta, que chiou, e para sua surpresa ali estavam dois jovens detetives da sua antiga divisão. Ficou perplexo, e um pouco alarmado, mas reconheceu‑os logo. Não se lembrou propriamente dos nomes, mas quase. Como não os reconhecer? Vestiam‑se à paisana de forma tão ostensiva que era como se gritassem o facto de não serem civis. Tinham a barba a despontar, característica dos homens que se levantam muito cedo, e havia neles algo que, gostasse ou não, o transportava para os seus primeiros tempos na polícia, tempos de uma improvável inocência. «Como é que vai, Sr. Kettle?», disse o que estava à direita, um rapaz grandalhão com um bigode que parecia ter sido posto ali com uma pincelada, vagamente hitleriano a bem dizer. «Espero que não o estejamos a incomodar.» «De modo nenhum, de modo nenhum, não incomodam nada, não incomodam nada», disse Tom, esforçando‑se ao máximo para disfarçar a mentira. «Sejam bem‑vindos. Há algum problema?» Muitas vezes coubera‑lhe transmitir o tipo de notícias que ninguém quer receber, batendo à porta de pessoas que estavam em suas casas — pessoas na privacidade das suas mentes, uma espécie de privacidade sonhada, à qual inevitavelmente só fora acrescentar problemas. Lembrava‑se dos rostos preocupados mas esperançosos, do choque ao ouvirem o que tinha para lhes dizer, por vezes o terrível choro. «Querem entrar?»
Eles queriam. Assim que transpuseram a porta, apresentaram‑se — o matulão disse chamar‑se Wilson; o outro, O’Casey —, apelidos que lhe diziam qualquer coisa, e trocaram frases de circunstância sobre o tempo péssimo e como aquele espaço parecia tão confortável — «é muito acolhedor», disse Wilson —, e depois Tom foi à cozinha fazer‑lhes chá. Era como se estivesse num barco. Pediu a Wilson que acendesse a luz, e este, depois de procurar durante uns momentos, encontrou o interruptor e obedeceu. A lâmpada, fraquinha, era só de quarenta watts, teria de fazer qualquer coisa quanto a isso. Tom pensou em pedir desculpa pelo facto de os livros ainda estarem nos caixotes, mas não disse nada. Então, os dois indivíduos sentaram‑se, quando ele lhes pediu que o fizessem, e dispararam as gentilezas profissionais do costume para trás e para diante através da cortina de contas de vidro que separava a sala da cozinha, com a naturalidade satisfeita de homens com uma profissão perigosa. Ser polícia tinha sempre um certo perigo associado, à semelhança da vida no mar. Eles mostravam‑se bastante à vontade com ele, mas também respeitosos, como exigia o antigo posto de Tom, e talvez também o facto de já não o exercer.
Enquanto os dois homens falavam, Tom sentiu‑se agradecido aos deuses por decidirem que aquele falso castelo a contemplar ocasionalmente o mar escuro de chumbo seria agora tomado, pouco a pouco, por uma escuridão ainda mais densa. Eram quatro da tarde e já caía a noite, levando tudo consigo, até que só as luzinhas ténues dos candeeiros em Coliemore Harbour conseguissem refletir‑se até uns quantos metros água adentro, salpicando as ondas sombrias. O farol de Muglins, para lá da ilha, iluminar‑se‑ia em breve, e mais longe ainda, já fora do círculo dos lugares conhecidos, distante no horizonte, o farol de Kish começaria a exibir a sua luz poderosa, varrendo laboriosamente as profundas extensões. Pensou nos peixes lá em baixo, agitando‑se como miúdos de rua, pelas esquinas. Haveria botos nesta altura do ano? Talvez só congros, enrolando‑se na escuridão. Peixes escamudos com os seus corpos plúmbeos e uma certa indiferença ao facto de os pescarem, como se fossem criminosos falhados.
Não demorou muito para que as três chávenas e o bule fossem dispostos numa velha mesa de apoio indiana, que Tom ganhara num torneio de golfe, há muito tempo. Os jogadores verdadeiramente bons, como Jimmy Benson e aquele outro, como é que se chamava, McCutcheon ou algo assim, tinham desistido, com gripe, por isso o seu escasso talento fora mais do que suficiente naquele dia. Ao pensar nisso, ele sorria sempre, mas não agora. Àquela luz, o tabuleiro de níquel até parecia de prata. Tom estava ligeiramente preocupado por não ter açúcar para lhes oferecer.”
Sebastian Barry , in Além da Memória , Relógio D’Água Editores, Junho de 2024, pp.11-15
Sobre o livro
"Tom Kettle reformou-se da polícia e prepara-se para passar uma vida tranquila na sua nova casa, o anexo de um castelo vitoriano com vista para o mar da Irlanda.
Durante meses, vê apenas alguns habitantes do lugar e cruza-se ocasionalmente com o seu excêntrico senhorio e uma jovem mãe que se mudou para uma residência contígua à sua. De quando em vez, recorda a família, a sua amada mulher, June, e os seus dois filhos, Winnie e Joe.
Quando dois antigos colegas chegam a sua casa com perguntas sobre um caso ocorrido décadas antes, sente-se arrastado por obscuras correntes do seu passado.
Trata-se de um romance em que nada é o que parece. Além da Memória fala de coisas a que sobrevivemos, daquelas que temos de viver e também das que é possível que nos sobrevivam. 
Além da Memória  foi nomeado para o Booker Prize 2023
 
