Li, avidamente, o último livro de Leonardo Padura, Como Poeira ao Vento . Fascinou-me a história daquele grupo de amigos que , ao longo de uma vida , superou o exílio e a luta por uma vida diferente em Cuba e no exílio. Um clã que nos apaixona pela estreiteza de laços e pela variedade de personalidades que os liga. Uma escrita rica que traça uma época conturbada, com realismo e fidedignidade. Leonardo Padura conquistou-me.
Saiu , neste mês de Outubro , o seu último livro , Pessoas Decentes, publicado pela Porto Editora.
Numa entrevista ao DN , que se segue, o autor fala deste livro e do seu país.
"Cuba
criou uma cultura artística e literária que é muito maior do que a geografia da
ilha"
por
Leonídio Paulo Ferreira
"Em Pessoas
Decentes, a personagem principal volta a ser o detetive Mario Conde, e tudo
gira em torno de um crime que coincide com a visita de Obama a Havana em 2016.
Mas há uma outra história, passada em 1910, na Cuba recém-independente.
Leonardo Padura conversou com o DN sobre o livro, a pujança cultural do país, e
também sobre a sua liberdade de ser crítico
Há
uma palavra que marca este livro, que é "abominável", referindo-se a
Reynaldo Quevedo. Esta figura sintetiza o pior que houve na revolução cubana?
Estamos a falar de um romance e creio que é necessário colocar o leitor em
contexto, o leitor da entrevista, quero dizer. Os que já leram o romance
entenderão perfeitamente que se desenvolve em dois tempos históricos. Uma
história ocorre no ano de 2016, em redor da visita histórica que fez o
presidente Barack Obama dos Estados Unidos a Cuba, e outra que se desenvolve no
ano de 1910, muito pouco depois da independência de Cuba, que ocorre em 1902. E
esta última desenvolve-se em redor da figura histórica real que foi Alberto
Yarini y Ponce de León, de alguma forma o rei da prostituição em Havana, uma
personagem bastante complexa. Na outra história, a de 2016, a personagem que já
usei em dez novelas, Mario Conde, tem de realizar uma investigação porque apareceu
morto, o abominável Reynaldo Quevedo. O abominável Reynaldo Quevedo é uma
personagem de ficção que está conformada por elementos, comportamentos,
atitudes e realizações de um grupo de pessoas que, sobretudo, nos Anos 70 em
Cuba, dirigiram a política cultural. Foi um momento em que se produziu a
sovietização da cultura e da política cubana em geral. A partir do ano de 1971
começa este processo que já vinha de trás, mas a partir de 1971 começa a sua
ascensão, mesmo de vinda, como todos os processos, já desde antes. E aí se
produz a marginalização, a exclusão, o cancelamento de dezenas ou centenas de
artistas, professores, estudantes, porque era esse momento de criação do homem
novo, do artista socialista e todos os pecados podiam ser possíveis e condenáveis.
Podiam ser pecados de caráter ideológico, opiniões políticas, crenças
religiosas, por exemplo, ou até mesmo por tendências sexuais. A
homossexualidade também era condenada. E, bom, foram dez anos de aplicação
dessa política por personagens como este abominável Reynaldo Quevedo.
Que
é uma personagem de ficção, mas as vítimas de que fala, algumas são
verdadeiras.
Algumas são verdadeiras, outras são de ficção. A personagem que desencadeia um
pouco a tragédia é uma poetisa que se chama Natalia Poblet, é uma personagem de
ficção. Mas vou citar apenas dois nomes para que tenha uma ideia de como foi a
dimensão deste processo. Vivem e morrem no ostracismo, nessa década de 1970,
dois dos maiores escritores cubanos de todos os tempos: José Lezama Lima, o
autor de uma novela que se chama Paraíso; e Virgílio Piñera, o criador do
teatro moderno cubano. E digo que foram centenas de pessoas que sofreram essa
política nesses anos, aplicada por homens como o abominável Reynaldo Quevedo.
Descreve
Reynaldo Quevedo como um poeta medíocre, porque também era um homem de letras
que fazia a censura.
É que um desses censores reais, por acaso, também era poeta. São questões que a
ironia não descreve, acho que é mais cinismo esse homem dizer que era poeta.
Quem
lê esta novela e conhece a história de Cuba, sabe que é uma superpotência
literária, e no cinema, na música, no bailado. Muitas pessoas associam-no a uma
aposta da revolução. É algo que já existia no país ainda antes do triunfo da
revolução, em 1959, esta pujança cultural?
