“Os
leitores não estão, muitas vezes, atentos aos truques que usam os oficiantes da
ficção, para seduzirem os leitores. Este texto, que repesco de um passado
remoto, tenta espionar a oficina dos narradores.”
Eugénio
Lisboa
A isca narrativa
por
Eugénio Lisboa
“Desde
tempos muito remotos, os escritores usam truques para captarem a atenção dos
leitores. Truques, diga-se de passagem, nem sempre muito subtis e até, por
vezes, francamente grosseiros. São aquilo a que podemos, com alguma razão,
apelidar de “isca narrativa”. A construção de um mistério, a criação de uma
expectativa, um momento de “suspense”, uma pontinha de sexo ou de pornografia,
há muitas maneiras de captar a atenção do leitor. A peça de Sófocles, Rei Édipo, mantém o espectador ou o
leitor suspenso até ao último minuto, sem por isso descer da sua majestade
trágica. Charles Dickens, quando escrevia os seus romances extremamente
populares, usava de imensos truques para manter o leitor cativo. Conta-se que,
ao publicar, em fascículos, o seu romance Old
Curiosity Shop (A Loja de
Antiguidades), à medida que o romance se aproximava do fim, os leitores
viviam cada vez mais ansiosos por saber se a pequenita Nell, personagem do
romance, morreria ou não. E, um dia, quando, em Nova Iorque, no cais, muitas
pessoas aguardavam a chegada de um barco que trazia os últimos fascículos do
romance, quando o navio finalmente se preparava para encostar ao cais, alguns
dos presentes não se contiveram e gritaram para bordo, para o comandante: “A
pequenita Nell morreu ou não morreu?”
Não
é a existência ou não existência de uma isca narrativa que torna a narrativa
menos nobre ou mais nobre. Os romances policiais de Simenon, Chandler, Hammett
ou Robert B. Parker usam de isca, sem pudor, e nem por isso perdem seja o que
for em qualidade literária. O que pode afectar essa qualidade literária é o uso
mais ou menos indiscreto da isca. Quando a isca narrativa é o principal
ingrediente da atracção do livro, temos então o caldo entornado. O meu amigo
(já falecido) Fernando Namora, que era, aliás, amigo e admirador do escritor
brasileiro Jorge Amado, contou-me um dia, acerca deste, uma história que me
arrepiou. Jorge Amado veio a Lisboa e trouxe consigo o manuscrito do seu, à
data, último romance. Deu-o a ler ao autor de Retalhos da Vida de um Médico, com a seguinte recomendação: que o
Fernando lesse o livro com muita atenção e que, no fim, lhe dissesse, com muita
franqueza, se o romance tinha ou não sexo suficiente. Se achasse que não tinha,
que lho dissesse e ele, nesse caso “botava mais”. Não podia ter sido mais
claro. Mas também não podia ter revelado, de modo mais grosseiro, “ao que ia”:
a venda alargada da sua mercadoria, alterando-lhe a composição dos
ingredientes, ao gosto do leitor.
Frequentemente,
é o editor ou o agente literário quem exerce pressão sobre o autor, de modo a
incentivá-lo a acrescentar o teor de isca narrativa. O conhecido autor de
livros de ficção científica, Isaac Asimov, conta a história do autor cujo
agente lhe disse que os seus livros não se vendiam porque, neles, não havia
sexo em quantidade suficiente. Não havia sexo suficiente?, repontou o autor
indignado. “De que é que V. está a falar? Olhe, logo aqui, na primeira página
do livro, a cortesã precipita-se para fora do quarto, completamente nua, e
corre em direcção à rua, com o herói a persegui-la, tão nu como ela, e num
estado explicitamente descrito como de erecção sexual”. “Pois sim”, respondeu o
agente, “mas isso vem só no final da página!” Para o agente, todo o interesse
do livro estava, não no livro em si, mas apenas nessa isca narrativa, ali posta
para captar o olho e a lascívia do leitor. Ora bem: que se use a isca para
“segurar” o leitor, vá, mas usar a isca como alimento principal do leitor é uma
verdadeira perversão, que a verdadeira grande literatura não acolhe. Só os
vendilhões “botam mais”, quando acham que o leitor não tem o suficiente.”
Eugénio
Lisboa
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