«Um romance inesquecível por um dos nossos mais subtis escritores.»
[Douglas Stuart]
«Ler Sebastian Barry é uma experiência quase milagrosa.»
[The Guardian]
«Ninguém escreve como, ninguém arrisca como, ninguém vai aos limites da linguagem — e ao seu coração — como Sebastian Barry.»
[Ali Smith]
«Uma obra-prima.» [Sunday Times]
«Extraordinário.» [Irish Times]
Sebastian Barry
Sobre o autor:
Sebastian Barry é um romancista, dramaturgo e poeta irlandês. Foi nomeado e  Laureado para a Ficção Irlandesa (2018-2021).
Foi duas vezes finalista do Man Booker Prize pelos seus romances A Long Long Way (2005) e Escritos Secretos (2008), tendo este último obtido o Costa Award de Livro do Ano de 2008 e o James Tait Black Memorial Prize.
O seu romance de 2011, Do Lado de Canaã, foi nomeado para o Booker Prize.
Em janeiro de 2017, Barry recebeu o Costa Award de Livro do Ano por Dias sem Fim, tornando-se o primeiro romancista a vencer este galardão duas vezes.
Título: Além da Memória  
Autor.: Sebastian Barry
Categoria: Ficção
Tradução: José Mário Silva
Data de publicação: 03/06/2024
Nº de páginas: 248
Acabamento: capa mole
Preço: 18,00€ 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Correr nas mãos do vento

 «Este é o tempo das utopias. É isso mesmo.
"A utopia está lá no horizonte.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.", 
                    Eduardo Galeano

Veleiro
 
Mar  afora, mar adentro
lá  vai singrando um veleiro
quem dera ser passageiro
pra correr nas mãos do vento.
 
Mar adentro, mar afora
Como navega ligeiro
Cruzando este golfo inteiro
Nas cores vivas da aurora…
 
Aonde vais assim tão cedo
rumo à ilha do Arvoredo,
levando meu coração…?
 
Vou navegando contigo
meus olhos te seguem, amigo
perdidos na imensidão.
                       Baía de Zimbros, Janeiro de 2005
Manoel de Andrade, in  “ Cantares”, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil 2007

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Viajar

 

Viajar
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
20-9-1933
Fernando Pessoa, in  Poesias. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995)

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Outono

Ute Lemper - Les Feuilles Mortes (Live Prague 2017)
 
É outono. E é Verlaine... O Velho Outono
Ou o Velho Poeta atira-me à janela
Uma das muitas folhas amarelas
De que ele é o dispersivo dono...
 
E há uns salgueiros a pender de sono
Sobre um fundo de pálida aquarela.
E há (está previsto) este abandono...
Ó velhas rimas! É acabar com elas!
 
