De como uma ficção histórica
popular pôde impregnar o imaginário de um grande escritor francês do século XX
por Eugénio
Lisboa
“A história e, para o caso que nos interessa hoje, a ficção histórica
podem ter os mais diversos usos – incluindo os mais surpreendentes. Não que a
história difira totalmente da ficção que nela se inspira: na congeminação do
texto histórico, a imaginação, entra como elemento fecundador e, mais do que
provavelmente, deturpador – “Apesar das suas ambições de verdade, a história
não é, no fim de contas”, observava Barbey D’Aurevilly, “senão palavra humana,
submetida à triste condição da palavra humana, que é a de poder enganar e poder
enganar-se.” A história propõe-nos não uma balda de factos desgarrados e
desarticulados, mas antes ambiciona construir uma narrativa coerente que os
articule – para isso se servindo da razão, da especulação e da imaginação. Por
isso, Anatole France, que nos deu um excepcional romance sobre o Terror – Les Dieux Ont Soif – dizia com
provocação sorridente: “A história não é uma ciência, é uma arte. Nela, nada se
consegue a não ser por intermédio da imaginação.” Assim vistas as coisas, poder-se-ia
pois admitir que a ficção histórica é apenas uma ficção sobre outra ficção,
ambas visando restituir-nos uma vida que ninguém ao certo sabe o que de facto
foi: “Escrever História”, dizia Philip Hope Wallace, “pode ser tão criativo
como fazê-la. São ambas uma interpretação da vida.” A História interpreta, como
pode, a vida. E a ficção histórica interpreta, como pode, essa outra
interpretação da vida que é a História, a qual é também uma espécie de vida.
Porém, com todas estas reservas e suspeitas, a realidade duplamente traída que
nos veicula o texto ficcional histórico pode ter sobre o imaginário do leitor
ainda jovem, um extraordinário poder de sedução e fermentação de padrões e
moldes que irão marcar de modo indelével a sua experiência emocional e
intelectual. Marcado a fogo, aos oito anos de idade ,para todo o resto da sua
vida pela leitura do romance polaco de Henryk Sienkiewicz, Quo Vadis?, o jovem Henry de Montherlant, futuro autor de algumas
das mais poderosas ficções (romances e peças de teatro) do século XX,
confessará em páginas escaldantes e inesquecíveis, os sulcos que para sempre
lhe deixou no espírito e na forja emocional o popular romance, em cujo
território, se passeiam, com aterradora vivacidade e desenvoltura, o Nero e o
Petrónio, que não são bem os da história, mas sim os que, em livre inspiração
bebida nos breves apontamentos de Tácito, nos deixou o notável romancista
polaco. Montherlant dirá mais tarde, num texto escrito aos 62 anos: “A vida e a
morte de Petrónio contêm-se numa trintena de linhas no meu Tácito (liv. XVI, cap. XVIII e XIX ). O Petrónio que
desempenha um papel nas nossas imaginações é o Petrónio de Sienkiewicz.” Como
dirá ainda o autor de La Guerre Civile,
“Quo Vadis? não é uma grande obra, nem mesmo um grande romance, mas é um romance muito bom que merece
inteiramente o imenso sucesso que o acolheu.”
Quo Vadis? não é,
realmente, um grande romance mas é um romance inesquecível, uma daquelas obras
que, uma vez lidas, deixam marca. E é nosso propósito mostrar, com a claridade
e força que nos forem possíveis, como um romance que não é um grande romance,
mas antes uma obra vivaz e imensamente popular, isto é, uma obra, em princípio,
suspeita, pode fornecer sulcos
fundamentais e pistas de comportamento e de referência profundas, no imaginário
de um dos maiores escritores do século XX – Henry de Montherlant, o qual irá ao ponto de não
recear afirmar, num texto que escreveria já em plena maturidade: “Eu peso bem
as palavras antes de escrever o que se segue: foi, na verdade, no Quo Vadis que aprendi a escrever [...]
Entre os oito e os catorze anos. – e, repito-o, esses seis anos, nessa idade,
contam tanto como uma vida inteira, - vivi do estilo da tradução francesa de Quo Vadis, compreendido o que ele tinha
de bom e o que ele tinha de menos bom. Durante não somente a minha adolescência
mas também a minha primeira juventude, um grande número de frases dessa
tradução guardaram, para mim, um carácter como que encantatório, e durante
muito tempo, elas reapareceram, mais ou menos transpostas, ou mesmo
completamente cruas, nas obras que eu escrevia.”
