terça-feira, 9 de abril de 2024

Até sempre, Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa,
(Lourenço Marques, 1930- Lisboa, 2024) 

Eugénio Lisboa escrevia diariamente. Era um poeta extraordinário que laborava numa oficina de excelência. Em três anos publicara três livros de poesia e tinha já um outro a juntar-se-lhes. Partiu hoje. A saudade vai encher-nos, mas a sua magnífica obra ficará para sempre. Ler e reler Eugénio Lisboa será sempre um momento de prazer, de descoberta, de aprendizagem.
Homem de uma extrema e aguda lucidez  tinha  um sentido profundo  da precariedade e da efemeridade da vida. Evocamos, com muita dorida emoção,  três sonetos que, distantes no tempo,  o evidenciam. 
Até sempre, Eugénio Lisboa.
AUTOBIOGRAFIA

Uma vida escreve-se devagar,
embora se viva muito depressa:
mal se partiu, já se está a chegar,
mesmo que, no meio, muito aconteça!

Escrevê-la é moroso e complicado:
a memória guarda mas também esquece
e, se parte fica resguardado,
o resto, ingloriamente, fenece!

Escreve-se a vida, pra vencer a morte,
para dar à vida uma outra vida,
fechando-a, enfim, num cofre forte.

No cofre guardada e não esquecida,
pensa quem escreve, mal sabendo
quanto tudo o tempo vai roendo!
                             08.12.2022
Eugénio Lisboa, in Soneto, modo de usar, Editora Guerra & Paz, Abril de 2024
Eugénio Lisboa

 BAGAGEM LIMITADA

Por muito curta que seja a vida,
há nela tantas coisas que acontecem!
E só agora, que estou de partida,
me dou conta de outras que esquecem.

Há ganhos e há perdas no viver:
nem tudo o que se ganha se guarda
e se a memória guarda muito haver,
nem tudo o cuidado resguarda.

No fim, guardamos só o que lembramos,
que é só uma parcela do que fomos..
E é assim: de tudo o que ganhamos

salva-se apenas o que ainda somos,
na hora inevitável de partir:
mas com pouco se faz um bom sair.
                        28.05.2022
Eugénio Lisboa, in Poemas em Tempo de Guerra, Editora Guerra & Paz, Setembro de 2022, p. 86
Eugénio Lisboa, na Livraria Ferin 
LE ROI SE MEURT

Ouvir o anúncio da minha morte
foi como ouvir uma língua estranha:
deram-me um esquisito passaporte,
sem dizerem se é pra vale ou montanha.

Pouco me vale reinar em qualquer Espanha,
a morte quer é haver-se comigo.
Porquê mostrar, a mim, sua gadanha,
achará que sou, pra ela, um perigo?

O que perturba é ela conhecer-me,
parecer saber, de há muito, quem sou,
andar atrás de mim a envolver-me!

Mas agora o momento chegou:
ser rei já muito pouco adianta,
quando a morte me aperta a garganta.
                           01.03.2024
Eugénio Lisboa,( poema inédito)

NOTA: LE ROI SE MEURT é o título de uma notabilíssima peça de teatro, de Eugène Ionesco, que vi, encenada em Paris. Como o título me convinha, roubei-lho. É assim que se faz.

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