Há no mundo uma conjura geral e permanente contra duas coisas, a poesia e a liberdade; as pessoas de gosto encarregam-se de exterminar uma, tal como os agentes da ordem de perseguir a outra.Gustave Flaubert , Correspondência
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Tempo de Poesia
Todo o tempo é de poesia.
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.
Todo o tempo é de poesia.
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.
António Gedeão, in Poesias Completas , Sá da Costa Editora, p.19
Liberdade
O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos
Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das Coisas, Assírio&Alvim
Exprimo o que já não sinto.
Escrevo o que já pensei.
Em arte , se sofro, minto:
registo o que já não sei.
Fazer é ter já sofrido
o que hoje não é sofrer.
já não faz nenhum sentido,
a dor dita no escrever.
Eu finjo que já sofri,
com arte que sou capaz,
aquilo que eu vivi,
no tempo de ser rapaz.
Viver é um luxo passado,
perdido, já sem sentido,
que eu terei recuperado
no texto agora mentido.
O poeta é um fingidor:
finge tão completamente,
que finge de fingidor,
no momento em que mente.
Londres, 15.05.82
Eugénio Lisboa, in a matéria intensa, Editora Peregrinação, Suíça, p 52
Sobre um poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder, in Poemas Canhotos, Porto Editora
um governo, ou uma revolução,
alguns dizem mesmo que assim
é que a natureza compôs as suas espécies.”
Machado de Assis,in Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
A um Jovem Poeta
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser
que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças
como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.
escrever sem porquê,
evidência de novo da razão
e passagem para o que não se vê.
Manuel António Pina, in “Todas as Palavras”, Assírio&Alvim
Apontamento em Voo
Não conseguiu o tempo
do poema
coincidir-lhes voo,
um vento atrás:
ao das jovens cegonhas
pelo céu,
lisas e puras
Só tentar-lhes compasso
em arremedo
E o passo arrastado
do poema
ficou-se nesse atraso:
o motor raso,
os dedos sob a asa —
do avesso
o dúctil ar
da folha —
Ana Luísa Amaral, in “O Olhar Diagonal das Coisas”, Assírio&Alvim
Cinco Palavras Cinco Pedras
Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
E em parte resume o que penso da vida
Passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
E delas vem a música precisa
Para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
Eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas
Ruy Belo, in “Todos os poemas”, Assírio&Alvim
Vestígios
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas – noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool – pernoita-se
onde se pode – num vocabulário reduzido e
obsessivo – até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva – vamos pela febre
dos cedros acima – até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
Al Berto, in “O Medo”, Assírio&Alvim
Do pacto que o Verbo celebroiu comigo
há sempre um artigo que sem subsiste
Deixar que as palavras apenas exprimam
o que sem palavras tentava exprimir-se
Deixá-las que rompam da noite da vida
para que suspendam a morte do dia
David Mourão-Ferreira, Os remos, in Obra Poética (19448-1995), Assírio & Alvim, 2019, p 624
Na primavera tu voltaste de mansinho
finda a tempestade, surgiste na bonança
me conjugando o verbo da esperança
num íntimo gesto de lírico carinho.
Tu foste meu fuzil, o meu canto guerreiro
a voz peregrina acesa no meu peito,
ensina-me a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.
Combatente e amordaçada em meu destino
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta anos se passaram, dia-a-dia.
Depois a liberdade chegou para o meu povo
mas só agora eu te encontrei de novo
para nunca mais perder-te... ó poesia.
Curitiba, dezembro de 2002
Manoel de Andrade, in Cantares , Escrituras Editora, São Paulo, Brasil
Alice Neto Sousa |
Poeta
Eu era pequena,
Escola primária,
Inocente,
Mas curiosa nas palavras.
Peguei nos lápis,
Aqueles,
Com todas as paletas de cores,
Amarelo-torrado,
Azul-marinho,
Cor…
Com o lápis na mão,
Sem nem esconder a minha confusão,
Olhei para o lápis, e para mim,
Que eu ainda era da altura de a língua afiar,
Tocar os sinos presos na garganta,
Dizer o que sinto e me espanta:
— Professora.
— Sim.
— Que raio é um lápis cor de pele?
Levei uma reprimenda, uma criança de tão tenra idade
A questionar a autoridade,
E olhava para o lápis,
Olhava para a minha pele,
Olhava fixamente para aquele lápis cor… de pele.
Poeta.
Naquele dia, desisti de falar sobre unicórnios
E fazer citações,
Porque ser-se poeta é falar de emoções,
Mas bem podia citar Luís de Camões, Fernando Pessoa
Sem dizer um poeta preto.
Pensei em então citar Martin Luther King ou Nelson Mandela
Só para ficar bem na tela.
Ignorar o vazio do mundo,
Fazer dos ouvidos mudos,
Porque preferem um poema com o sol no canto do papel,
As nuvens pintadas a azul,
Sem a dor no fundo.
Falar do que incomoda?
Andar a afiar a língua,
O que é que isso importa?
Porque naquele dia fizeram de mim uma
Poeta cor de pele,
De lápis cinza aguçado acastanhado,
No nevoeiro dos mares
Dantes e sempre navegados,
A minha língua é o lápis
Onde escrevo a cor dos meus sentimentos,
Quem vai perder tempo a escrever versos de amor
Com estes tempos, estas tempestades, estes sismos, ismos
E eu sei, podia ser menos uma poeta a falar sobre racismo
Mas preferiram o quê?
Que em vez do lápis a carvão pegasse uma arma na mão?
Que caísse em tantas outras estatísticas, noticiários?
Que me escondesse por detrás dos armários?
Que nunca tivesse chegado a terminar o secundário?
“Falas tão bem português”, fecho os olhos a engolir todos os clichês.
“Mas não ouves kizomba, ah, claro que sabes dançar”, dizem enquanto meto os Arctic Monkeys a dar.
E já se sabe, quanto mais talento, mais se tolera a cor, porque a Beyonce pode ser preta afinal de contas o que importa, é o interior.
Ouço as palavras a fazer ricochete,
Num corpo em bala,
Eu vejo,
De sol a sol,
Mantemo-nos fortes,
Que as mães têm calos de pensar,
Os pais as mãos a esbranquiçar.
Fazemo-nos de fortes,
Que mais poderíamos ser?
Numa sociedade de moldes,
A fingir entender,
A rir no eco a seguir,
A pensar que Black Lives Matter é mais um post para curtir.
Respira,
Mãos ao alto, levanta a poesia,
Esta poeta cor de pele,
já pintou a carta de alforria.
Alice Neto Sousa
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