Montherlant leu o romance de Sienkiewicz em 1904 e, em 1905, a Academia
Sueca, com algum receio e munindo-se das justificações que conseguiu agenciar,
conferiu ao autor polaco o prémio Nobel. Sienkiewicz não era o autor apenas de Quo Vadis?. Outros romances históricos
de indiscutível fôlego épico – A Ferro e
Fogo, O Dilúvio – e contos
notáveis como “O Faroleiro” ou “Bartek, o Conquistador”, tinham-lhe dado mais
do que jus à fama que o aureolava. Mas a obra que indiscutivelmente lhe deu uma
quase instantânea reputação mundial foi o Quo
Vadis?, publicado em 1896, ano, curiosamente, do nascimento de Montherlant.
E foi esta quase excessiva popularidade mundial do romance polaco que foi fonte
de não pequeno desconforto para os jurados do prémio Nobel. Numa curiosa
“Pequena História da Atribuição do Prémio Nobel a Henryk Sienkiewicz”, da
autoria de Gunnard Ahlström, membro do Instituto Sueco, podemos ler a seguinte
instrutiva passagem: “Todos os Prémios Nobel foram sujeitos à crítica, de uma
forma ou de outra. Sienkiewicz não escaparia à regra. A tarefa dos censores foi
fácil, pois que a coroa de louros lhe tinha sida atribuída, na opinião de
todos, por causa de Quo Vadis?.
Tratava-se de um best seller ao
alcance de toda a gente e não de uma obra digna de figurar entre as
manifestações da grande literatura. Depois da sua publicação, em 1895*,
havia sido rapidamente traduzido para 30 línguas. Num só ano, 800.000
exemplares foram vendidos na Inglaterra e na América. O mundo das livrarias não
estava ainda habituado a estes êxitos livrescos, em avalanche. Numa época em
que se prestigiava ainda os génios que habitavam nas mansardas, a popularidade
tinha algo de suspeito. Havia ali, com certeza, qualquer coisa de mau gosto ou
de banal.” Os mais irritados de todos, no mercado literário e dos prémios,
foram os italianos que, nesse ano, queriam o troféu para o poeta Carducci. Na
sua divertida história, Gunnard Ahlström dá conta desta reacção: “Os
protestos”, diz ele “não se fizeram esperar. Os romanos modernos deram livre curso
ao ressentimento, num artigo veemente publicado no jornal Italia. Quo Vadis? era
apontado como um novo evangelho das cozinheiras, que haviam aprendido a
história da França lendo Dumas, pai. A história romana, adaptada às
necessidades da pia da cozinha, recheada de sentimentalismo barato e cortada em
fatias muito finas, tinha deslumbrado a multidão. A fim de atender às suas
piedosas leitoras, o polaco não vacilara em evocar o incêndio de Roma, em pôr
em cena Nero, o “Anticristo”, o inimigo dos cristãos. Acusavam-no de ter lido
bem demais e traduzido mal demais a obra de Renan. Bem poucos se apercebiam
[ainda segundo os italianos] de que Quo
Vadis? tinha tão pouco valor literário como Os Últimos Dias de Pompeia, de Bulwer Lytton.” Tratava-se,
parece-me evidente, de um exagero e de uma injustiça. Mas tudo isto deixa bem
claro que o sedutor romance polaco, que tem em grande parte, como cenário o
Palatino romano, no tempo de Nero, era um bom romance histórico mas, de modo
nenhum, uma obra de primeira grandeza, que pudesse pôr-se ao lado, por exemplo,
de uma Guerra e Paz (que aliás nunca
foi bafejada pelo peculiar galardão sueco). Um muito bom romance, com
qualidades que o tornaram imediatamente popular e que ainda hoje é lido e visto
no cinema e televisão (em péssima adaptação de Hollywood) – e é tudo. De modo
nenhum, um marco de grandeza na história literária universal. Já Montherlant,
em quem o livro de Sienkiewicz deixaria, como vamos ver, marcas tão profundas,
é um autor de indiscutível grandeza, embora nunca tenha sido bafejado pelo
Nobel que galardoou o romancista polaco. Vindo na grande linhagem de escritores
que começa em Bossuet e que, passando por Saint-Simon, vem desaguar em
Chateaubriand e, já no século XX, em Barrès, o autor de La Ville dont le Prince Est un Enfant e de Le Chaos et la Nuit foi reconhecido, entre os seus pares franceses,
como porventura a maior força literária da França no século XX (Romain Rolland,
Bernanos, Gide – que o admirava, detestando-o – Valéry, Jouhandeau, Daniel Rops
colocavam-no no topo da escala, reconhecendo-lhe um génio na escrita que só nos
maiores clássicos da língua encontrava equiparação). Jacques Chardonne, o mais
cristalino prosador da ficção francesa do século XX e um dos mais finos
prospectores das singularidades e escolhos da ligação amorosa, tinha
Montherlant por “o maior escritor deste século” (referia-se, é claro, ao século
XX). E tendo o filósofo, conde de
Keyserling, perguntado a Paul Valéry: “Qual é o vosso maior escritor de hoje?”
