sábado, 11 de maio de 2024

TARASS BULBA

TARASS BULBA
por  Nikolai Gógol
I
 
“— Ora vira‑te para cá, filho! Que cómico que tu estás! Que sotainas de padre são essas que vocês trazem? É assim que andam todos lá na academia?
Foi com estas palavras que o velho Bulba recebeu os dois filhos, que haviam estudado no seminário em Kiev e que voltavam para casa do pai. Os filhos acabavam de desmontar dos cavalos. Eram dois jovens alentados, que ainda olhavam de soslaio, como dois seminaristas acabados de formar. Os seus rostos vigorosos, saudáveis, estavam cobertos das primeiras penugens da barba, ainda não tocadas pela navalha de barbear. Muito embaraçados por serem recebidos desta maneira pelo pai, mantinham‑se imóveis, de olhos pregados no chão.
— Deixem‑se estar, deixem‑se estar! Deixem‑me olhar bem para vocês — continuou o velho, virando‑os. — Que longas sotainas! Que sotainas! Pensei que não existiam sotainas como essas neste mundo. Estou a olhar, a ver se elas não vos caem, se não se arrastam pelo chão.
— Não te rias, não te rias, paizinho! — disse, por fim, o mais velho dos dois.
— Olha tu, que pomposo! Porque é que não hei de rir?
— Porque, embora sejas meu pai, se te ris de mim, palavra que te bato!
— Ai, que filho me saíste! Como assim, bater no teu pai? — disse Tarass Bulba, recuando alguns passos, surpreendido.
— Ainda que sejas meu pai. Por uma ofensa, não olho nem respeito ninguém.
 — E como é que tu queres lutar comigo, com os punhos? — De qualquer maneira. — Bem, pois seja com os punhos! — replicou Tarass Bulba arregaçando as mangas. — A ver que homem és tu com os punhos.
E pai e filho, ao fim de uma longa separação, em vez de se saudarem, puseram‑se a desferir murros um no outro, nos flancos, na cintura e no peito, ora recuando e observando, ora voltando a atacar.
— Vejam, boa gente. O velho endoideceu! Perdeu completamente o juízo! — dizia a mãe, pálida, magra e bondosa, de pé à porta de casa, que nem conseguira abraçar os seus filhos. — Vêm os filhos para casa, não os víamos há mais de um ano, e ele deu‑ ‑lhe para fazer sabe‑se lá o quê: lutar aos murros.
 - Mas ele luta muito bem! — dizia Bulba. — Muito bem, palavra! — continuou, recompondo‑se um pouco e parando. — De tal maneira que o melhor é não experimentar! Vai ser um bom cossaco! Ora muito bem, filho! Beijemo‑nos! — E o pai e o filho trocaram beijos. — Muito bem, meu filho! É assim que deves bater a qualquer um, como me surraste. Não desculpes ninguém! Em todo o caso, tens uma vestimenta ridícula: que corda é essa aí pendurada? E tu, palerma, para que estás aí parado, de braços caídos? — disse ele, dirigindo‑se ao filho mais novo. — Filho de um cão, não me dás uns murros?
— Vejam só do que mais se havia de lembrar! — dizia a mãe, que, entretanto, abraçava o mais novo. — Que o filho batesse no pai. Ao que isto chegou agora, que um filho jovem, cansado depois de percorrer um tão longo caminho… (este filho tinha um pouco mais de vinte anos e apenas uma braça de altura), o que precisava agora era de dormir e comer alguma coisa, e ele obriga‑o a lutar!
— Ei, mas, ao que vejo, tu és um maricas! — disse Bulba. — Não dês ouvidos ao que a tua mãe diz, filho: ela é mulher, não sabe nada. De que carinho é que vocês precisam? O vosso carinho é um campo aberto e um cavalo: esse é que é o vosso carinho! E estão a ver esta espada? Esta é a vossa mãe! E isso com que vos enchem a cabeça, são disparates: as academias, e todos esses livros, essas cartilhas, e as filosofias, tudo é lixo! Isso não me podia interessar menos! — Neste momento, Bulba soltou uma palavra que nem se deve pôr por escrito. — O melhor é que já na próxima semana eu vos mande para Zaporójie. Ali é que está a ciência. Essa é que é a vossa escola; só ali vocês ganharão juízo.
