The poem is a dream made flesh.Henry Miller
"Em boa hora,
reuniu Manuel Alegre, nesta antologia belamente celebrativa, os seus “poemas de
Abril” (e Maio…). Chamou-lhe País de
Abril e nela reuniu todos os poemas que “falam de Abril antes de Abril e de
Maio antes de Maio, em Praça da Canção,
editada em 1964, e em O Canto e as Armas,
de 1967.” A antologia inclui, também, outros “poemas de Abril”, escritos
durante o período revolucionário, e outros, ainda, mais tarde. Mas o que a
torna particularmente interessante – e isso já antes se teria podido ver, mas
esta reunião de todos os “poemas de Abril” num só todo torna-o particularmente
gritante – é o anúncio do “tempo de
Abril” (o de 1974), em poemas publicados num livro dez anos anterior à eclosão
do movimento que restituiu a liberdade à “ditosa pátria minha amada”. Numa
breve “nota de edição”, o poeta não resiste a chamar a atenção para este facto:
“Não deixa de ser intrigante que, tantos anos antes, o autor tenha escrito
sobre o País de Abril, Maio e os cravos vermelhos. Como se explica? Mistérios
da poesia.”
Não creio
que Manuel Alegre estivesse consciente, quando agarrou o tópico de “Abril”, de uma das etimologias atribuídas à
palavra “Abril”: essa etimologia ligá-la-ia ao verbo latino aprire, isto é, abrir, referência ao abrir dos botões, que dão flor (os cravos, as
rosas). Mas algo lavraria, por certo, o seu subconsciente, porquanto os cravos
vermelhos povoam já, explicitamente, o seu “inventado” “País de Abril”, que,
dez anos depois, passaria de “inventado” a real (e também habitado por cravos
vermelhos, aparatosamente simbólicos).
Estas
“misteriosas” presciências podem ser “misteriosas”, mas não são assim tão
novas. Têm sido verificadas e anunciadas desde tempos imemoriais. Talvez,
afinal, Aristóteles tenha tido algum fundamento, ao afirmar que “a poesia é
mais filosófica e de mais alto valor do que a história”, porque, em vez de reflectir
sobre uma realidade passada, anuncia, profeticamente, uma realidade futura. Ela
seria, assim, não uma comentadora de mundos que a antecedem, mas, antes, uma
fabricadora de mundos novos. E não foi, já, Aristóteles, mas um grande poeta
dos tempos modernos, T. S. Eliot, quem afirmou que “a poesia não é uma asserção
de verdade, mas uma fabricação dessa verdade, mais completamente real para
nós.”
Alguns dos
poemas deste belo “País” que Manuel Alegre congeminou e fundou, de toutes pièces, confirmam, de modo impressionante, estas
formulações poéticas ou filosóficas de Eliot ou Aristóteles. Leia-se, por
exemplo, esta fulgurante passagem do poema “Explicação do País de Abril”,
inserto na Praça da Canção: Não procurem nos livros que não vem nos
livros / País de Abril fica no ventre das manhãs / fica na mágoa de o sabermos
tão presente / que nos torna doentes sua ausência /. Esmiuçando o sentido
profundo destes versos, não é abusivo “traduzi-los” por: não procurem nos
ardidos livros de história o meu País de Abril, porque ele ainda só reside no
meu sonho, mas, ao sonhá-lo, torno tão presente a sua realidade, que me dói, a
sua, por enquanto, real ausência. O poeta torna o seu sonho carne, usando as
belas palavras de Miller, que coloquei como epígrafe deste meu texto, mas é,
por enquanto, uma carne-a-haver, o que, insuportavelmente dói. É uma “carne” que
ele sabe verdadeira e presente, no seu sonho, mas ausente da realidade
quotidiana. Porém, ao mesmo tempo, anuncia, assertivamente, que a aquela realidade, por enquanto, ausente,
há-de obedecer ao seu sonho, como no
belo poema de Yeates, como que feito de propósito para visitar este poema de
Alegre: That William Blake / Who beat
upon the Wall / Till Truth obeyed the call/ . (“… William Blake / Que se
bateu de forma danada / Até a verdade obedecer à chamada”)
Os versos
confirmativos do que atrás digo abundam e atropelam-se (e atropelam-nos): Por ti eu me perdi ou me encontrei / por ti
que eras ausente e tão presente / por ti cheguei ao longe aqui tão perto. /E
achei achando-te o País de Abril./ “Que eras ausente e tão presente”, isto
é, presente no sonho, ausente, na realidade.
No
expressivo poema “É preciso um país”, do seu segundo livro, de 1967 – O Canto e as Armas – afirma,
peremptoriamente, logo no título e, depois, no último verso da primeira
estrofe, que “é preciso um país”, não o país de navios a partir” (para a
guerra, para a emigração), mas o país em que se volta “ao ponto de partida”.
Criar o “País de Abril”, para substituir “a pátria onde foi traída / não só a
independência / mas a vida./ Porque “Abril” (o sonhado e o que há-de ser real)
é isso mesmo: a abertura para a vida, simbolizada nos botões que se abrem em cravos
vermelhos como o sangue, que simboliza a vida, o florir da vida, o contrário de
Alcácer Quibir, que é fim e que é morte.
Na poesia
moderna, a partir de Baudelaire ou, até, de Wordsworth, tudo é matéria de
poesia, mesmo o preconceituosamente anti-poético: o inferno urbano, a porcaria,
o vício, a podridão, o vómito, a máquina, tudo a poesia faz matéria prima das
suas elucubrações. Por que não, nesse caso, a intervenção política? A
indignação social? Desde que se não traia a arte – que até potencia a
“mensagem” – tudo alimenta o bojo faminto da barca da poesia: “Assim como, para
a mente pura, todas as coisas são puras, assim, para o espírito poético, todas
as coisas são poéticas”, dizia o poeta americano, Longfellow. As “femmes
damnées” de Baudelaire, que Régio fez matéria dos seus desenhos, não são menos
poéticas do que as Elviras de estatuto garantido. Artesão consumado, tocador de
lira afeiçoado pelo estudo e pelo ouvido, Alegre canta o seu sonho de um País
de Abril, como outros cantam, com igual ardor, a solidão dos corações ou a
perplexidade ante os espaços infinitos. E dispara os seus “avisos secretos”,
para que constem. Tudo são explorações do nosso assombro, por via da percussão
afinada da palavra.
Todo o
verdadeiro poeta, mesmo sem o saber (mas sabe!), acrescenta a realidade. Ao sonhar o País de Abril, Alegre, mais do
que anunciá-lo, criou-o. “Um bom
poema”, disse Dylan Thomas, “é uma contribuição para a realidade. O mundo nunca
mais fica o mesmo, desde que um bom poema lhe é adicionado. Um bom poema ajuda
a mudar a forma e o significado do universo, ajuda a ampliar-se o conhecimento
que cada um tem de si próprio e do mundo que o rodeia.” Ao escrever Praça da Canção e O Canto e as Armas, Manuel Alegre não permitiu que Portugal
continuasse imutável: inventou outro, que, no futuro, substituiria o primeiro,
partindo para nova aventura e subsequentes
novas sedes de mudança. Que o mundo é todo feito de mudança, de novas sedes e
de novas fomes: “Com as mãos se faz o poema – e são de terra”, diz o poeta, que
muito bem sabe do que fala. O sonho faz-se carne, que devém sonho, que se muda
em carne."
Eugénio Lisboa, em PRO MEMORIA , publicado no JL, 2014
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