o grande poeta respondera sibilinamente: “É Montherlant. Mas não convém
dizê-lo.” É que o autor do Cimetière
Marin conhecia o “milieu” e já se tinha apercebido dos anticorpos que a
grandeza do autor de Le Songe, aliada
a um profundo desprezo pelos cordelinhos do mundo literário e por aquilo a que
chamava a “gló-glória”, tinham sido capazes de desencadear. Romain Rolland bem
declarara, em 1926, seduzido pelos primeiros escritos do jovem Montherlant:
“Você é a maior força que existe nas letras francesas. O mundo é mais rico para
mim, agora que o conheço.” O mundo ficava mais rico para quem quer que
mergulhasse naquele misto de fogo, altivez e insolência que se desprendia da
oficina literária do autor de Les Olympiques.
A sondagem em profundidade das grandezas e misérias humanas, da força e
da fraqueza, do sublime e do monstruoso, da fome dos corpos e da saciedade dos
corpos, da crueldade e da doçura, este magnético “dizer sim à vida” veiculado
numa prosa inigualável de rigor, precisão e maldade felina, que levarão Gide a
considerar o seu detestado rival “um escritor de raça, um senhor das letras” –
tudo isto foi Montherlant bebê-lo, inicialmente, ao Sienkiewicz do Quo Vadis?, lido com paixão, aos oito
anos. “Eu era tão ignorante da história romana”, dirá Montherlant, no texto já
citado, “que, quando o autor de Quo Vadis
fala, ora de Nero, ora de César, eu comecei por pensar que Nero e César eram
dois personagens diferentes. Mas, muito cedo, comecei em casa o estudo do latim
com um professor de Janson. [...] esse universo do latim, no qual ia mergulhar,
que poderosamente me ajudou a viver, e, por vezes, mesmo na minha vida privada,
tinha-me anteriormente sido aberto por Quo
Vadis. Mas Quo Vadis tinha sido
para mim, aos oito anos, uma dupla revelação, mais importante ainda do que a do
mundo romano, e que tinha feito desse livro, posso dizê-lo sem ênfase, um dos
acontecimentos consideráveis da minha existência: a revelação da arte de escrever, e a revelação daquilo que sou. Aos doze anos, Os Doze Césares [de Suetónio] e o Satyricon [de Petrónio] vindos em linha
recta do Quo Vadis para se tornarem
os meus novos livros de mesa de cabeceira, vão-me familiarizar em espírito com
o que de melhor se pode achar como extravagâncias: instruem-me sobre elas, e de
todas as cores; estas obras, a título de serem «clássicas», existiam em todas
as livrarias. Aos dezasseis, aos dezoito anos, Séneca, Marco Aurélio vão
fazer-me amar e aceitar, vindos deles, os mesmos preceitos que eu não teria aceitado
vindos dos Evangelhos; eles irão contrabalançar as extravagâncias, do mesmo
modo que eu tinha comprado o meu Dionisios em mármore, ao sair da abadia de
Solesmes, para contrabalançar, parece-me, a influência de Solesmes. Quo Vadis tinha-me dado outra coisa:
aquilo que encontrara em mim, não aquilo que lá tinha posto.” Trata-se,
efectivamente, de um encontro, e de um encontro fulgurante e prenhe de
consequências, entre um jovem que virá a tornar-se um dos maiores escritores do
século XX e um romance popular mas não insignificante, que vai servir como
profundo revelador (auto revelador) do mais profundo que havia no fundo do seu
ser. No texto que já citámos, escrito já na casa dos sessenta, Montherlant
sublinha ainda: “Eu chamo revelação, revelação de mim a mim, a outra revelação
de Quo Vadis, porque está fora de questão falar-se de influência. Aos oito anos
eu banho-me no Quo Vadis como a chapa
fotográfica se banha no revelador químico: Quo
Vadis, faz aparecer a maior parte do que está em mim e aí estará para todo
o sempre.” E acrescenta: “Faz aparecer também, coisa mais estranha ainda,
acrescentando-se a essa revelação muito pessoal, a revelação de uma época da
história bastante semelhante àquela em que terei que viver (...)”.