 — E vão ficar em casa só uma semana? — disse a velha mãe, lamentosa, com as lágrimas nos olhos. — Nem têm tempo para se divertir um pouco, nem para conhecer a casa paterna, nem eu tenho tempo para olhar bem para eles!
- Chega de gemer, velha, já chega! Um cossaco não é para andar atrás das mulheres. Tu querias era escondê‑los aos dois debaixo da saia e ficar sentada em cima deles, como a galinha em cima dos ovos. Anda lá, anda lá, vai‑nos pôr a mesa com tudo o que temos. Não precisamos de filhós, nem de bolos de mel, de papoila ou outras delicadezas; traz‑nos carneiro e hidromel! E vodca com fartura, não poupar na vodca, mas de branca espuma, para que espumeje e fervilhe como doida.
Bulba conduziu os filhos para a sala de visitas, de onde saíram a correr duas bonitas criadas, vestidas de vermelho, que estavam a arrumar as salas. Pelos vistos, assustaram‑se com a chegada dos jovens senhores, não gostavam de deixar entrar ninguém, ou simplesmente queriam manter o seu costume feminino: gritar e fugir à pressa, ao ver um homem, e depois ficarem longamente a espreitar, cobrindo‑se com a manga do vestido. A saleta estava decorada ao gosto daquela época — de que restam vivos indícios apenas nas canções e nas baladas populares, que já não são cantadas na Ucrânia por velhos barbudos e cegos, acompanhadas por uma bandurra dedilhada, diante do povo em redor — ao gosto daqueles tempos guerreiros, difíceis, em que começaram a desencadear‑se na Ucrânia as pelejas e batalhas pela união*. Tudo era limpo, pintado em cores claras. Nas paredes havia espadas, látegos, redes para pássaros, redes para pesca, espingardas, um chifre muito bem preparado para a pólvora, um freio dourado para o cavalo e peias com chapas de prata. As janelas da sala eram pequenas, com vidraças redondas e baças, como as que hoje só se encontram nas velhas igrejas e através das quais só era possível olhar soerguendo os vidros móveis. Em torno das janelas e das portas havia faixas vermelhas pintadas. E sobre as prateleiras, aos cantos, jarras, garrafas e frascos de vidro verde e azul, taças de prata lavrada, cálices dourados de toda a espécie: venezianos, turcos, circassianos, que foram parar à sala de Bulba de maneiras várias, através de segundas, terceiras e quartas mãos, o que era habitual naqueles tempos distantes. Havia bancos de entrecasca de bétula a toda a volta da sala; ao canto anterior, uma mesa respeitável sob os ícones; um grande fogão, decorado com azulejos de padrões multicores em relevo. Tudo isto era muito bem conhecido dos dois jovens, acostumados a voltar a casa todos os anos nas férias escolares, a pé, porque ainda não tinham cavalos e porque habitualmente não era permitido aos alunos viajarem a cavalo. Tinham apenas longas madeixas, pelas quais qualquer cossaco armado lhes podia puxar. Só quando eles terminaram o curso, Bulba lhes enviou da sua manada uma parelha de jovens garanhões.
Para festejar o regresso dos filhos, Bulba mandou reunir todo o esquadrão e todos os graduados do regimento que estivessem disponíveis, e quando chegaram dois deles com o capitão Dmitro Tovkatch, seu velho camarada, apresentou‑lhe de imediato os filhos, dizendo «Ora vejam, que rapagões! Vou mandá‑los à Sietch**, não tarda nada». Os convidados deram os parabéns a Bulba e aos dois jovens e disseram‑lhes que essa era uma boa decisão, e que não havia melhor ciência para um jovem do que a fortaleza de Zaporójie.
— Ora bem, meus senhores e irmãos, sentai‑vos à mesa, cada qual onde achar melhor. Bem, filhos! Antes de mais nada, bebamos uma pinga de vodca! — disse Bulba. — Deus nos abençoe! Saúde, meus filhos: tu, Ostap, e tu, Andrei! Deus permita que sejam sempre bem‑sucedidos na guerra! Que derrotem sempre os infiéis, os turcos e os tártaros, quando eles começarem a tramar ações contra a nossa fé. Vá, ergue o teu cálice; que tal, é uma boa vodca? E como se diz vodca em latim? Ora bem, os latinos eram uns tolos: nem sabiam que havia vodca no mundo. Como é que se chamava aquele que escrevia versos em latim? Eu não sou lá muito letrado, por isso não sei: Horácio, não era?
