O Lugar
2
"Quando acordara naquele dia não enxergara de imediato onde estava. A sua vida nos últimos anos obrigara-a a mudar constantemente de lugar, pelo que invariavelmente quando acordava tinha dificuldade em reconhecer o quarto.
Assim, quando respirou fundo e abriu bem os olhos e os sentidos todos começaram a funcionar, pareceu-lhe ouvir a seu lado um ruído descompassado, pesado e quase ofegante. Sentou-se na cama e viu-se num quarto sombrio, com uma claridade tenuemente difusa que lhe mostrava mais duas camas, onde jaziam também dois vultos que não foi capaz de identificar.
Então, recordou a noite anterior. Tinham-na levado para o Lugar. Ali estava ela no meio de estranhos, não imaginando sequer quem eram eles, mas compartilhando já o quarto.
Apesar de tudo em qualquer das casas por onde andara, até na que deixara de lhe pertencer, tinha tido sempre um quarto só para ela. Os filhos tinham preservado essa sua necessidade mínima de independência. E era lá que se renovava e se refortalecia para os combates que foram sucessivamente travados num plano aparente de desigualdade. Ela fora sempre vencedora., pois estava íntegra e inteira . Nunca fora tão forte a sua energia interior. Conseguira resistir aos desmandos dos filhos e aceitara de face lavada a entrada no Lugar.
E assim começava o primeiro dia da mudança mais radical e inesperada da sua vida. Sozinha no meio de tanta gente.
Como a história da vida por vezes trai. Tenta-se construí-la de uma maneira e ela desenrola-se de outra. Quando os filhos eram crianças, tinha sonhado criá-los a todos em casa, confrontando firmemente Mário Alberto que, de acordo com a época, teimava em interná-los em colégios para usufruírem de uma rígida educação. Sempre considerou que o ambiente familiar era o melhor suporte para um crescimento saudável, regulador de qualquer educação.
Todos estudaram em bons colégios particulares, mas em regime de externato. Assustava-a a ideia de os ver isolados entre estranhos, repartindo o quarto na noite grande e dominadora. Só a filha mais velha foi internada na fase da adolescência, aos catorze anos, quando completou o antigo 5º ano do ensino liceal para seguir um curso de línguas estrangeiras, num colégio afamado que ficava distante.
Tornou-se uma jovem rebelde e fez um casamento desastroso com o tal inglês desvairado que a deixou sem meios e com três filhos. Foi convertendo-se numa mulher amargurada e azeda. Atribuiu sempre ao internamento e, por tal, à consequente separação do ambiente familiar este evoluir da sua personalidade.
Afinal a história escrevia-se agora contra ela. Eram os filhos que a tinham internado. E a noite grande e dominadora tinha sido passada num quarto partilhado a três.
Levantou-se e lá ao fundo descobriu uma porta. Era a casa de banho. Era grande, interior, mas bem iluminada por uma profusa luz artificial. Estava limpa e dispunha de uma grande banheira e de uma zona separada para o duche. Abriu as torneiras e a água começou a jorrar aquecida e transparente.
-“Que alívio”. Poderia tomar um bom banho e depois começar a reconhecer o Lugar.
Acabado o banho retornou para o quarto e os vultos continuavam inertes nas camas impossibilitando o seu reconhecimento. As respirações prosseguiam ofegantes com intervalos irregulares, ora roncando sinistramente ora sibilando titubeantemente. Seriam estas as suas companheiras dos tempos vindouros?
Tinha de sair rapidamente do quarto e libertar-se deste ambiente desolador. As forças necessitavam de ser retemperadas , como que num processo preventivo de defesa.
- Será que poderei sobreviver neste Lugar? - pensou pela primeira vez em surdina e até com medo de se ouvir.
-Bom dia. Como passou a noite? Agrada-lhe este quartinho? Pode crer que é dos mais pequenos e por tal mais adequado à sua situação.
Voltou-se e viu uma mulher robusta de meia idade com um uniforme branco semelhante àquele que geralmente era usado pelas enfermeiras. Embora não visse bem, enxergava com algumas limitações principalmente da vista esquerda, pelo que por vezes havia pormenores que lhe escapavam, mas desta vez viu nitidamente um rosto pretensamente sorridente, colmatado por uns olhos grandes e azuis que pareciam duas facas afiadas brilhando na contraluz. Fixando um pouco mais esses olhos concluiu que eram abrasivos , daqueles que pretendiam invadir a alma dos outros para se apossarem de tudo o que nela existe.