O mundo romano é um mundo que o fascina um pouco narcisicamente, como
quem nele se revê, como se num universo iluminado por uma lucidez que se não
detém diante de nada. Para Montherlant e para o seu amigo (e mais tarde
biógrafo, J:N: Faure-Biguet) o universo romano, isto é, o universo,
abre-se-lhes a uma luz quase cruel, quase insuportavelmente atraente. Falando
de Sienkiewcz, o autor de Quo Vadis,
Montherlant observa com uma espécie de estupefacção agradecida: “O autor
(Sienkiewicz) repete várias vezes que, a Nero, não lhe falta talento; que, até,
pela sua arte, chega a comover. Durante a orgia «nem a voz de César, ainda que
velada, nem os seus versos deixavam de ter encanto» Outra vez, «com óptima voz,
nesse dia, sentia que a música encantava os auditores». Erguido sobre os arcos
do aqueduto, enquanto Roma arde, ele canta, «e os senadores, os funcionários e
os augustanos tinham baixado a cabeça e escutavam, num encanto mudo». Quando
ele fala sobre arte, com Petrónio, toda a conversa é muito interessante e muito
fecundante para jovens espíritos que se vão dedicar à literatura. Como o
monstro se revela humilde diante da beleza! Não vai até ao ponto de dizer que,
por vezes, a arte o faz sentir-se «tão bom como uma criança de berço»? Que
ressonância estas páginas tinham em Faure-Biguet e em mim! No estado de moral
vaga que é, com frequência, o da infância e adolescência, este amor dominante
da arte parecia-nos desculpar muita coisa. E, depois, a ideia essencial em
Nero, de que a vida, em definitivo, não tem outra justificação que não seja
permitir ao artista criar a sua obra, que este tem mesmo o direito de fazer
sofrer para a criar (Nero pretende que, se matou a sua mãe e a sua mulher e se
incendiou Roma, foi porque isso serviu a sua arte), essa ideia impressionava
dois rapazes que sabiam que o seu destino único era serem escritores.” Esta
ideia do direito quase ilimitado que assiste ao artista de fazer sofrer, a
favor da sua criação, teve sempre, mesmo no nosso tempo – para além de
Montherlant – fervorosos, eloquentes e, às vezes, quase ultrajantes defensores.
Não se pode pensar em ninguém mais diferente do autor de Les Jeunes Filles do que, por exemplo, o romancista americano
William Faulkner, que afirmava ser todo e qualquer escritor genuíno capaz de
matar a mãe para escrever uma obra conseguida. E levava a “boutade” até ao
limite de sugerir que a “. Ode a uma urna grega”, de John Keats, valia bem uma
cabazada de velhas senhoras... “Mais tarde”, conclui Montherlant, no texto
fundamental que temos vindo a transcrever, “[Mais tarde] devíamos aprender que
uma tal ideia – frequentemente expressa pelos autores antigos – é comum nos
artistas, que muitas vezes se não escondem dela, mas, naquele momento, não a
conhecíamos a não ser expressa por Nero. Os artistas, de facto, acreditam que a
vida desaparece e que a arte permanece, até ao dia em que compreendem que a
arte, com muito raras excepções, desaparece tão inexoravelmente como a vida.