 «Vejam como é o pai!», pensou para consigo o filho mais velho, Ostap. «Sabe tudo, o velho cão, e ainda se finge ignorante.»
 — Penso que o arquimandrita não vos dava vodca nem a cheirar — confirmou Tarass. — Mas confessem, filhos, que vos açoitaram bem com varas de bétula e de ginjeira nas costas e em tudo o que um cossaco tem. Ou talvez, quando se tornaram demasiado espertos, vos tenham surrado com o látego; provavelmente, não apenas aos sábados, mas também às quartas e quintas‑feiras?
 — Não há nada para lembrar, paizinho — respondeu Ostap. — O que houve já passou!
— Que experimentem agora — disse Andrei, que alguém tente agora experimentar; que algum tártaro experimente agora, e ficará a saber o que é um sabre cossaco!
 — Está bem, filho! Muito bem, palavra! Mas quando chegarmos a isso, eu próprio irei convosco! Palavra que vou. De que diabo fico eu aqui à espera? Havia de ficar para aqui como um agricultor, a olhar pela casa e cuidar das ovelhas e dos porcos e atrás das saias da mulher? Que vão para o diabo: eu sou um cossaco, não quero isso! E o que tem que não haja guerra? Vou com vocês para Zaporójie, dar um passeio; palavra que vou! — E o velho Bulba excitou‑se pouco a pouco, excitou‑se, e finalmente irritou‑se por completo, levantou‑se da mesa e, armado em valente, bateu o pé. — Amanhã mesmo partimos! Porquê adiar? De que inimigo podemos ficar aqui à espera? Para que precisamos desta cabana? Para que queremos tudo isto? Para que queremos estes potes? — Dizendo estas palavras, começou a arremessar e a quebrar os vasos e as garrafas.
A pobre velha, já acostumada a tais procedimentos do marido, olhava com tristeza, sentada num banco. Não se atreveria a dizer nada; mas, ao ouvir aquela horrível decisão, não pôde conter as lágrimas; olhou para os seus filhos, com os quais a ameaçava uma tão rápida separação — e ninguém poderia descrever a força silenciosa da sua amargura que parecia palpitar‑lhe nos olhos e nos lábios, convulsivamente cerrados.
Horrivelmente teimoso, Bulba tinha um daqueles caracteres que só podiam surgir no difícil século XV, em algum recanto meio selvagem da Europa, quando toda a Rússia meridional primitiva, abandonada pelos seus príncipes, estava devastada, completamente assolada pelas constantes incursões dos rapinantes mongóis; quando, privado de casa e de teto, o homem se ergueu aqui intrépido; quando na terra queimada, à vista dos vizinhos ameaçadores e ao perigo eterno, ele se estabeleceu e se habituou a olhá‑los a direito nos olhos, se desacostumou de querer saber se existe algum medo neste mundo; quando, como uma chama guerreira, alastrou o espírito eslavo do mundo antigo e se organizaram os cossacos, esse modo generoso e desenfreado da natureza russa, e quando todos os vales, todas as passagens, todas as zonas ribeirinhas e todos os lugares propícios ao povoamento se cobriram de cossacos, cujo número ninguém conhecia, e os seus camaradas audaciosos se sentiram no direito de responder ao sultão, que quis saber o número deles: «Quem é que sabe?! Estamos espalhados por toda a estepe: em cada cabeço, há um cossaco». E era de facto uma manifestação invulgar da força russa: a pederneira das desgraças fê‑la eclodir no peito do povo. “
Nikolai Gógol , in TARASS BULBA, Relógio D’Água Editores, Março de 2024, pp.7-12
 
* Os polacos pretendiam unificar as igrejas católica e ortodoxa, com predomínio dos católicos e obediência ao Vaticano. (N. T.)