Com o tempo descobriu que aqueles olhos não sorriam, antes eximiam um riso profundamente trágico e predador.
- Bom dia. Como está escuro e vejo mal, não posso ainda dimensionar o quarto, mas não será possível ter um privativo, já que não estou habituada a repartir o quarto.
- Bem se vê que pisa o Lugar pela primeira vez. Nestas instituições não existem quartos privativos. Eles são sempre compartilhados porque a política definida tem como objectivo a protecção dos hóspedes, não os mantendo isolados privilegiando deste modo a sua segurança. Este que lhe foi atribuído era o único disponível com apenas três camas.
- Então terei que ficar neste quarto. Poderei saber quem são as minhas companheiras?
- Claro e com todo o prazer. São umas senhoras respeitáveis de grande estirpe e reputação.
A senhora da cama junto à janela chegou há um mês e tem um problema cardíaco que a deixou inválida. Tem 75 anos e é viúva de um Juiz. Não tem filhos, nem família.
A outra é uma senhora de 68 anos que tem uma doença pulmonar, que lhe provoca insuficiência respiratória necessitando constantemente de oxigénio. As forças já a tinham abandonado quando aqui chegou, há mês e meio. Os filhos internaram-na logo após a morte do marido, um arquitecto conceituado que deixou uma obra imensa e uma fortuna considerável. Era ele que cuidava dela.
- Quer dizer que sou a única que não estou doente e que me basto a mim própria?
- Efectivamente a senhora não aparenta estar doente, mas terá de obedecer às regras que esta casa estabeleceu, pelo que só se basta a si própria no aspecto da locomoção. Hoje ser-lhe-á dada uma planta do Lugar, bem como o regulamento interno que deverá ler atentamente para que a sua estadia se desenvolva em harmonia com esta organização. Seja bem-vinda, minha senhora. Eu vou ser a sua curadora nesta casa. A mim deve reportar todas as suas necessidades e se lhe aprouver também poderá informar-me de todas as suas dificuldades. E agora vou levá-la à sala das refeições para que possa tomar o pequeno almoço.
- É muito gentil... Veremos o que me espera - pensou ela.
A voz desta mulher era demasiado grave, mais parecia um falso contralto desafinado. Chamava-se Genoveva e era uma solteirona recalcada. Lembrava um animal em situação latente de cio que, indefinidamente e com raiva contida, ia aguardando uma presa macho que teimava em não chegar. Estava no seu natural habitat pois ia aprisionando outras vítimas, enquanto não chegava a eleita.
No dia anterior nada tinha visto, porque chegara à noite. Era então a hora de ver onde estava.
Atravessaram um grande salão, àquela hora totalmente vazio e desembocaram numa sala clara, cheia de pequenas mesas, mas apenas com meia dúzia de pessoas, cabisbaixas, parecendo ausentes e alheias à sua passagem.
Foi conduzida para uma mesa junto à janela que estava vaga, já que não tinha ninguém.
- Esta será a sua mesa. É aqui que doravante lhe serão servidas todas as refeições.
Sentou-se e esperou que lhe servissem o pequeno almoço.
O silêncio era total, quase avassalador. Eram apenas sete horas da manhã, talvez por isso a sala estivesse praticamente vazia e talvez por isso ninguém falasse.
Emergiam na sua mente muitas interrogações, mas por ora estava concentrada nas paredes desta sala. Transportavam –na para um ambiente longínquo e familiar.
As paredes eram forradas a madeira e a pedra. Iniciavam-se com madeira , carvalho maciço, que partia do soalho e prosseguiam em pedra robusta e consistente até ao tecto. Eram magníficas.
Na casa da sua infância existiam muitas paredes edificadas com a junção destes dois materiais. Fora assim que tinha descoberto e assimilado que formavam uma simbiose útil e perfeita porque resistia incólume à passagem do tempo, além de emprestar à casa uma peculiar atmosfera de requintada sobriedade."