Mas eles continuam a acreditar, como se assim não fosse, porque acreditar é o
que lhes agrada, quando são verdadeiros artistas.” O mundo romano, tal como lhe
aparece revelado pela força persuasiva do Quo
Vadis?, é a primeira e intensa revelação de que muito há que aceitar, na
vida, mesmo quando a acomodação pareça difícil ou mesmo insólita. Aceitar o sim
e o não, a elegância e a brutalidade, tudo guardar, tudo compondo (“garder
tout, en composant tout”) – eis o que nos mostra, em cenas inesquecíveis, o
romance de Sienkiewicz, mesmo quando faz uma apologia (pouco convincente) dos
valores preferenciais do mundo cristão. “A morte de Nero”, observará
Montherlant, já no fim da vida, “[a morte de Nero], a morte de Petrónio duraram
em mim muito tempo. Quanto tempo? Petrónio morto e Nero morto olharam-me com os
seus olhos mortos, como górgonas, ao longo de toda a minha vida. E como não
notar, de passagem, que, amando igualmente Petrónio e Nero, que o mata, amando
igualmente o terror de Nero e a serenidade de Petrónio, eu já me encontrava,
simultaneamente, nos dois campos adversos? Disposição de que guardei sempre
alguma coisa para sempre.” Está aqui já, ainda em embrião, talvez ainda de modo
não demasiado consciente, o seu famoso princípio da alternância, que se
inscreve no cerne da sua vida e da sua obra e de que teve a primeira iluminação
ao contacto com as páginas de fogo do romance polaco: tout garder, en tout composant. Henri Perruchot resume assim a
“alternância” que habita no génio do autor de Le Maître de Santiago: “Montherlant, o homem menos sistemático do
mundo, «o anti-sistema», não teve provavelmente razão ao dar nem que fosse a
aparência de um sistema a um estado que era, por assim dizer, fisiológico, e
que se poderia explicar do modo seguinte: 1º) Verificação de facto: há em mim
um conjunto de tendências diferentes, de que algumas se opõem ou parecem
opor-se. 2º) Posição intelectual: recuso-me a sacrificar qualquer delas. 3º)
Conclusão no concreto: não podendo vivê-las todas ao mesmo tempo, sou obrigado
a alterná-las.” É o que o protagonista da sua pérfida e salutar tetralogia
romanesca, Les Jeunes Filles, Pierre
Costals, postula, nos seguintes termos, de um cinismo desenvolto e solar: “Há
em mim todas as estações do ano, sucedendo-se umas às outras. Sou um cosmo que
roda e expõe ao sol sucessivamente os pontos diferentes da sua superfície, um
de cada vez.” E, no seu livro, Coups de
Soleil, reitera esta visão de si mesmo, assumida com força e sem sombra de
remorso: “Eu alumio, uma de cada vez, todas as partes de mim mesmo, pondo,
durante esse tempo, todas as outras em vigília”. Ou, com mais nitidez e
desenvoltura ainda: “O poeta não pode rejeitar nada...Tenho necessidade de
viver toda a diversidade do mundo e os seus pretendidos contrários...Imenso
amante, nada há de sublime que lhe não serre a garganta (ao poeta), nada há de
atroz de que se não sinta o cúmplice e o irmão...Nós vemos que tudo é verdade... O universo, não tendo
nenhum sentido, é perfeito que se lhe dê, ora um, ora outro. É mesmo assim que
se deve tratá-lo.” Por outras palavras, empatia com Petrónio, que é o
cepticismo, a ousadia, a desenvoltura e a elegância, e empatia também (porque
não?) com Nero, que é atroz mas tem também os seus genuínos momentos de encanto
e melodia, mesmo que à custa do incêndio de Roma... É o equivalente do moto de
Nietzsche: “Dizer sim à vida,” ou do de Marco Aurélio: “Ó mundo, eu quero o que
tu queres. Tudo o que acontece acontece justamente.”