Cuba criou uma cultura artística e literária que é muito maior do que a
geografia da ilha. Desde o século XIX, Cuba torna-se culturalmente uma nação
independente, porque não teve independência política até 1902, mas já existia
uma cultura independente cubana própria. No final do século XIX, em língua
espanhola, produz-se um movimento poético muito importante, que é o modernismo.
E dos três grandes poetas modernistas, um é Rubén Darío, nicaraguense, e os
outros dois são José Martí e Julián del Casal, ambos cubanos. Dos três grandes
poetas que revolucionam a poesia da língua espanhola, dois são cubanos. Antes,
o poeta romântico mais importante da língua espanhola foi José María de
Heredia, o cubano, que é o protagonista da minha novela O Romance da Minha Vida.
Já a música cubana se começava a estender por todas as Caraíbas e começa também
a haver elementos de uma cultura não somente artística e literária em que Cuba
se torna referência, mas de cultura em geral como é, por exemplo, a prática do
desporto. O basebol chega dos Estados Unidos a Cuba e, de Cuba, é que chega ao
México, Venezuela, República Dominicana, Porto Rico. Ou seja, o basebol chega a
esses países das Caraíbas através de Cuba. Em Cuba torna-se o deporto nacional
cubano. Ao longo do século XX, há uma quantidade importante de artistas
cubanos, nomes como Alejo Carpentier ou Nicolás Guillén puderam ser
representativos; na dança, Alicia Alonso. A música cubana é uma das que marca a
história do século XX desde o princípio. Há um precursor cubano, negro, quase
analfabeto, Chano Pozo, nascido num lugar marginal de Havana, que vai para Nova
Iorque e introduz a percussão cubana no jazz. Cria com Dizzy Gillespie e
Charlie Parker o bebop. Sempre houve uma grande cultura cubana. E antes que o
mundo fosse um pouco diferente como é agora, lembre-se que os campeões mundiais
de xadrez eram somente judeus russos. Bom, mas há um cubano, José Raúl
Capablanca, nos Anos 30.
A
pujança cultural que dura até hoje não é, portanto, automaticamente produto da
revolução?
A revolução potencia essa possibilidade. Por exemplo, cria-se a Imprensa
Nacional de Cuba, que começa a publicar livros de forma passiva. A primeira
edição que faz a imprensa, nos Anos 1960, é Dom Quixote de la Mancha, uma
edição de 250 mil exemplares para um país de sete milhões de habitantes. Um
Quixote por família. Houve uma campanha de alfabetização, porque hoje, que um
país tenha 40% de analfabetismo, parece uma loucura. Nos Anos 1950 era quase
normal. Houve uma campanha de alfabetização, criaram-se as Escolas de Arte, o
Instituto de Cinema. Houve uma série de instituições que permitiram o
desenvolvimento dessa cultura e essa cultura desenvolveu-se. Depois, nos Anos
70, contudo, uma má aplicação de uma política cultural frustra e determina a
produção cultural e a vida de muitos artistas.
Quando
falamos de Alberto Yarini, que é uma figura histórica que existiu , recordo-me
do seu livro e vejo a Havana dos bordéis, da prostituição, que muitas vezes é a
narrativa da Havana dos Anos 1950, antes da Revolução liderada por Fidel
Castro. Esta Cuba que tinha saído da independência, era uma Cuba, apesar de
tudo democrática, mas já muito corrompida?
Sim, isso vê-se no espaço histórico em que decorre este romance dentro do
romance, em 1909/ 1910, poucos anos depois da independência, que um proxeneta,
um homem que publicamente vive da prostituição, chega a ser o homem mais
popular da cidade e que tenha o maior enterro que houve.
Mas
que é um aristocrata e com ambições políticas.
Sim, vinha de uma família aristocrática, tinha ambições políticas, e é um facto
histórico demonstrado que no seu velório esteve até o presidente da República.
E altas personagens da política e da História cubana foram ao seu enterro,
estiveram presentes e prestaram homenagem ao jovem que havia morrido. Porque a
corrupção é um fenómeno que - e isso vê-se muito claramente - corresponde a uma
das piores heranças que nos deixou a Administração Colonial Espanhola. A
Administração Colonial Espanhola era uma administração corrompida. Usei uma
documentação no livro O Romance da Minha Vida em que há um dos representantes
cubanos nas cortes de Espanha que diz a uma das famílias cubanas que tinha mais
poder económico: "Lembrem-se que têm dinheiro suficiente para comprar o
governador da ilha que tenham de comprar." Ou seja, a burguesia cubana
comprava até os governadores espanhóis da ilha. Então, é uma prática que se
manteve e foi uma das razões que provocou a revolução de Fidel Castro.