"Quando acordara naquele dia não enxergara de imediato onde estava. A sua vida nos últimos anos obrigara-a a mudar constantemente de lugar, pelo que invariavelmente quando acordava tinha dificuldade em reconhecer o quarto.
Assim, quando respirou fundo e abriu bem os olhos e os sentidos todos começaram a funcionar, pareceu-lhe ouvir a seu lado um ruído descompassado, pesado e quase ofegante. Sentou-se na cama e viu-se num quarto sombrio, com uma claridade tenuemente difusa que lhe mostrava mais duas camas, onde jaziam também dois vultos que não foi capaz de identificar.
Então, recordou a noite anterior. Tinham-na levado para o Lugar. Ali estava ela no meio de estranhos, não imaginando sequer quem eram eles, mas compartilhando já o quarto.
Apesar de tudo em qualquer das casas por onde andara, até na que deixara de lhe pertencer, tinha tido sempre um quarto só para ela. Os filhos tinham preservado essa sua necessidade mínima de independência. E era lá que se renovava e se refortalecia para os combates que foram sucessivamente travados num plano aparente de desigualdade. Ela fora sempre vencedora., pois estava íntegra e inteira . Nunca fora tão forte a sua energia interior. Conseguira resistir aos desmandos dos filhos e aceitara de face lavada a entrada no Lugar.
E assim começava o primeiro dia da mudança mais radical e inesperada da sua vida. Sozinha no meio de tanta gente.
Como a história da vida por vezes trai. Tenta-se construí-la de uma maneira e ela desenrola-se de outra. Quando os filhos eram crianças, tinha sonhado criá-los a todos em casa, confrontando firmemente Mário Alberto que, de acordo com a época, teimava em interná-los em colégios para usufruírem de uma rígida educação. Sempre considerou que o ambiente familiar era o melhor suporte para um crescimento saudável, regulador de qualquer educação.
Todos estudaram em bons colégios particulares, mas em regime de externato. Assustava-a a ideia de os ver isolados entre estranhos, repartindo o quarto na noite grande e dominadora. Só a filha mais velha foi internada na fase da adolescência, aos catorze anos, quando completou o antigo 5º ano do ensino liceal para seguir um curso de línguas estrangeiras, num colégio afamado que ficava distante.
Tornou-se uma jovem rebelde e fez um casamento desastroso com o tal inglês desvairado que a deixou sem meios e com três filhos. Foi convertendo-se numa mulher amargurada e azeda. Atribuiu sempre ao internamento e, por tal, à consequente separação do ambiente familiar este evoluir da sua personalidade.
Afinal a história escrevia-se agora contra ela. Eram os filhos que a tinham internado. E a noite grande e dominadora tinha sido passada num quarto partilhado a três.
Levantou-se e lá ao fundo descobriu uma porta. Era a casa de banho. Era grande, interior, mas bem iluminada por uma profusa luz artificial. Estava limpa e dispunha de uma grande banheira e de uma zona separada para o duche. Abriu as torneiras e a água começou a jorrar aquecida e transparente.
-“Que alívio”. Poderia tomar um bom banho e depois começar a reconhecer o Lugar.
Acabado o banho retornou para o quarto e os vultos continuavam inertes nas camas impossibilitando o seu reconhecimento. As respirações prosseguiam ofegantes com intervalos irregulares, ora roncando sinistramente ora sibilando titubeantemente. Seriam estas as suas companheiras dos tempos vindouros?
Tinha de sair rapidamente do quarto e libertar-se deste ambiente desolador. As forças necessitavam de ser retemperadas , como que num processo preventivo de defesa.
- Será que poderei sobreviver neste Lugar? - pensou pela primeira vez em surdina e até com medo de se ouvir.
-Bom dia. Como passou a noite? Agrada-lhe este quartinho? Pode crer que é dos mais pequenos e por tal mais adequado à sua situação.
Voltou-se e viu uma mulher robusta de meia idade com um uniforme branco semelhante àquele que geralmente era usado pelas enfermeiras. Embora não visse bem, enxergava com algumas limitações principalmente da vista esquerda, pelo que por vezes havia pormenores que lhe escapavam, mas desta vez viu nitidamente um rosto pretensamente sorridente, colmatado por uns olhos grandes e azuis que pareciam duas facas afiadas brilhando na contraluz. Fixando um pouco mais esses olhos concluiu que eram abrasivos , daqueles que pretendiam invadir a alma dos outros para se apossarem de tudo o que nela existe.