Na vida que vai prosseguir, após o encontro com o mundo romano como ele é
visto pelo romancista polaco – a vida no colégio de Santa-Cruz de Neuilly, a
guerra de 14-18, em que participa como voluntário, nas trincheiras solidárias e
mortíferas, os anos de “voyageur traqué” pelo Norte de África, Espanha e
Itália, voltando afrontosamente costas ao milieu literário parisiense e à
gló-glória que lhe sorrira com o seu sorriso hediondo, a segunda guerra mundial
e a França desorganizada, apodrecida e cobarde ocupada pelos alemães, a
libertação com o seu cortejo de coisas boas, mas também de saneamentos e de
infâmias, a glória teatral com todo um cortejo de obras-primas onde fulguram
vigorosas intuições e padrões de vida bebidos outrora na leitura de Quo Vadis, enfim o envelhecer, com a
perda de um olho e a ameaça de perder o que lhe resta de visão no outro e a
escolha final, serena, racional, romana, do suicídio (“Je deviens aveugle, je
me tue”) - nesta vida cheia de tudo, Montherlant vai cumprir à risca o seu
programa de alternância, julgando e não julgando, amando e distanciando-se,
fruindo e entediando-se, vivendo e descrevendo com igual empenho a grandeza e a
fraqueza, os sentidos e a espiritualidade, o sublime e o atroz, a coragem e o
medo, a elegância e a grosseria, a atenção e o desleixo, a infância e a
velhice, a vida esplendorosa e solar mas também o caos e a noite, contrários
que fazem da vida o que ela é e que estavam em si desde sempre e de que se
apercebeu, com desarrumadora percepção, ao vê-los reflectidos, aos oito anos,
no espelho lúcido e perturbante do mundo de Quo
Vadis?.
Ao contrário do que se passava com o romance histórico tradicional e com
o mundo dos seus leitores, que convergiam no uso de uma reconstituição
histórica como meio de sondagem de uma identidade
nacional, Montherlant vai encontrar num romance histórico alusivo a um
mundo que, à partida não é o seu – o mundo romano – a revelação de uma
singularíssima identidade pessoal: o universo central de Quo Vadis?, a elegância de Petrónio e a atrocidade de Nero são ele
próprio, Montherlant. E o horror e o grotesco de muito daquele universo são
também o do mundo em que vive, no século XX, o autor de Port-Royal.
O mundo romano, o de Tácito, de Suetónio e, sobretudo, a transposição
deles feita pelo autor de Quo Vadis?
vai, ao longo da vida do autor de Les
Bestiaires fornecer as referências essenciais, os padrões, as obsessões
sugestivas que lhe impregnam o imaginário e vão imprimir marcas de fogo nas
suas melhores páginas. O tema do suicídio – que inunda de luz e de panache a
parte final do romance polaco – será uma ruminação omnipresente e solar (não
doentia) na obra de Montherlant. Suicídio não por desespero, mas por elegância,
para se não persistir em viver, por amor à vida, porque a qualidade de vida vai
diminuir e o homem exigente deve saber morrer, como soube viver: “Petrónio” [o
de Quo Vadis?], observa Montherlant,
“por carta, informa Vinícius de que decidiu morrer. Deixou de falar com
desprezo dos cristãos. Reconhece que, de todos os deuses, ‘o Cristo é ainda o
mais honesto’. Mas: ‘A vossa doutrina não é feita para mim» e mesmo, mais profundamente:
‘A vossa felicidade, não é feita para mim’. Porquê? As razões dadas, de ordem
unicamente estética, são bastante arrepiantes. De resto, ele nomeia os seus deuses, Pirro e Anacreonte. Sobre
o suicídio em si, a sua carta tende para o pálido -–mas as mais célebres
apologias do suicídio, tema repisado pelos Antigos em certas épocas, serão mais
eficazes? Os personagens atraentes de Quo
Vadis, Petrónio e Nero, suicidam-se os dois. Eis por que posso dizer, de
Faure Biguet e de mim próprio, que quase bebemos o suicídio com o leite: o
suicídio de duas espécies, a serena, de uma serenidade socrática, com Petrónio:
‘Peço-vos, não dramatizemos’, e a turva, a demasiado humana, com Nero. Com a
idade de quarenta anos, assinalei, no meu volume, a página com o suicídio de
Petrónio; quando voltava a pegar no livro, era para ela que em primeiro lugar
me voltava. A sua coragem sorridente, melancólica e tranquila tem um perfume
que não é passageiro. ‘Para terminar, meus amigos, se da nossa alma alguma
coisa subsiste, depois da nossa morte, a minha alma ver-se-á pousar, não longe
da vossa casa, com o aspecto de uma borboleta...’ Que de vezes,” observa ainda
Montherlant, “eu acreditei ver a alma de Petrónio acompanhar-me, volteando na
luz do verão!” E concluia “A frase essencial sobre o suicídio não se encontra
nessa carta. Petrónio disse-a a Vinicius no decurso de uma das suas conversas
precedentes: ‘Aquele que soube viver deve saber morrer.’”.