Esta
Havana descrita em 1909 e 1910, quando triunfa Fidel Castro, em 1959, ainda
existe?
Sim, existe. Inclusive com uma componente que o faz mais evidente e que está a
trabalhar, a investir e programar o desenvolvimento de Havana, que é a máfia
norte-americana. Meyer Lansky vive em Havana e é o homem que tem toda a visão
do que se chamaria as 100 milhas de ouro entre um porto, que é o porto do
Mariel, que está a oeste de Havana, e a Praia de Varadero, que está a leste de
Havana. 100 milhas iam ser as 100 milhas de ouro de casinos, hotéis,
urbanizações, campos de golfe. E tudo isso, depois, todas esses investimentos
vão para Las Vegas e outros terminam em Miami. Mas era Cuba o destino,
precisamente porque havia a possibilidade de um país com condições geográficas
e culturais muito favoráveis e com um Governo com políticas muito permissivas
para poder fazer qualquer tipo de negócio.
Outro
tema que se nota neste livro, nos dois momentos históricos, é a relação
complicada com os Estados Unidos, tanto em 1898 quando vêm ajudar na guerra da
independência, que os cubanos já estavam a conquistar por si sós, como depois
na histórica visita de Obama. O nacionalismo cubano existe muito em função
desta relação com os Estados Unidos?
Sim. Com respeito aos Estados Unidos, as suas relações históricas com Cuba são
traumáticas. Intervieram na guerra de independência, mas depois o Exército
americano manteve-se em Cuba por quatro anos e houve ainda segunda intervenção
militar, em 1906. Depois triunfa a Revolução, há o episódio da Baía dos Porcos,
o embargo ou bloqueio, toda uma série de elementos até hoje.
E
há o caso de Guantánamo, que se mantém base americana.
A Base de Guantánamo, que vem dessa época e já sabemos qual foi o destino desse
lugar, que já não tem nenhum valor estratégico para os Estados Unidos e é uma
prisão para terroristas estrangeiros. Estas relações traumáticas acontecem no
campo da política. Mas no campo de outras relações entre Cuba e os Estados
Unidos, há uma enorme proximidade. Em Cuba dizemos que o nosso destino é que
estamos muito longe de Deus e muito perto dos Estados Unidos. E sei que os
mexicanos também o dizem. O outro país do mundo onde há mais paixão pelo
basebol é Cuba. A música cubana e a música norte-americana são músicas que se
influenciaram historicamente. Para que tenha uma ideia do quão importante era
Cuba para os Estados Unidos, não o contrário, no ano de 1954, o país mais
famoso do mundo nos Estados Unidos, era Cuba. Porque o livro que levou
Hemingway ao Nobel, que ganha nesse ano, é O Velho e o Mar, uma história
cubana. O ritmo que se dança nos Estados Unidos é o mambo cubano. Todos os
Estados Unidos estavam a dançar o mambo. E terceiro, a primeira série de
televisão que se torna um sucesso chama-se I Love Lucy e o
protagonista é um cubano chamado Desi Arnaz. E ele falava como cubano. Ele
falava inglês, mas falava como cubano e sabia-se que era cubano. Então, é uma
relação em que do lado da parte política, existe essa tensão e às vezes esse
ressentimento, mas pela parte cultural, afetiva e admirativa - ainda hoje, se
perguntar a alguém de uma geração anterior à minha, as suas referências no
cinema são Liz Taylor e Richard Burton, porque se educaram nessa cultura. É um
trauma complicado, como todos os traumas, e já teve os seus lados positivos e
os seus lados negativos.
A
visita de Obama a Cuba foi em 2016. Estava lá quando ele lá foi? Houve uma
expectativa que fosse um momento histórico de viragem nas relações políticas ou
era muito a personalidade de Obama a atrair a curiosidade?
Sim, estava. Foi um momento histórico, sem dúvida. Um presidente dos Estados
Unidos, diz-se isso em algum momento na novela, não vai todos os dias a Cuba,
nem sequer todos os séculos. E com a situação que existia de tensão entre
Estados Unidos e Cuba durante 60 anos, era muito mais importante, muito mais
histórico. E acho que é uma das coisas que tento descrever no romance. Cria-se
um sentimento de esperança de que as coisas podem mudar, e as coisas para mudar
em Cuba, necessariamente, têm de passar por uma relação melhor com os Estados
Unidos. Não acho que Obama tivesse a intenção de apoiar o Governo cubano, tinha
sim a intenção de destabilizar o Governo cubano, mas com a inteligência de
fazê-lo com políticas diferentes das que se tinha aplicado até àquele momento.