Com o tempo descobriu que aqueles olhos não sorriam, antes eximiam um riso profundamente trágico e predador.
- Bom dia. Como está escuro e vejo mal, não posso ainda dimensionar o quarto, mas não será possível ter um privativo, já que não estou habituada a repartir o quarto.
- Bem se vê que pisa o Lugar pela primeira vez. Nestas instituições não existem quartos privativos. Eles são sempre compartilhados porque a política definida tem como objectivo a protecção dos hóspedes, não os mantendo isolados privilegiando deste modo a sua segurança. Este que lhe foi atribuído era o único disponível com apenas três camas.
- Então terei que ficar neste quarto. Poderei saber quem são as minhas companheiras?
- Claro e com todo o prazer. São umas senhoras respeitáveis de grande estirpe e reputação.
A senhora da cama junto à janela chegou há um mês e tem um problema cardíaco que a deixou inválida. Tem 75 anos e é viúva de um Juiz. Não tem filhos, nem família.
A outra é uma senhora de 68 anos que tem uma doença pulmonar, que lhe provoca insuficiência respiratória necessitando constantemente de oxigénio. As forças já a tinham abandonado quando aqui chegou, há mês e meio. Os filhos internaram-na logo após a morte do marido, um arquitecto conceituado que deixou uma obra imensa e uma fortuna considerável. Era ele que cuidava dela.
- Quer dizer que sou a única que não estou doente e que me basto a mim própria?
- Efectivamente a senhora não aparenta estar doente, mas terá de obedecer às regras que esta casa estabeleceu, pelo que só se basta a si própria no aspecto da locomoção. Hoje ser-lhe-á dada uma planta do Lugar, bem como o regulamento interno que deverá ler atentamente para que a sua estadia se desenvolva em harmonia com esta organização. Seja bem-vinda, minha senhora. Eu vou ser a sua curadora nesta casa. A mim deve reportar todas as suas necessidades e se lhe aprouver também poderá informar-me de todas as suas dificuldades. E agora vou levá-la à sala das refeições para que possa tomar o pequeno almoço.
- É muito gentil... Veremos o que me espera - pensou ela.
A voz desta mulher era demasiado grave, mais parecia um falso contralto desafinado. Chamava-se Genoveva e era uma solteirona recalcada. Lembrava um animal em situação latente de cio que, indefinidamente e com raiva contida, ia aguardando uma presa macho que teimava em não chegar. Estava no seu natural habitat pois ia aprisionando outras vítimas, enquanto não chegava a eleita.
No dia anterior nada tinha visto, porque chegara à noite. Era então a hora de ver onde estava.
Atravessaram um grande salão, àquela hora totalmente vazio e desembocaram numa sala clara, cheia de pequenas mesas, mas apenas com meia dúzia de pessoas, cabisbaixas, parecendo ausentes e alheias à sua passagem.
Foi conduzida para uma mesa junto à janela que estava vaga, já que não tinha ninguém.
- Esta será a sua mesa. É aqui que doravante lhe serão servidas todas as refeições.
Sentou-se e esperou que lhe servissem o pequeno almoço.
O silêncio era total, quase avassalador. Eram apenas sete horas da manhã, talvez por isso a sala estivesse praticamente vazia e talvez por isso ninguém falasse.
Emergiam na sua mente muitas interrogações, mas por ora estava concentrada nas paredes desta sala. Transportavam –na para um ambiente longínquo e familiar.
As paredes eram forradas a madeira e a pedra. Iniciavam-se com madeira , carvalho maciço, que partia do soalho e prosseguiam em pedra robusta e consistente até ao tecto. Eram magníficas.
Na casa da sua infância existiam muitas paredes edificadas com a junção destes dois materiais. Fora assim que tinha descoberto e assimilado que formavam uma simbiose útil e perfeita porque resistia incólume à passagem do tempo, além de emprestar à casa uma peculiar atmosfera de requintada sobriedade."
Maria José Vieira de Sousa, in O Lugar, memórias de um romance, Junho de 2008, pp 5-9
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