A clareza é a boa fé dos filósofos.Vauvenargues
“A clareza de escrita não é um dos valores mais
prezados pela classe intelectual e não o é, em especial, por muitos
universitários que refugiam a sua ignorância sob o véu de um estilo opaco,
obscuro e contrafeito. Coisa de má fé, se tem razão o amável filósofo
Vauvenargues, citado em epígrafe. Dizer coisas importantes com grande
simplicidade, como fazem filósofos (Russell) ou cientistas (Jean Rostand,
admirável pensador aforista, na linha dos grandes do passado), parece coisa de
simplórios, aos convicto cultores do opaco.
As dissertações académicas costumam ter horror à
clareza, como se esta não estivesse à altura da majestade do empreendimento:
como se a clareza e a simplicidade da formulação fossem coisa de saloios. Nunca
me esquecerei de um episódio passado com uma ex-aluna minha, da Universidade de
Lourenço Marques. Já a viver em Lisboa, resolveu doutorar-se e, um dia,
pediu-me que lesse e comentasse parte da dissertação que já tinha escrito. A certa
altura, encrespei-me com certa passagem muito tortuosa e obscura e observei-lhe:
“O que quer V. dizer com isto?” Ela imediatamente o esclareceu, o que me levou
a perguntar-lhe: “Se V. o sabia dizer assim, por que o não disse?” ao que
respondeu, meio enxofrada: “Também V. não tolera o mais pequeno teor de
opacidade…” Respondi-lhe que a opacidade não era, em si, um valor. E que só se
admitia, quando não houvesse alternativa. E o não haver alternativa tinha muito
que se lhe dissesse. Wittgenstein era de opinião que, se um pensamento não
conseguia ser exprimido de forma clara e simples, era por não estar ainda
suficientemente amadurecido. O grande físico dinamarquês, Niels Bohr, era
acutilantemente categórico: “Verdade e clareza são complementares.”
A clareza tem tido os seus campeões, desde
Aristóteles (“A primeira qualidade do estilo é a clareza”), passando por
Galileu (“Falar obscuramente, qualquer um sabe, com clareza, raríssimos”), por
Leibnitz (“No mundo do espírito, busque clareza, no mundo material, busque
utilidade”), por Voltaire, que frequentemente a exaltou e admiravelmente a
praticou, por Anattole France, herdeiro refinado de Voltaire (“Um bom estilo,
afinal, é como um raio de luz que entra pela minha janela no momento em que
escrevo, e que deve a sua clareza à união das sete cores das quais é composto.
O estilo simples é parecido com a claridade branca”), Jean Cocteau (“Escrever é
batermo-nos com tinta, para nos fazermos entender”), até Camus (“Os que
escrevem com clareza têm leitores, os que escrevem de maneira obscura têm
comentadores”).
Pela parte que me toca, a clareza sempre me
fascinou, desde a leitura de bons mestres que li na minha adolescência:
Voltaire, Stendhal, Montaigne, António Vieira, António Sérgio, José Régio,
entre outros. E passei a desconfiar de grossa batota, nos cultores do opaco e
do obscuro. Algo me parecia torto, no espírito daqueles que escreviam torto. E
nunca me arrependi. Tentei sempre ser claro com os meus alunos e com os meus
leitores. Grandes cientistas são frequentemente belos escritores. Não perco um
livro de ensaios de Peter Medawar, o fundador da imunologia, tal a elegância e
claridade das suas formulações.
Jean Rostand, o investigador das rãs, é um admirável
cultor da claridade da linguagem e um dos grandes pensadores aforistas da
língua francesa. Dito isto, tenho más notícias para dar. A minha experiência
com a publicação de textos neste blog (blog DRN)1, tem-me tornado cada vez mais céptico,
acerca dos benefícios ou vantagens da clareza. Procuro ser o mais claro
possível, naquilo que escrevo. Mas noventa por cento dos meus comentadores vêem
preto onde está branco e branco onde está preto. A luz que o texto emite não os
afecta: não conseguem ler o que está no texto, porque olham apenas com os
óculos da ignorância ou do preconceito ou mesmo da má fé. Para eles, a clareza
é um desperdício. Se eu disser que Tolstoi foi um enorme escritor, mas um ser
humano complexo e com grandes defeitos (coisa que qualquer biografia documenta
e sobre a qual há milhares de páginas de comentário publicadas), acusam-me de
estar a faltar à verdade ou de ser contra a Rússia…
Não há dúvida, para estes zarolhos, o branco é
preto. Eis um debate interessante: quais os poderes da clareza, num universo em
que a deseducação em massa impera? É isto que sai das escolas: a incapacidade
de ler direitinho? A ignorância contente e atrevida? A má fé como instrumento
de trabalho? A total falta de respeito pelo saber de quem sabe? A lisinha falta
de civismo? Foi para isto que quisemos uma democracia esclarecida? Vale a pena
meditar em tudo isto e dou-o, com humildade, aos pais dos alunos, aos professores
e ao próximo ministro da educação.”
Eugénio Lisboa, 03.03.2024
1 - ( nota de LP)
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