Então, sente-se na sociedade cubana, nesses anos, uma atmosfera diferente. Há
dinheiro, as pessoas viajam, fazem pequenos negócios, os donos dos automóveis
cortam o teto para passear turistas nos velhos automóveis norte-americanos dos
Anos 1950. Em janeiro de 2017, pediram-me uma colaboração com o New
York Times, que escrevesse em não sei quantas palavras - essas coisas
terríveis que a imprensa tem agora em que dizem exatamente quantos carateres se
pode publicar, mesmo que se diga que requer dez vezes mais espaço. Mas o que
eles queriam era a minha perspetiva sobre o que poderia vir a passar-se com
Donald Trump como presidente. E o que eu faço é contar a história de um senhor
que vendeu tudo o que tinha, comprou um velho automóvel norte-americano,
reparou-o, colocou um motor novo e fez o corte do teto para passear turistas. E
quando chega Trump ao poder, este homem pediu a Deus que Trump não desista do
acordo, mas Trump desistiu do acordo e destruiu-lhe o negócio. Trump aplicou a
mesma política que se havia aplicado antes. Com o caso de Trump, há uma
precisão que é importante: acho que Trump não tinha uma intenção, ao princípio,
específica com respeito a Cuba, mas tinha antes a intenção específica de
desmontar todas as políticas de Obama. Tentou desmontar o Obamacare, por
exemplo, que foi uma política importante para muitas pessoas nos Estados
Unidos.
Cuba
sofreu por Trump ser anti-Obama, mas mesmo com Biden não se voltou atrás.
Veio Trump, veio a pandemia, aumenta-se a ineficiência económica própria do
sistema cubano. E Biden muda muito poucas coisas, mas, na essência, seguimos
igual ao que tínhamos na época de Trump. Como sabe, muitos países da Região das
Caraíbas e da América do Sul dependem dos envios de dinheiro que fazem os
imigrantes que vivem nos Estados Unidos. Mesmo um país rico e grande como o
México. Na época de Trump houve um momento em que era impossível enviar
dinheiro para Cuba. Impossível. Pode imaginar como é que isso afetou a vida
diária das pessoas em Cuba, muita gente vivia dessas remessas que recebia. E
com Biden isso voltou a agilizar-se, voltou a ser possível, mas na essência a
política não mudou.
Essa
personagem que surge no final do romance, na história que envolve Mario Conde,
o curiosamente chamado José José, define-o como um homem decente. O romance e a
História de Cuba mostram que é possível ser uma pessoa decente, mesmo quando há
miséria, pobreza, dificuldades ou mesmo perseguição política. Há pessoas que
são capazes de manter a decência?
Acho que sim. A decência é uma qualidade moral. Lembro-me, quando era criança,
que a minha família tinha certas possibilidades económicas que se perderam com
os anos da revolução. Em 1958, a minha família era de classe média muito baixa,
mas classe média. Tínhamos casa própria, automóvel, o meu pai tinha um pequeno
negócio com o irmão. Esse negócio não foi tirado ao meu pai e ao meu tio pelo
Governo, eles venderam porque havia tantos problemas entre eles que o meu pai
me dizia que se continuasse a trabalhar com o irmão, o matava. Então preferiram
vendê-lo. Vivíamos num bairro e ainda vivemos. Vivo na mesma casa onde nasci,
no mesmo bairro onde a minha família viveu toda a vida, e lembro-me que se
dizia que essas famílias, essas pessoas, eram pobres, mas decentes. E era um
valor que essas pessoas tinham, mesmo com respeito à sua apreciação social. E
acho que sempre foi possível, até mesmo em épocas críticas, em épocas de
pobreza, ser uma pessoa decente. E neste romance, além disso, e talvez agora
façamos uma espécie de curva para chegar ao final, há um setor de pessoas que
são as mulheres que se prostituem, que são consideradas pela sociedade,
tradicionalmente, como pessoas indecentes. Sem nos colocarmos a analisar por
que é que uma mulher se prostitui, que muitas vezes o faz porque é a única
forma de sobreviver. E num país onde 90% das mulheres eram analfabetas e onde
apenas 5% tinha proteção, é muito injusto dizer que as putas são indecentes.