O suicídio, bebido com o leite na leitura de Quo Vadis? iria constituir-se em tema recorrente na obra de
Montherlant, que a ele regressa constantemente, mas de modo viril, solar e nada
mórbido. “Honrei o suicídio”, observa
Montherlant, num texto fundamental, A
Morte de Catão, “[honrei o suicídio] desde a idade dos 30 anos”. E
acrescentava esclarecendo que não falava de desespero mas sim de outra coisa
mais nobre: “Suicidamo-nos, “ dizia,
“por respeito pela razão, quando a idade ou a doença a entenebrecem, e que há
demais honroso do que o respeito pela razão? Suicidamo-nos por respeito pela
vida, quando a nossa vida cessou de ser digna de nós, e que há de mais honroso
do que este respeito pela vida? Suicidamo-nos sem dar as nossas razões, e temos o direito de não as dar: porque não
havia um homem de ter o direito de
renunciar, sem explicações, a uma vida que não solicitou?” E, ainda no
mesmo texto, explica que «Aticus se mata para escapar à doença». Bebida no
mundo complexo, a um tempo impiedoso, consolador e cheio de panache de Quo Vadis? , onde os princípios cristãos
ombreiam, contradizendo-o mas não o anulando, com o estoicismo romano, o
suicídio ou a ideia dele ou do eventual recurso a ele habitará para todo o
sempre a casa da ficção e do ensaio do autor de La Guerre Civile, porque começou por lhe mobilar, de modo forte e
impressivo, o imaginário da infância e adolescência. Próximo do fim, doente,
meio cego, impedido portanto de exercitar as duas paixões que foram os pilares
fortes da sua existência – o amor e o trabalho criativo - Montherlant mostrou,
em acto, que as suas recorrentes palavras sobre o suicídio não eram apenas má
literatura: aos 76 anos de idade, no dia 21 de Setembro de 1972, exactamente,
às quatro horas menos um minuto, da tarde, honrando a ideia do suicídio, porque
a vida se lhe estava a tornar indigna de ser vivida, o autor de Le Songe trincou uma cápsula de cianeto
e disparou um revolver na boca. Fê-lo às quatro menos um porque marcara
encontro com o filho adoptivo às quatro em ponto – e era conhecida a obsessiva
pontualidade militar do grande escritor. Pessoalmente, gosto de pensar que
nesses segundos finais, que presidiram à sua saída deste mundo, a borboleta de
Petrónio volteou no seu apartamento do Quai Voltaire, em Paris, saudando e
aprovando: “O que soube viver deve saber morrer.” Vinha tudo no Quo Vadis?, romance histórico popular,
talvez literatura que não era do mais alto calibre, mas que foi capaz de
fecundar a imaginação e o código de viver de um dos maiores escritores da literatura
francesa de todos os tempos. Não dizia Goethe, figura cimeira da literatura
alemã e mundial, que a si tudo o influenciava, mesmo obras de segunda, terceira
ou quarta categoria? E quando estas obras secundárias se revelam assim capazes
de motivar os gigantes, não deveremos acordar-lhes um valor acrescentado?
“Vivi”, escreveu Montherlant, num posfácio à sua peça, La Guerre Civile, “[vivi] durante sessenta anos entre estas sombras
romanas, sombra entre as sombras. Pedia-lhes, ora um motivo de exaltação, ora
um modelo de conduta, ora um modo de reagir nos momentos difíceis. Quem não
teve desses momentos em que sente tudo desagregar-se à sua volta e em que se
sente a necessidade de se agarrar imediatamente
a um corrimão? Quando isso me aconteceu, o corrimão foi sempre, para
mim, a história romana.” Foi, realmente, a história romana, mas ela começara,
para Montherlant, nas páginas fundadoras e inesquecíveis do romance de
Sienkiewicz.”
Eugénio Lisboa, Novembro/2002
* Outras referências dão o romance como publicado,
não em 1895, mas sim em 1896, ano que é, coincidentemente, o do nascimento de
Montherlant.
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