Mas o Outono apanha-as... E, sutil,
Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil,
Toca de novo o seu fatal motivo:
 
Um quê de melancólico e solene
— E para todo o sempre evocativo —
Na frauta enferrujada de Verlaine...
Mario Quintana, in A Rua dos Cataventos, 1940, Globo editores


Léo Ferré - Chanson d'autonme
Chanson d’automne

Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure

Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.
Paul Verlaine, in Poèmes saturniens, Folio

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Notas de Viagem


 
Notas de Viagem
por Eugénio Lisboa
 
Viajar é quase como conversar com
homens de outros séculos.
    Descartes
 
"Em 1989 e, depois, até à minha saída de Londres, em 1995, viajei muito, quase sempre “em serviço”, isto é, não em liberdade de turista, que deambula sem programa.
Viajar não é necessariamente um ganho. Pode até ser um desperdício, uma futilidade, uma falsa aprendizagem, uma chatice. O filósofo americano Henry David Thoreau avisava que “não vale a pena dar a volta ao mundo, para contar o número de gatos que há em Zanzibar.” E um outro senhor, Emile Ganest, escreveu esta coisa imortal e já citada um milhão de vezes pelos que se chatearam em viagem: “Um turista é um fulano que faz milhares de milhas de automóvel, para se fazer fotografar à frente do carro.” Eu felicito-me por não ser esta espécie de viajante. Andei por todo o mundo e tirei disso prazer fundo e vasto proveito. Vi cidades, campos  (“eram campos, campos, campos…”, diz o Manuel da Fonseca, algures, num poema seu…), montanhas, praias. Sobretudo, cidades: é onde gosto de ir porque é onde estão as coisas de que gosto: teatros, cinemas, galerias, museus, salas de concerto, livros. A Rose Macauley, que andou por Portugal, observava: “A grande e recorrente questão no que toca o estrangeiro é: vale a pena ir lá?” A resposta que eu dou, para quase todas as minhas viagens, é: “Sim, valeu a pena.” (Tive a sorte de nunca ter ido à Albânia…)
Em 1989, estive em Zurique, em Lisboa, em Portalegre, em Nápoles e no Maputo. Transcrevo algumas páginas dos meus apontamentos diários, relativos a estas viagens.
Zurique
ZURIQUE
 
28.1.89 – Desde o dia 26, em Zurique. Instalado nos Arquivos de Thomas Mann, que ontem de manhã percorri – não sem emoção. Neste mesmo edifício, esteve Goethe que, mal aqui chegou, dizem, abriu as janelas.. Livros e manuscritos do “mágico”. Cartas, caricaturas. A sua secretária e uma das suas cadeiras. Tudo legado a Zurique, última etapa do percurso  do autor de Tonio Kröger – obra que tanto perturbou e iluminou a minha adolescência.
Ontem, dois seminários sobre Régio, na Universidade. Alunos atentos, estimulados e interessantes – num excelente português. Os seminários interessaram-lhes vivamente – não se trata de “wishful thinking”. Vieram dizer-me, no fim, que tinham ficado impressionados com tanta clareza e com a riqueza dos pontos de vista. Tentar ver claro é um dos meus objectivos. Citei-lhes Wittgenstein: o que não se consegue dizer com clareza não merece ser dito.
Zurique tem “charme”. Mas é uma terra para gente com dinheiro. Que conforto! Até dos eléctricos se pode dizer que são de luxo.
Ontem à noite, convidado por um casal suíço, jantei com eles, na companhia da leitora (Maria Isabel Ravara, excelente promotora de cultura portuguesa and a very nice person) e outro casal português residente na Suíça. Restaurante magnífico, acolhedor, outrora frequentado pelo escritor suíço Gottfried Keller. Contaram-me, dele, uma história saborosa. Keller bebia o seu bocado (o que o não impediu de se tornar um clássico) e era, ao tempo, uma figura conhecidíssima, em Zurique. Uma noite, um bocadinho “tocado”, a caminho de casa, dirigiu-se a um polícia e perguntou-lhe: “Sabe dizer-me onde fica a casa de Gottfried Keller?” O polícia olhou para ele, perplexo, e exclamou: “Mas o Senhor é Gottfried Keller…” Resposta do escritor: “Disso, ainda me lembro. Do que não me lembro é do sítio onde fica a minha casa…”
Visita à exposição de Egon Schiele, na Kunsthaus. Se a hecatombe da Europa se não tivesse dado em 1914, teria sido mal empregada tanta profecia de fim iminente. O nosso apocalipse está ali todo, previsto para quem queira servir-se. (…)
Lembro-me de o Mário Botas me dizer, em Londres, que admirava muito o Egon Schiele. Percebe-se porquê: a pintura do Botas deve imenso à do Schiele. De ambos se exala, em vida, uma podridão de morte. Os casais de Schiele não fazem amor: apodrecem abraçados, com um ar de espanto mitigado.
Lisboa
LISBOA
 