Tem de ser compreensível. Então, esse valor, acho que sim, que é possível
manter. E a minha personagem, Mario Conde, que é a outra pessoa decente
importante desse romance, tem de ser, porque somente tendo uma estatura ética
pode julgar os indecentes. É muito difícil que um indecente julgue outro,
porque estão na mesma equipa. Então, Conde mantém sempre essa decência no meio
de muitas carências. E é uma das coisas que o faz simpático aos olhos dos
leitores.
A
última pergunta tem a ver com o contraste com a decência. Esta ideia do
"homem invisível", da pessoa que beneficia da abertura económica e
das mudanças num regime oficialmente ainda comunista, mas se esconde. É uma
nova forma de indecência?
Essa é uma das formas de indecência. Há uma pessoa que tem a possibilidade de
montar um negócio privado e procura o que se chama um testa de ferro, o que dá
o rosto como dono do negócio, mas o verdadeiro dono é outro. Isso praticou-se
na Cuba desses anos e está a praticar-se mais agora, segundo tudo parece
indicar. Não posso mencionar um só nome, porque não tenho uma só prova, mas com
as novas pequenas empresas privadas que surgiram, as chamadas pequenas e médias
empresas, pequenos negócios familiares e tal. Bom, essa estrutura aplicou-se em
Cuba para negócios privados de diferentes tipos e há algumas que fazem
suspeitar que são pessoas que têm possibilidades de aceder a informação e a
diferentes possibilidades comerciais. Não posso especificar quais, porque não
conheço os mecanismos com que funcionam, mas está a falar-se sobre isso em
Cuba, que há alguns ou vários homens invisíveis atrás dessas pequenas e médias
empresas.
E
voltamos à ideia inicial da tradição de corrupção.
Sim, é corrupção. Porque, por exemplo, se este hotel é do Estado e o Estado não
pode geri-lo mais e de repente entrega-o a alguém para que faça um hotel
privado, nunca tendo existido uma licitação pública, isso é corrupção. Porque
entrega-o por alguma razão. Ou porque pagou, ou porque é filho de, ou porque
tem amigos. Enfim, são formas muito visíveis, muito diferentes, de corrupção,
mas que existem.
Há
muita gente que diz que Cuba é uma ditadura e que tem uma relação complicada
com os opositores, que não há liberdade de expressão. Mas ao mesmo tempo, o
regime, em relação a si, que é um escritor famoso, que tem uma escrita de
grande qualidade, mas também uma escrita que é tão natural e tão realista que é
crítica, aceita-o. É uma relação de compromisso? Ou seja, o regime aceita a sua
liberdade de expressão porque todos ficam a ganhar com isso?
Acho que me aceitam como um mal inevitável. Repare, hoje fiz num só dia, aqui,
três entrevistas. Em Cuba, com os meios cubanos, não faço três em um ano, nunca
saio nos jornais, nunca saio na televisão, nunca saio na rádio. Os meus livros
são pouco e mal publicados. Continuo a viver em Cuba porque preciso de Cuba
para viver e para escrever. É lá que tenho a minha mãe, tenho a minha casa,
tenho a minha língua, tenho as minhas personagens, tenho tudo em Cuba.
E
o nacionalismo cubano também o faz continuar na ilha?
Sim, sim, porque pertenço a uma cultura. Não acho que exista inteligência
suficiente para que exista uma montagem política, ou seja, que diga "vamos
deixar que insista para demonstrar algo". Se eu saísse de Cuba, para eles
seria ideal. A minha liberdade deve-se, sobretudo, a ter a possibilidade de
ter, há quase 30 anos, a mesma editora em Espanha. Os meus livros saem do meu
computador para o computador dos meus editores em Barcelona, não passam por
nenhum filtro cubano. E eu, como cidadão, cumpro todas as leis, pago os
impostos, pago tudo. Além disso, lembre-se de que a Al Capone não o puderam
julgar como criminoso, por isso julgaram-no por fuga aos impostos. Foi algo que
também fez com que decidisse ficar em Cuba, o poder fazer a minha vida normal
como pessoa, mesmo que não tenha a promoção como escritor. Digo-lhe, saio mais
nos jornais portugueses, na TV, na rádio, em eventos públicos do que em Cuba.
Mas
este Pessoas Decentes também é um livro escrito por alguém que
ama muito Cuba.
Sim. Aliás, tinha um amigo que morreu no exílio e que dizia que ninguém amava
mais Cuba do que ele. Acho que também me incluiria nessa equipa dos que amam
muito Cuba.”
Leonídio
Paulo Ferreira, em
artigo publicado no DN de 30 de Outubro de 2023
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