Leonardo e o gato
por Eugénio Lisboa
“Leonardo não inventou o gato. Criou beleza como
ninguém, congeminou engenharias, máquinas de guerra, aviões e conheceu a
anatomia dos seres vivos, com uma abundância e minúcia que não tiveram nem
antecedentes nem herdeiros. Mas não inventou o gato. O advento do gato é
anterior ao advento de Leonardo. Como criador, Leonardo competiu com Deus e
ganhou, mas nem Leonardo nem Deus criaram o gato. Quem criou o gato? É o mais
indecifrável mistério do Universo. Há uma teoria que sustenta ter sido o gato
que se inventou a si mesmo, visto não se conceber outro poder capaz de o fazer.
Mas, quando observamos os olhos de um gato, tudo o que vemos é mistério
insondável. O gato é uma beleza máxima que eternamente desafia. Quando Leonardo
o viu, pela primeira vez, teve a mais singular e perturbante das sensações: um
misto de deslumbramento e dor. Deslumbramento, porque nunca vira, na natureza
dos vivos, uma tal esbelteza, uma tal perfeição, um tal acerto dos números. O
gato era a fórmula final da perfeição. E não fora ele, Leonardo, a inventá-la:
de aí a sua incurável dor. Não ter inventado o gato tornou-se um tumor maligno
cravado no seu espírito criador. O gato, embora admirado por Leonardo,
tornou-se o seu persistente mau sangue. Agravado por nunca ter conseguido saber
qual o poder que tinha podido criar tal obra-prima da natureza. Se Leonardo
fracassou, ninguém mais alcançará. O gato ficará como o último segredo que a
ciência do homem será incapaz de violar. O homem só compreenderá o gato, no dia
em que se tornar gato. Mas será isso concebível? Será possível uma
transformação para melhor, de tal dimensão? Tratando-se do gato, fiquemo-nos
por perguntar já que é impossível responder.”
Eugénio Lisboa, em 20.11.2023.
Sem comentários:
Enviar um comentário