A arte de tresler
por Eugénio Lisboa
“Antigamente, quando frequentei a escola e o liceu,
aprendíamos a ler e a interpretar um texto. Actualmente, as escolas,
insatisfeitas com aquela insignificância de ambição, ensinam vigorosamente a
tresler. O texto está ali apenas como pretexto para dele tirarmos munições
próprias para liquidar o autor que porventura não adira à “boa doutrina”. Não
há nada tão fértil em exemplos desta Nova Hermenêutica (NH), como os
comentários que fertilizam as redes sociais. É uma nova e refrescante arte de
atirar sempre “ao lado”. A princípio, achei irritante, depois achei lamentável,
a seguir, achei cómico, actualmente, acho trágico. É a arte de bem cavalgar
todo o disparate, que El-Rei D. Duarte se esqueceu de glosar (o que eu fui
dizer: vão acusar-me de querer restaurar a Monarquia!)
Tudo isto deve vir do estado calamitoso em que se
encontra o nosso ensino (desculpem-me este termo dinossáurico: “ensino”), que
atira cá para fora fornadas de gente muito diplomada mas escassissimamente
qualificada. O que visa esta NH é ver no texto o que lá não está ou lá aparece
sem qualquer relevância. Um exemplo: um comentador típico das redes sociais,
posto diante do célebre soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, observará que
Camões, em vez de se preocupar com a miséria das pessoas do seu tempo, gastou o
seu talento com lamechices, sem qualquer interesse para a luta de classes.
Outro exemplo: perante um texto cómico alusivo ao pânico de uma gente fina,
reunida num acontecimento mundano, pânico causado pelo aparecimento inesperado
de um rato, o comentador das redes sociais aproveitará para informar, a
propósito de ratos, que acabara de comprar, num supermercado, um raticida que
se revelara totalmente ineficaz, prova, se fosse preciso prova, da vigarice que
é o capitalismo. São mais ou menos neste gosto, os comentários de texto
oriundos desta fecunda NH. Não estou a exagerar. Não estou a caricaturar. Estou
a fotografar com máquina fotográfica de alta fidelidade. Vejo, todos os dias,
textos meus, publicados no DRN, comentados ao abrigo desta Nova Hermenêutica.
Juro que, se eu, um dia, aqui falasse na Teoria de Relatividade, o facto de
Einstein ter sido judeu, levaria imediatamente um Anónimo qualquer a garantir
que eu estava a querer apoiar os massacres de Israel, na Palestina. Aposto
singelo contra dobrado! Valerá a pena, garanto, relermos todos os grandes
clássicos da Literatura Universal, apoiando-nos nos refrescantes ditames da NH.”
Eugénio Lisboa, em
04.12.2023
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