** Sietch (Sietch de Zaporójie): Organização dos cossacos da Ucrânia nos séculos XVI - XVIII . Até 1654 assumiu a designação de «república», dirigida por uma assembleia (Rada) e por um atamane. (N. T.)

Sobre o Livro:
TARASS BULBA, de  Nikolai Gógol
Tradução (do russo) de António Pescada.
"Tarass Bulba descreve a vida de um antigo cossaco de Zaporójie, Tarass Bulba, e dos seus dois filhos, Andrei e Ostap. Os filhos, que estudam na academia de Kiev, regressam a casa, de onde os três homens partem numa jornada para a Sietch de Zaporójie (a sede dos cossacos de Zaporójie, localizada no sul da Ucrânia), onde se juntam a outros cossacos e vão para a guerra contra a Polónia.
A personagem principal é baseada em várias personalidades históricas, e o enredo pode ser entendido no contexto do movimento de nacionalismo romântico na literatura, que se desenvolveu em torno de uma cultura étnica histórica.
«Um dos dez melhores livros de todos os tempos.» [Ernest Hemingway]"
Autor: Nikolai Gógol 
Editora: Relógio D’Água
Data de publicação: 18/03/2024
Nº de páginas: 160
Acabamento: capa mole
Peso: 256 gramas
Preço: 17,00€-15,30€
Sobre o autor:
"Nikolai Gógol nasceu em 1809, na cidade de Sorotchintzii, situada na Pequena Rússia, atual Ucrânia. Estudou no Liceu Nejin. O pai, proprietário de terras, faleceu quando ele tinha dezasseis anos.
Em 1828, partiu para São Petersburgo. Segundo uma das lendas, que ele próprio criou, a primeira coisa que fez ao chegar à cidade foi visitar Púchkin. Ao certo sabe-se que gastou cerca de 350 rublos em roupas novas, deambulou em busca de emprego e publicou dois poemas que escrevera dois anos antes. Hanz Kuechelgarten foi recebido com silêncio apenas interrompido por uma impiedosa crítica no Telégrafo de Moscovo. Gógol e o seu criado foram às livrarias comprar todos os exemplares disponíveis e queimaram-nos.
Em agosto desse ano, Gógol viajou pelo norte da Alemanha, de onde regressou em finais de setembro para ingressar na função pública.
No início de 1830, publicou o seu primeiro conto, com a assinatura «OOOO».
Em 1834, com o apoio de alguns amigos literários, é nomeado professor assistente de História Mundial da Universidade de São Petersburgo, matéria em que era bastante ignorante. Em 1835, publicou dois volumes de contos com o título Mirgorod e Tarass Bulba.
É nessa época que escreve O Nariz, a história dum infeliz cujo nariz se separou dele. É também nesse período que escreve O Inspetor-Geral, cuja representação em 1836 foi autorizada por Nicolau I, sendo ainda hoje considerada por alguns a maior peça de teatro escrita em russo.
Em junho de 1836, Gógol parte para o estrangeiro, onde viverá até 1848, regressando à Rússia apenas por breves períodos.
É já na Suíça, em outubro de 1836, que começa a Primeira Parte de Almas Mortas, que continuará nos anos seguintes, em Paris. Em 1837 e 1838, está em Roma, onde conclui O Capote. Em 1842, publica a Primeira Parte de Almas Mortas (da Segunda Parte apenas deixou os primeiros capítulos).
Entre 1842 e 1848, viaja de um lado para o outro à procura de inspiração e saúde. Depois regressa a Moscovo, Odessa, Vassilevka e, em 1852, novamente a Moscovo, onde acaba por falecer.
Como escreve Nabokov, «Nikolai Gógol, o mais estranho poeta prosador que jamais produziu a Rússia, morreu numa quinta-feira de manhã, um pouco antes das oito horas, a 4 de março de 1852, em Moscovo. […] O esgotamento físico total resultante duma greve de fome voluntária (com a qual a sua melancolia mórbida tentara opor-se aos desígnios do Diabo) culminou numa anemia aguda do cérebro (associada, provavelmente, a uma gastroenterite devida à inanição), e o tratamento de purgas e sangrias vigorosas a que foi submetido apressou a morte dum organismo já gravemente diminuído pelas sequelas da malária e da má alimentação».

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