A Imaculada Conceição, o pecado original
e o sexo
por Anselmo Borges
por Anselmo Borges
“Volto ao tema, pois não sei se a
maioria dos portugueses sabe a razão do feriado de 8 de Dezembro. Os católicos
saberão que se trata de uma festa ligada a Nossa Senhora e, se interrogados,
talvez respondessem, na quase totalidade, que tem a ver com a virgindade de
Maria. Para dizer o quê, celebrando o quê? Volto ao tema, porque pode ser ou
tornar-se uma festa com muitos equívocos.
Logo à partida, que pode significar
Imaculada Conceição? De facto, não se refere directamente à virgindade, mas não
lhe é completamente alheia. Do que se trata, na realidade, é da afirmação de
que Maria, a Mãe de Jesus, foi concebida sem pecado. Mas, aqui, sem
hermenêutica, isto é, sem interpretação, pode albergar-se uma série de
confusões, profundamente ofensivas sobretudo para as mulheres, minando,
desgraçadamente, a mensagem do Evangelho enquanto notícia boa e felicitante
também para elas.
Foi concretamente Santo Agostinho que
elaborou a doutrina do pecado original, no sentido de um pecado cometido pelos
primeiros pais (Adão e Eva) e transmitido a todos, por herança, no acto sexual.
Na festa da Imaculada Conceição o que se celebraria é que houve uma excepção:
Maria foi concebida sem a mancha do pecado original.
Deste modo, porém, a sexualidade ficou
manchada e as mulheres acabavam por sentir-se discriminadas, tanto mais quanto,
associando também a concepção de Jesus a uma geração virginal, se lhes propunha
o ideal impossível de virgem e mãe.
Sub-repticiamente, esta doutrina causou
imensos danos ao cristianismo, concretamente à mulher, à visão do sexo e do
casamento. Assim, um cristão atento e reflexivo sabe que é necessário e urgente
rever o dogma, mostrando o seu verdadeiro sentido. O próprio Papa João Paulo II
deu a chave, ao escrever que "o Natal de Jesus revela o sentido profundo
de todo o nascimento humano". Afinal, quando percebe que o ser humano não
é redutível à biologia, o crente verá em toda a nova geração a presença do Espírito
Santo, como aconteceu com Jesus. Por outro lado, nascer é vir à luz e,
portanto, dar à luz não constitui uma mancha para a mãe, como supõe a doutrina
da virgindade de Maria: virgem "antes, no e depois do parto". Hoje, o
pecado original é inconcebível, concretamente, por causa da evolução: o ser
humano aparece no quadro da evolução, o que implica então a seguinte pergunta:
quem foram os "primeiros pais", colocados no mundo sem pecado e que
depois pecaram, transmitindo esse pecado a todos, de tal modo que todos nascem
em pecado de que só o baptismo os pode libertar? Ainda conheci mães que viveram
verdadeiros dramas interiores porque os seus bebés tinham morrido sem o
baptismo. Mas não. Todo o ser humano é concebido sem pecado; o que se passa é
que, entrado no mundo, terá de lutar contra a maldade e o pecado já presentes,
na esperança de um mundo melhor, mais digno e mais justo. Uma comparação:
alguém que não fuma é de algum modo contaminado pelo fumo ao entrar numa sala
com fumadores. E o baptismo? Não é para apagar o pecado original, que não há;
os pais baptizam os seus filhos, porque, desejando o melhor para eles, querem
que eles entrem na Igreja, comprometendo-se a educá-los na fé como discípulos
de Jesus.
Podemos então compreender, como dizia o
teólogo Karl Rahner, que, nestes domínios, por exemplo, da virgindade de Maria,
não se trata de biologia. Referindo-se à narrativa do Evangelho de São Mateus
sobre a geração de Jesus por obra do Espírito Santo, escreveu o exegeta Jean
Radermakers: "Tomando imagens das mitologias pagãs, depuradas pela
reflexão judaica, Mateus não se situa num plano de fisiologia, medicina,
ginecologia ou sexologia, mas no de uma realidade mais profunda. Deveríamos
reler a nossa experiência do dar à luz e da responsabilidade parental a partir
do nascimento de Jesus. Toda a criatura recém-nascida vem de Deus. Assumir uma
maternidade e paternidade humanas é deixar que Deus se revele na criatura
nascida. A missão de todo o varão e toda a mulher que se unem é dar lugar a que
apareça no mundo a realidade do Emanuel, Deus connosco.
Criticando os mal-entendidos da leitura
do Evangelho a partir de pressupostos negativos em relação à sexualidade, o
teólogo Juan Masiá põe na boca do anjo estas palavras dirigidas a São José:
"Não deixes de levar Maria contigo. Não penses que pelo facto da
intervenção do Espírito o teu papel como varão está a mais. Não tens que
afastar-te para permitir que Deus faça algo grande com a tua família. Com a tua
relação com Maria, não vais entrar em concorrência com o Espírito Santo. O teu
papel é compatível com a acção de Deus e com que Jesus seja o Cristo."
Não há dúvida de que a Igreja na sua
história foi contaminada por uma verdadeira obsessão pelo sexo, numa relação
envenenada com a sexualidade e o prazer. É claro que, no universo sexual, que,
como escreveu Miguel Oliveira da Silva, continua a ser "um imenso,
incómodo e multifacetado mistério", não vale tudo e que "a sociedade
ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de sexualidade, que a
múltipla oferta de uma sexualidade por vezes devassada sem pudor na praça
pública e passível de excessos não consegue preencher - ao contrário." E a
Igreja? O cardeal alemão R. Marx chamou recentemente a atenção para a urgência
da "mudança da moral sexual católica", superando "uma imagem que
tem estado marcada pela culpa e pelo pecado".
Anselmo Borges, Padre e Professor de Filosofia, em artigo de opinião, publicado no DN, de 2 de
Dezembro de 2023
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