5.2.89 – Na passada semana, no regresso de Zurique, 3 dias em Lisboa. A minha visita coincidiu com o falecimento do Fernando Namora. Era para ir vê-lo na 2ª feira à tarde (dia 30), mas, por inviabilidade da Zita, marquei para o fim da tarde de terça feira. Já não foi possível porque morreu nesse dia, ao meio dia e quarenta. Isto é, já não o vi com vida. De certo modo, ainda bem. De Dezembro para cá, a devastação física deve ter sido considerável. (…) Fui à Basílica da Estrela, na terça feira, por volta das seis: ali se encontrava o caixão, aberto, suficientemente alto, para não se ver o morto. A Zita perguntou-me: “Quer vê-lo?”, ao que respondi, prontamente: “Não.” Ela percebeu e aceitou.
Os nossos jornalistas são ou autênticos pulhas ou irremediavelmente estúpidos. Foram pedir, of all people, ao Vergílio Ferreira, um depoimento. Depois de tudo quanto, entre ele e o Namora, se passou, não podiam ter escolhido pior. Aliás, o depoimento do Vergílio Ferreira, no que respeita ao que o futuro dirá da obra do companheiro do neo-realismo, é um monumento de perfídia.
Ao chegar a Londres, telefonema do Telegraph, a pedirem-me um obituário. Tentaram, primeiro, o Hélder Macedo, que me passou a bola. Para ele, o Namora não bebia do fino. Marxismo, sim, mas devagar: Vasco Gonçalves com perdizes e champagne. (…) É curioso o desprezo dos nossos intelectuais de esquerda pelos escritores de esquerda, que o povo ama e venera! No Ferreira de Castro, no Redol, no Namora [e, mesmo, um bocado, no Torga]  - é malhar, sem piedade! Falta-lhes “chic”, um ingrediente obrigatório, como se sabe, da esquerda exigente… (…) 
Em Lisboa, fui ao Nacional ver o Fausto, do Pessoa. Tirando o cenário do Lagarto (notável), o resto é uma estopada monumental, que o Estado vai mandar a Madrid e quereria levar a Edimburgo (os deuses não permitam). O Ricardo Pais é um bluff considerável, mas muito apaparicado. Das suas encenações, retenho sempre – e sobretudo – a impressão de um incomensurável arbitrário. (…)
Vou lendo Camilo e coisas sobre Camilo, com vista à redacção de uma “entrada” para o meu Dicionário. Fiquei com quase todos os peixes graúdos: Camilo, Antero, Fialho, Pascoaes, Pessoa, Cortesão… Mas também com alguns menores, que me sabe bem fazer: Augusto de Castro, Júlio Dantas, José Duro, etc. Tudo gente em quem o Vergílio Ferreira não pegaria, nem com pinças: para ele, nada abaixo de Ésquilo ou Dante. Cada um mede-se com quem julga que pode! (Mas ele pegou no Sartre, convencido de que era peixe graúdo…)
O Vasco Pulido Valente e outros profetas do nosso mundinho cultural especializam-se numa espécie de estilo apocalíptico: passam por cima das coisas, deixando tudo incinerado. O assalto é tão brutal e tão demolidor, que todo o mundo se encolhe. E aquilo, como faz estragos e ruído, passa, aos olhos estarrecidos do lusíada superficial e papalvo, por inteligência. É, pelo menos, de momento, a inteligência que está de serviço. Como diz não sei quem, “wrong but strong”.
 
