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Raul Brandão
por
Eugénio Lisboa
“Peguei,
ao acaso, no segundo volume das MEMÓRIAS de Raul Brandão, que já frequentara
por várias vezes, e mais uma vez me tomou de assalto aquela voz única,
serenamente meditativa,
inocentemente
destemida e cândida, ao revelar-nos a balbúrdia, o desconchavo, os lados
baixos, oportunistas, violentos e até assassinos, da 1ª República. É uma
paisagem negra, de grande pintor, que viu e conviveu com importantes actores
daquele período conturbado, que nos conduziu a quase cinquenta anos de Estado
Novo. Raul Brandão não era monárquico nem tinha saudades da monarquia. Pintava
só o que via e nada escondia. Diz coisas tremendas, conta factos, incidentes,
conversas, que nos deixam atordoados. Com objectividade, sem ênfase, sem
excesso de efeitos, sem espírito de fofoquice, como os grandes cronistas da
antiguidade. Quando diz que Júlio Diniz morreu virgem ou que os testículos de
Latino Coelho pareciam duas castanhas piladas, não está a fazer literatura com
especiarias indiscretas, mas simplesmente a dizer o que lhe vinha ao conhecimento,
sem nunca carregar no traço. É um pintor, aparentemente imperturbado, mas, no
fundo, terrivelmente angustiado. Faz-nos retratos inesquecíveis de Mouzinho de
Albuquerque, nos últimos dias da sua vida, antes de se suicidar, de Teófilo
Braga, entrincheirado na sua avareza balzaquiana, mesmo no funeral da sua
devotada mulher, exigindo repetidamente um funeral barato e não permitindo que
vestissem à morta um dos seus melhores vestidos, porque era um desperdício… O
mesmo homem, de simplicidade franciscana, que pedia desculpa por sair da
Academia mais cedo, porque a sua empregada doméstica estava doente e ele tinha
de ir cozer umas couves. De Guerra Junqueiro, que idolatrava, como poeta e como
filósofo, deixa-nos também um portentoso retrato. Junqueiro era, de certo, um
grande poeta, que as gerações de hoje ou não reconhecem ou não conhecem, mas o
filósofo que nunca foi, e que Brandão e outros exaltaram, esteve na origem do
célebre ensaio em que António Sérgio tiroteia implacavelmente o mito de
pensador colado à figura do autor de OS SIMPLES.
Vale
a pena ler e reler estes três volumes de memórias de Raul Brandão, nas quais
uma atrevida candura se alia, sem dificuldade, a uma inocente indiscrição. “
Eugénio
Lisboa, 03.01.2024
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