PORTALEGRE
 
9.4.89 – (…) Saiu mais um livro meu, sobre o Régio [José Régio ou A Confissão Relutante], com algum ruído e televisão pelo meio (entrevista de meia hora). Fui a Portalegre para participar numa sessão dedicada ao Régio e inserida na “semana aberta” do Presidente Mário Soares. Lá li um poema que dediquei a Maria Barroso, inesquecível intérprete de Benilde. Em Lisboa houvera, como disse, lançamento do livro, na Livraria Barata, com televisão a registar. Tudo bem. Mas a crítica, como de costume, vai ser pouca ou nenhuma. Acabo de dar uma entrevista ao Europeu, a pretexto da saída do livro: lavagem do fígado, dizendo tudo com um desbocamento que não é de uso entre “diplomatas”… A entrevista não me vai, é claro, fazer nenhum bem. Mas, também, o mal que me pode fazer já não é nenhum. Maior desatenção do que aquela que me têm prestado já não é possível. Curiosamente – e por falar em desatenção – andei a ler, para fins prefaciais e de publicação, o Diário (manuscrito) do Régio. Ali se queixa, alongada e minuciosamente, da pifieza da crítica portuguesa, relativamente à sua obra, em especial à de ficcionista e, muito em particular, à Velha Casa. O que é um facto. Quem ler aquilo e se lembrar da glória de que o Régio, apesar de tudo desfrutou [desde relativamente cedo], vai falar de narcisismo e exagero. E, no entanto, ele tem razão. Em Portugal, a glória pode não significar uma atenção crítica continuada, meticulosa e profunda. As pessoas tornam-se famosas “by word of mouth”, sem que, muitas vezes, se cheguem a saber que o são ou por que o são.
O que o Régio demonstra, mais uma vez, no seu Diário – e de modo fulgurante e, por vezes, assustador – é o seu espantoso poder de penetração psicológica.
Outro ponto me surpreendeu: não notara, em nenhum outro ponto da sua obra, ou mesmo em conversa com ele, que a irresolução do problema religioso fosse tão profunda. Supusera que o seu cair para o agnosticismo fosse francamente mais decisivo. Foi-o, intelectualmente. Também sabia que, emotivamente, sempre se “consolara”, pensando em ou dirigindo-se a Deus. Mas não o supusera capaz  de se ajoelhar e rezar Padres-Nossos, como se esse ritual pudesse fazer sentido [sem o resto]… Não que isso o diminua: eu simplesmente não o imaginara. (Isto mostra como, até num homem superiormente inteligente, a inteligência pode vergar-se a forças obscuras!)
Outra coisa que aconteceu nestes últimos meses: o Congresso dos Escritores de Língua Portuguesa. Muito escritor não foi lá. Suponho que o Congresso, por qualquer razão bizantina, não era “in”. Qualquer coisa nesse género. Mas gostei de lá encontrar os meus compatriotas de Moçambique. Estragaram-me com mimos. Às vezes, sabe bem verificar que ter sido antipaticamente honesto, durante tantos anos que lá vivi, deu os seus frutos. Dizem-me que a minha Crónica dos Anos da Peste (dois volumes) é lá uma espécie de bíblia muito disputada. Talvez isso justifique, afinal, uma segunda edição… [2014: Essa segunda edição foi feita, em 1996, pela IN-CM].
Nápoles
NÁPOLES
 
24.9.89 – Nápoles. Ontem, visita a Herculano. Duas horas e meia entre fantasmas, entre opulências que foram e já não são. A vida corria normal, ao pé do mar. Dezoito horas depois, tudo eram ruínas e uma cidade fantasma para turistas-a-haver. 
(...)

1.5.89 – Ontem, visita a Amalfi. Costa deslumbrante, mesmo debaixo de chuva.
Tenho descansado, dormido e lido, como há muito não fazia. E um ou outro poema, sob o impacto de Herculano. Amanhã, se o tempo deixar, Pompeia.
 
Leio contos de Peter Ustinov. Releitura da Poética da Música, de Stravinsky, como preparação para as lições que vou dar em Lourenço Marques, no final do mês.
Hoje, de manhã, passeio pelas ruas de Portici. Os homens reúnem-se no meio das praças, de pé, aos grupos, falando e convivendo. Inconcebível, para ingleses, para quem o convívio é no “pub”, emborcando quantidades inimagináveis de cerveja.
Em Itália e, em especial, em Nápoles, como em Portugal, a mãe é fundamental: é mesmo o centro do universo. Nos países nórdicos, a mãe é descartável. É um obstáculo a remover – e a remover, cedo. 
Stravinsky diz mais ou menos isto, com que estou de acordo: as revoluções destroem. E a arte é, por definição, construção. Falar de arte revolucionária é um contra-senso. Inovação é uma coisa; a audácia é uma coisa; a revolução é outra.
 
3.5.89 – Ontem, visita a Pompeia. Ruínas, ruínas, ruínas. Turistas, turistas, turistas (sobretudo alemães: intensos, meticulosos, sem humor, barulhentos). Talvez por haver tanta gente, o passado não entrou em mim com a mesma força que se verificara em Herculano (nessa visita, estávamos apenas eu e a Antonieta). Excepto num ou noutro momento privilegiado, em que o espectro de uma cidade morta se projectou contra o plúmbeo vivo das colinas em volta. Aí, a magia voltou: uma magia fúnebre, a um tempo ameaçadora e atraente. (Um anfiteatro que já não funciona; um teatro onde já se não representa: imagem do imenso desperdício que é a aventura humana. Ter imaginado; ter construído; e ter abandonado.)
Hoje, irei ver Nápoles, mais de perto.
Em Nápoles, a manhã toda e parte da tarde. Almoço num restaurante junto ao Castelo de S. Elmo. Passeio pelas ruas, visita aos claustros da Igreja de Sta. Clara. Igreja de Jesus Novo. Livros: J. L. Borges, Giono (Voyage en Italie).

Nápoles: bela, a baía, as colinas, o Vesúvio. Pouca luz, hoje, apesar das gabarolices dos napolitanos.
Stendhal, falando da cidade: “c’est, sans comparaison, la plus belle ville de l’univers”. Os napolitanos estão de acordo com veemência. Alguns nunca daqui saem , a não ser   para breves férias, ainda mais ao sul (e sempre em Itália). Têm um paraíso que não trocam por aventuras incertas. Parecem ter pena da humanidade que vive fora de Nápoles. Goethe dizia que o napolitano está convencido de estar na posse do paraíso, tendo, portanto, uma triste ideia das terras mais ao norte: “Sempre neve, case di legno, gran ignoranza, ma danari assai” (“Sempre neve, casas de madeira, grande ignorância, mas dinheiro em abundância”).
Claude Roy, falando de Pompeia, sem solenidade: “La vulgarité romaine et l’Ange de la mort par les cendres et la cave. Ils allaient mourir, et buvaient, bâfraient, baisaient. Le rond des gobelets sur le comptoir du marchand de vin, qui n’a pas eu le temps de passer le torchon humide. Bonne humeur déjà italienne. Pompée c’est du Pagnol sur fond de chants fúnebres.” (“A vulgaridade romana e o Anjo da morte pelas cinzas e a cave. Iam morrer, e bebiam, empanzinavam, fornicavam. A marca circular do fundo dos copos no balcão do comerciante de vinhos, que não teve tempo de limpar com o esfregão húmido. Bom humor, já italiano. Pompeia é [Marcel] Pagnol sobre fundo de cantos fúnebres”). Isto  é escrito por um homem [Roy], com um diagnóstico de cancro, isto é, com morte pendente e à vista. Chapeau bas!
A comida: os napolitanos comem o dobro do que é necessário. Depois de uma pasta abundante (aperitivo), vai um bife suculento, acompanhado de incomensuráveis frituras. Sobremesa: que tal um bom e avultado gelado? A vida é uma alegria. Tudo rima com tudo e a mamã está ali para o que der e vier. Se, logo à noite, o Nápoles bater o Stutgard (em futebol), Deus existe e o universo está certinho.
De Nápoles, Flaubert guarda recordações diferentes (talvez Deus não exista assim tanto…) e mais picantes: “On m’a proposé des petites filles de dix ans, oui, monsieur, des enfants de bas âge, dont les nourrices sont sans doute en même temps les maquerelles. On m’a même proposé des mômes, Ô mon ami. Mais j’ai refusé.” (Carta a Camille Rogier, 11.3.1851).
Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula. Memórias - IV - Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo . Londres .( 1976-1995)", Editora Opera Omnia, Outubro de 2014,  pp.399-406